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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Governo Bolsonaro titulou apenas 3 terras quilombolas, aponta relatório

Membros das comunidades quilombolas durante reunião em Alcântara (MA) - Arquivo Pessoal
Membros das comunidades quilombolas durante reunião em Alcântara (MA) Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

16/04/2021 18h15

Um levantamento realizado pelo projeto Achados e Pedidos concluiu que, durante os dois primeiros anos do governo Jair Bolsonaro, apenas três territórios quilombolas foram titulados pelo Incra, vinculado ao Ministério da Agricultura.

O projeto Achados e Pedidos é uma iniciativa da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e da Transparência Brasil em parceria com a Fiquem Sabendo, com financiamento da Fundação Ford.

O número de titulações quilombolas é o mais baixo desde o início da série histórica. Nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), foram titulados 15 territórios. Nos dois mandatos de Dilma Rousseff (2011-2016), foram 19 titulações. Em seus dois anos, o governo de Michel Temer (2016-2018) titulou oito territórios.

O passivo de processos parado na administração federal sobre esses territórios, contudo, é enorme. A Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) calculou, no início de 2019, que 1.716 processos aguardavam a fase de regularização nos órgãos responsáveis do governo federal.

Na FCP (Fundação Cultural Palmares), vinculada ao Ministério da Cidadania e encarregada de fazer a certificação dos territórios quilombolas, o passo anterior à titulação, a taxa de resolutividade dos processos de 2020, no governo Bolsonaro, também foi a mais baixa da série histórica iniciada em 2003. Apenas 11% dos processos em andamento no ano tiveram resolução no órgão, que é vinculado ao Ministério da Cidadania.

Segundo o estudo, a taxa de resolutividade "representa a proporção de certidões emitidas em determinado ano em relação ao total de processos em andamento naquele ano". A taxa de 2020 foi "14 pontos percentuais menor do que a observada em 2019", que por sua vez foi "bem menor do que os 45% de resolutividade verificados no exercício anterior, quando Michel Temer (MDB) estava na presidência da República".

Em apenas um ano, em 2015, no primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, a taxa foi inferior a 20% (foi de 18%). "A maior taxa de resolutividade foi registrada em 2006, no governo Lula (PT), com 85% de certidões emitidas sobre o total de processos em andamento. Chama atenção também que a quantidade de novas requisições abertas a cada ano vem caindo e, mesmo assim, o governo não consegue dar conta do estoque", diz o levantamento.

A doutoranda em sociologia e líder quilombola Givânia Silva, integrante da Conaq, disse à organização não governamental Terra de Direitos que "na pandemia, as comunidades sem titulação ficaram mais expostas porque não têm território para produzir e ficaram dependentes de produção externa. Muitos quilombolas residem em áreas sem autonomia para criação de mecanismos de proteção no combate à Covid-19".

De acordo com o estudo, os números "refletem a concretização da visão da atual gestão federal em relação à garantia e exercício dos direitos de povos tradicionais, expressa em mais de uma ocasião antes e depois das eleições gerais de 2018".

O relatório lembrou que o próprio Bolsonaro foi alvo de processo por racismo quando era pré-candidato ao cargo, em 2017, após ter dito, durante uma palestra no Clube Hebraica de São Paulo, que havia visitado um quilombo em Eldorado Paulista (SP) e que "o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas". Disse ainda que eles "não fazem nada! Eu acho que nem para procriadores servem mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado [sic] com eles". Afirmou ainda que, caso fosse eleito presidente, não demarcaria mais um centímetro de terras indígenas ou quilombolas. Bolsonaro, lembrou o estudo, foi absolvido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região em setembro de 2918 e o processo foi encerrado em 2019.

O levantamento citou também que o presidente de FCP, o jornalista Sérgio Camargo, foi alvo de um inquérito para investigar possível crime de racismo. A apuração foi aberta a pedido do Ministério Público Federa no ano passado. Em um áudio vazado à imprensa, Camargo se referiu ao movimento negro como "escória maldita" e chamou o líder quilombola Zumbi dos Palmares (1665-1695) de "filho da puta que escravizava pretos".

"O discurso [de membros do governo] é colocado na prática de três principais formas: falta de transparência sobre a execução das políticas, esvaziamento institucional e redução de orçamentos aos menores índices da história recente", diz o relatório.

Estudo encontra problemas na transparência ativa do governo

Para o levantamento, o projeto se valeu de dados em fontes abertas no site da FCP e de respostas do Incra a pedidos feitos por meio da Lei de Acesso à Informação. O processo de coleta das informações "evidenciou os problemas na transparência ativa federal".

"Foi preciso lançar mão de um pedido de acesso a informações para obter os dados usados neste relatório. A exemplo do observado em relação à FCP, as bases apresentam inconsistências que impedem a análise de algumas dimensões da titulação, como as áreas tituladas e o número de famílias beneficiadas", diz o relatório.

"Embora disponibilize os dados em formato aberto, a Fundação Palmares não os mantém atualizados como a Lei de Acesso a Informações exige (art. 6º, II e art. 7º, IV): em 1º de fevereiro de 2021, sua última atualização havia sido em julho de 2020. Após um pedido de acesso à informação, o órgão atualizou as bases com dados até 5 de fevereiro de 2021. Nelas, entretanto, foram encontradas inconsistências (exploradas em detalhes na metodologia) que comprometem a confiabilidade de seu conteúdo."

O Incra mantém em seu site na internet "apenas apresentações em PDF com dados gerais e defasados sobre os processos de titulação, contrariando o que determina a Lei de Acesso a Informações (art. 7º, IV e art. 8º, § 3º, II e III)".

Diretora e cofundadora do Fiquem Sabendo, a jornalista Maria Vitória Ramos disse que "apesar de todo o trabalho para obter os dados, analisar e corrigir as inconsistências, ainda assim não conseguimos dois números fundamentais: o total de famílias beneficiadas e o total da área demarcada até hoje. A base de dados oficial não diferencia a demarcação parcial, quando só um pedaço da terra da demarcada, da titulação completa".

"A obrigação de ter esses dados atualizados, tratados, corretos e acessíveis, é dos órgãos públicos. Estamos falando de números e dados referentes à atividade-fim desses órgãos, não de atividades complementares ou dados suplementares. Estamos falando da razão de existência desses órgãos e dos dados que comprovam - ou não - a execução da sua principal atividade. É responsabilidade da Fundação Cultural Palmares e do Incra disponibilizar dados adequados que permitam avaliar como os órgãos estão desempenhando seu papel principal", disse Maria Vitória.

"Uma coisa importante na metodologia foi buscar o ritmo de demarcação frente ao estoque de processos do ano anterior. Se fizermos uma análise simples pela quantidade de processos aprovados no ano, por exemplo, não é possível dimensionar a eficiência dos órgãos responsáveis. Se o órgão demarcou algumas terras a mais naquele ano, não significa um melhor desempenho necessariamente. A eficiência da pasta só pode ser pode ser avaliada quando analisamos as titulações concluídas em relação ao estoque do ano anterior."

Procurados por meio de suas assessorias nesta quinta-feira (15), o Incra e a FCP não haviam se manifestado até o fechamento deste texto. Se os órgãos se manifestarem, este texto será atualizado.