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O general da Petrobras: obra em terra indígena e prego quente na mão
Em 1982, o agora indicado pelo presidente Jair Bolsonaro à presidência da Petrobras, o general da reserva Joaquim Silva e Luna, 71, era capitão do Exército em Boa Vista (RR) quando foi designado para comandar uma companhia de engenharia e construção sediada em Caracaraí (RR).
Em uma viagem de inspeção, ele soube que eram necessários cerca de mil pregos para fazer obras de reparação nas 69 pontes de madeira no trecho sob sua responsabilidade da rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista. Como oficial mais graduado, ordenou pelo rádio que os pregos fossem feitos com urgência. Queria que pelo menos a metade estivesse pronta assim que ele retornasse a Caracaraí.
No início da madrugada, quando o capitão chegou, a equipe trabalhava a todo vapor e já tinha aprontado cerca de 500 pregos. Eles são feitos com uma fornalha. Saem em brasas e são colocados para esfriar numa bancada.
Luna se impressionou com o ritmo de trabalho. Na sua animação, pegou com a mão, sem proteção, um dos pregos: "Está muito bom realmente, está muito bem feito. A cabeça está boa". As pessoas ficaram espantadas.
"Eu tinha queimado a minha mão inteira, mas eu não demonstrei nada. Fiquei ali, segurando no tranco. [...] No outro dia eu estava lá na enfermaria. Estava lá um buracão na mão que tinha feito do prego quente. Isso ficou conhecido lá porque eu não tinha demonstrado para ninguém que tinha me torrado todo."
O episódio foi narrado por Luna à publicação "A engenharia do Exército na construção do desenvolvimento nacional", volume 2, editada em 2014 pelo DEC (Departamento de Engenharia e Construção) do Comando do Exército, em Brasília.
Luna trabalhou na companhia de Caracaraí de janeiro a dezembro de 1982. Anos depois, em 1996, durante o governo FHC, ele retornou à região, agora como coronel comandante do 6º BEC (Batalhão de Engenharia e Construção). Ele tinha a tarefa de fazer o asfaltamento da rodovia BR-174 no trecho de cerca de 120 km que atravessa a Terra Indígena Waimiri-Atroari, localizada na divisa entre os estados do Amazonas e de Roraima.
A abertura da estrada da BR-174 havia ocorrido nos anos 70, durante a ditadura militar (1964-1985), também pelo batalhão de engenharia do Exército. Essa obra é marcante para os indígenas porque coincide com um altíssimo índice de mortalidade entre os waimiris-atroaris, que antes da obra viviam isolados, sem falar o português, da caça, da pesca e de pequenas roças.
O relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade) apontou mais de 2,5 mil índios mortos como consequência direta da obra, no que é considerado um dos maiores massacres do período militar. Pouco mais de 350 indígenas sobreviveram até que a obra fosse inaugurada na segunda metade dos anos 70. Além do relatório da CNV, o Ministério Público Federal tem em andamento uma ação civil pública que investiga os crimes relatados pelos indígenas, como massacres e despejo de produtos químicos nas aldeias. Nas investigações oficiais, os militares negam ter cometido crimes contra os indígenas.
Quando Luna retornou à rodovia BR-174 nos anos 90, o clima já era bem outro. A ditadura havia acabado 11 anos antes e os indígenas já viviam um processo de recuperação da sua população - hoje já passam de 2,1 mil. De acordo com o currículo do general, na fase mais aguda da obra, quando os indígenas sofreram suas maiores baixas, de 1974 a 1976, ele trabalhava no Rio de Janeiro, em funções no 1º Batalhão de Engenharia de Combate (de 1973 a 1977) e na Escola de Comunicação do Exército (de 1975 a 1976).
Diálogo com indígenas para obra de asfaltamento no governo FHC
No depoimento que prestou para a publicação do DEC, Luna disse que sua primeira tarefa ao chegar para a conclusão do asfalto, em 1996, foi estabelecer um acordo com os indígenas. O diálogo foi intermediado por um dos mais conhecidos indigenistas da história da Funai e aliado antigo dos waimiris-atroaris, José Porfírio Fontenele de Carvalho (1946-2017), que desde 1987 coordenava o PWA (Programa Waimiri-Atroari), criado pela estatal Eletronorte como compensação às obras de hidrelétrica de Balbina, que havia alagado parte da terra indígena.
"Um dia eu recebi uma informação de que teria que ir a Manaus negociar com esse pessoal. Com esse indigenista [Carvalho], com o Ibama, com a Funai e com três índios que eram os caciques dessa área. [...] Terminando ali, fechamos um acordo sem muita problemática. Então foi, para mim, um fato bem marcante que não tem nada a ver com a obra, tem a ver com negociação. E começamos a asfaltar um trecho de 120 km. Eu fiz 80% e ficou para o meu sucessor a outra parte", disse o general à publicação do Exército. Ele esteve à frente da obra do asfaltamento de 1996 a 1998, tendo sido substituído pelo coronel Joaquim Maia Brandão Junior, que encerrou o trecho da construção no Amazonas.
Uma parte importante que Luna não contou ao DEC sobre sua segunda passagem na BR-174 é lembrada pelo irmão do indigenista Porfírio, o advogado Jonas Carvalho, que há muitos anos atua no apoio jurídico à comunidade waimiri-atroari. Partiu do próprio Luna, em 1998, a autorização para que os indígenas mantivessem as duas correntes que impedem o fluxo de veículos na BR-174 de 18h00 às 6h00. Apenas veículos em situação de emergência podem passar. O controle do tráfego noturno impede atropelamento de indígenas e de animais silvestres, ajuda a manter o equilíbrio da caça na região e preserva a própria condição de trafegabilidade da rodovia.
Em 2018, duas décadas após o fim da obra de asfaltamento, Luna voltou a se encontrar com os indígenas, então na condição de ministro da Defesa nomeado pelo presidente Michel Temer. Sua nomeação rompeu uma tradição desde a criação da pasta, em 1999. Até então o cargo era destinado a um civil, o que criava pelo menos a expectativa de um melhor controle sobre as demandas dos militares. Ao tomar posse no cargo, Luna tornou-se um símbolo do processo de militarização do governo federal que começou no governo Temer e se aprofundou no governo Bolsonaro.
Além de Luna na Defesa, Temer recuperou o controle militar sobre a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), nomeou um general na presidência da Funai (Fundação Nacional do Índio) e outro para a chefia de gabinete da Casa Civil da Presidência. Desde então, a militarização da Esplanada dos Ministérios se acelerou.
A reunião do general com os indígenas kinjá, a autodenominação dos waimiris-atroaris, na terra indígena em 2018 foi acompanhada por Jonas Carvalho. O ministro foi até lá porque havia resistência e crítica dos indígenas sobre mais uma obra projetada pelo governo federal para impactar o seu território, a passagem de uma linha de alta tensão entre Manaus e Boa Vista. Na ditadura, eles foram atingidos pelos efeitos da rodovia e da hidrelétrica ao mesmo tempo.
"Os kinjá gostam dele, fizeram uma recepção muito boa. Os índios o receberam com muito respeito e carinho e isso foi recíproco. Ele disse que estava lá relembrando os velhos tempos, abraçou os indígenas. Relembrou algumas passagens entre eles. Me pareceu muito respeitosa a forma como ele tratou os índios e eles o trataram com muito respeito também", disse Jonas sobre o encontro.
General deu apoio aos indígenas para o controle do tráfego com correntes
Na reunião, Luna confirmou que partiu dele a autorização para os indígenas continuarem a usar as correntes na rodovia. As correntes na verdade foram criadas pelos próprios militares durante a ditadura, nos anos 70, durante a abertura da estrada. Em 1998, com o fim do asfaltamento no trecho que cortava a terra indígena, Luna "repassou" aos índios o mesmo sistema de controle do tráfego de veículos que os militares haviam usado.
"Ele recomendou que os kinjá não abrissem mão da corrente na estrada porque foi ele quem passou a corrente para os kinjá. Ele disse que tinha orgulho de ter feito aquilo e os indígenas tinham o direito de manter a estrada fechada, que aquilo era para a segurança deles", relembrou o advogado.
O general também prometeu que jamais voltaria a ser usada força contra os waimiris-atroaris. A abertura da estrada, nos anos 70, foi feita a ferro e fogo, contra a vontade dos indígenas.
Embora depois Luna tenha dado a entender, numa entrevista ao jornal "Valor Econômico", que a reunião foi decisiva para os índios autorizarem a obra do linhão, não foi essa a conclusão de Jonas.
"Na época estava aquela confusão do linhão e a gente até pensou que ele fosse abordar de forma direta o problema da linha, mas não fez isso. Ele ouviu os índios, disse que estava muito feliz por ter retornado. Não houve cobrança nem por parte dele nem nada. Eu acompanhei toda a reunião", disse o advogado.
O lado irônico sobre a origem das correntes na BR-174 é que elas são usadas como argumento para inúmeras manifestações de preconceito e discurso de ódio contra os waimiris-atroaris em Roraima. Inclusive por políticos bolsonaristas. Em 2019, o deputado estadual Jeferson Alves (PTB) chegou a cortar as correntes com uma motosserra. Gravou tudo e jogou na internet, com elogios a Bolsonaro. Em 2020 o Ministério Público Federal abriu um procedimento para investigar o ato do deputado.
Na reunião, Luna confirmou: foi o indicado a presidente da Petrobras, um oficial militar de carreira e desde o começo um aliado do governo Bolsonaro, quem autorizou e apoiou os indígenas na época e depois, em 2018.
Currículo de general não cita nenhuma passagem pela Petrobras
Desde 2017, quando Silva e Luna ainda era secretário-executivo do Ministério da Defesa, este colunista tenta entrevistá-lo sobre seu papel na obra da rodovia BR-174 e as correntes. Ele chegou a marcar uma entrevista, mas na última hora desmarcou, citando um imprevisto. Em 2018, sua assessoria mandou respostas curtas por e-mail.
Luna nasceu em 29 de dezembro de 1949 em Barreiros (PE), é casado e tem três filhos. Antes de se tornar militar, estudou na escola agrotécnica federal de Barreiros de 1962 a 1968. Ingressou na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) em 1969, onde se graduou e foi declarado aspirante-a-oficial da Arma de Engenharia em 16 de dezembro de 1972.
Comandou a 16ª Brigada de Infantaria de Selva em Tefé (AM) de 2002 a 2004. Foi adido militar no Paraguai e em Israel, diretor de patrimônio no Exército, chefe de gabinete do comandante do Exército durante o segundo governo Lula (de 2007 a 2011) e chefe do Estado-Maior durante o governo Dilma (de 2011 a 2014). Antes de ser ministro da Defesa ele foi por três anos o secretário-executivo da pasta, nomeado ao cargo em 2015, no segundo mandato de Dilma.
No seu currículo não há registro de que tenha ocupado qualquer cargo relacionado à produção de combustíveis ou à Petrobras. Agora indicado a presidente da empresa, entre a desconfianças do mercado e a intervenção escancarada de Bolsonaro nos rumos da companhia, poderá ter na mão um outro tipo de prego em brasa - e é uma incógnita como lidará com ele.
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