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Rubens Valente

Decisão do STJ alerta para nulidade de reconhecimentos falhos de suspeitos

O ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Rogério Schietti Cruz durante julgamento -  Rafael Luz / STJ
O ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Rogério Schietti Cruz durante julgamento Imagem: Rafael Luz / STJ

Colunista do UOL

23/12/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Ministro do tribunal reitera decisão da Sexta Turma tomada em outubro sobre delegacias de polícia e juízes terem de seguir Código de Processo Penal
  • Decisão sustou condenação de um pedreiro de SP preso há 2 anos e agora assistido pelo Innocence Project Brasil, que pede sua libertação imediata
  • Segundo o ministro, quem faz o reconhecimento deve descrever antes características físicas do suspeito e a polícia deve localizar pessoas semelhantes

A decisão tomada pelo ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Rogério Schietti Cruz no último dia 3 a fim de suspender a condenação do pedreiro Robert Medeiros da Silva Santos, 20, alerta que atos de reconhecimento de suspeitos de crimes em todo o país passarão a ser anulados se não respeitarem as normas contidas no CPP É o que apontam especialistas ouvidos pelo UOL que analisaram a decisão do ministro.

Os reconhecimentos de suspeitos por fotografia também não podem, de acordo com a decisão, ser usados como prova no processo e são apenas atos antecedentes do reconhecimento pessoal.

Assistido pela organização não governamental de advogados Innocence Project Brasil, Robert Santos está preso desde 2018 em Dracena (SP) e foi condenado duas vezes por dois assaltos a ônibus do transporte coletivo de São Paulo, a dez anos e a seis anos de reclusão, nos dois casos apenas a partir de reconhecimento de uma testemunha.

Num dos casos, a PGR (Procuradoria Geral da República) já pediu a absolvição do pedreiro após identificar contradições nos depoimentos da única testemunha que reconheceu Robert. No segundo processo, Schietti acolheu petição do Innocence, que representa Robert no habeas corpus, e determinou a suspensão da condenação.

Advogados criminalistas, defensores públicos e organizações não governamentais como o Innocence Project têm denunciado o elevado número de pessoas presas ou condenadas no Brasil com base apenas em reconhecimentos falhos, que levam a vítima a sugestões ou enganos.

Na decisão do dia 3 no habeas corpus nº 630.949-SP, o ministro Schietti reafirmou que os procedimentos previstos no artigo 226 do CPP (Código de Processo Penal) não são "mera recomendação". Ele lembrou que, em outubro último, ao julgar o habeas corpus nº 598.886-SC, a Sexta Turma do STJ "reviu sua própria jurisprudência". Até então, segundo o ministro, eram desconsideradas irregularidades no reconhecimento de um investigado sob o argumento de que as formalidades legais seriam apenas uma "recomendação" do legislador.

Ministro mencionou quatro pontos sobre o reconhecimento

De acordo com o artigo do CPP, o reconhecimento deve seguir basicamente dois passos. Primeiro, a pessoa que tiver que fazer o reconhecimento será, antes de qualquer ato, "convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida". A partir daí, a autoridade policial reunirá pessoas que tiverem "qualquer semelhança" com o suspeito descrito pela vítima e as colocará lado a lado para o reconhecimento.

O ministro listou quatro pontos fundamentais no tema do reconhecimento que deveriam ser seguidos por todas as delegacias de polícia e fóruns judiciais no país, sob pena de nulidade:

1) O reconhecimento de pessoas "deve observar o procedimento previsto" no artigo 226 do CPP, "cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime";

2) Considerando "os efeitos e os riscos de um reconhecimento falho", a inobservância do artigo do CPP "torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo";

3) O juiz poderá, na fase processual, realizar um ato de reconhecimento formal, "desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento";

4) O reconhecimento do suspeito "por simples exibição de fotografia ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo".

Testemunhos não devem ser usados isoladamente para condenações, diz associação de peritos federais

Para o presidente da APCF (Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais), Marcos Camargo, "o reconhecimento visual e os depoimentos de testemunhas são instrumentos válidos e importantes nas investigações". "No entanto, esses tipos de provas testemunhais, nas condições em que são produzidas, têm gerado inúmeras condenações equivocadas, no Brasil e em outros países. Por isso, não devem ser usados isoladamente para considerar alguém como culpado."

Camargo disse que a APCF há anos tem destacado que o CPP "é claro ao determinar que todo vestígio deixado por um crime ou possível crime precisa ser submetido à análise científica da perícia oficial de natureza criminal. O emprego da ciência para a solução de crimes é uma medida que se destina a buscar a verdade dos fatos, de forma isenta e equidistante das partes, prestando-se tanto para a condenação quanto para a absolvição".

Camargo disse ainda que relatos testemunhais não podem ser tomados "como verdade absoluta, sem preocupação em produzir provas materiais capazes de confrontá-los ou comprová-los". "É urgente que a ciência passe a ser efetivamente uma ferramenta prioritária do Estado contra o crime, a fim de mitigar injustiças e de combater a impunidade."

Para defensor, STJ "começa a refutar padrão que era admitido tranquilamente no Brasil"

O defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro, designado para atuar perante o STF (Supremo Tribunal Federal), disse que "muitas vezes a atual sistemática do reconhecimento no Brasil é muito falha". "Não segue o artigo 226 do CPP e faz as coisas de maneira muito precária e muitas vezes extremamente muito insegura para quem está sendo reconhecido. Muitas vezes é com base em fotografia, sem nenhum tipo de verificação", disse Ribeiro.

Para o defensor, o STJ agora "começou a refutar esse padrão que foi admitido tranquilamente no Brasil por muito tempo".

"Aquilo que está estabelecido no artigo do CPP deve ser seguido. Nós estávamos vendo, e há várias notícias quanto a isso, não são uma nem duas, de casos em que pessoas - e muitas vezes jovens negros, diria que de forma amplamente majoritária, quase que total - eram reconhecidas por fotografias, sem qualquer tipo de procedimento correto, e isso implicava prisões e processos penais longos de pessoas completamente inocentes por conta desse reconhecimento falho."

Segundo o defensor público, o artigo 226 do CPP estabelece como deve ser feito o reconhecimento "mas lamentavelmente, como acontece em diversos outros artigos do CPP, do Código Penal, da Lei de Execuções Penais, quando favoráveis aos mais fracos, era solenemente ignorado".

"A importância dessa mudança do STJ é evitar que pessoas sejam reconhecidas sem nenhum padrão, sem a observância do artigo do CPP, e muitas vezes sejam encarceradas e processadas", disse o defensor.

Ribeiro reforçou que, conforme estabelecido no CPP, a pessoa que vai fazer o reconhecimento deve descrever quem vai ser reconhecido e a pessoa que vai ser reconhecida deve ser colocada ao lado de outras pessoas assemelhadas para ver se a pessoa que está reconhecendo é capaz de apontá-la. "É muito parecido com aquele procedimento que a gente vê tanto em filme seriado norte-americano. Você tem várias pessoas do mesmo tipo físico."

Para Innocence Project, STJ manda mensagem a governadores e autoridades policiais

O advogado Jonas Marzagão, que defendeu investigados e réus em diversas operações da Polícia Federal nos últimos anos, disse que a decisão do STJ "foi corretíssima".

"O Código de Processo Penal diz que o juiz não pode se basear apenas nas provas produzidas na fase inquisitorial. O juiz poderia ter refeito o ato de reconhecimento em juízo. E o correto é a descrição física da pessoa que será reconhecida antes do reconhecimento. O delegado então vai procurar encontrar três ou quatro pessoas parecidas com aquela. Mas no caso analisado pelo ministro, a vítima negou que tinha outras pessoas no momento do reconhecimento. Ai ficou clara a falha da autoridade que investigou."

No caso de Robert Santos, o ministro do STJ Schietti Cruz apontou que "além de não ter havido a indicação, pelo ofendido, das características da pessoa a ser reconhecida, não cuidou a autoridade policial de reunir pessoas para se agruparem ao lado do suspeito, circunstância expressamente declarada pela vítima em seu depoimento prestado em juízo".

A advogada Dora Cavalcanti, do Innocence Project, disse que a partir da decisão do STJ "se o reconhecimento não obedecer as regras do Código de Processo Penal, será nulo, e colocará a perder o resultado do processo". "Ao dar conhecimento da nova orientação jurisprudencial para governadores e autoridades policiais de todo o país, o STJ manda uma mensagem importante e clara, no sentido de que ninguém pode ser preso e condenado somente com base em reconhecimento feito de forma irregular."

O Innocence Project peticionou neste domingo (20) na presidência do STJ um pedido de libertação do pedreiro Robert Santos, que segue na penitenciária de Dracena (SP). Não havia decisão a respeito do assunto até o fechamento deste texto.