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Incra promove cerco a servidoras que liberaram créditos para quilombolas
O Incra investe contra três servidoras do próprio órgão que liberaram ou concordaram com a liberação de créditos para mais de 2 mil famílias em territórios quilombolas de Sergipe que vivem em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar.
A maior parte dos recursos agora questionada foi do chamado "Apoio Inicial", pelo qual as famílias podem adquirir bens de primeira necessidade, como alimentos e roupas, e utensílios domésticos como fogão e geladeira.
Considerando o número de famílias beneficiadas, os gastos do Incra se revelam muito pequenos. Os recursos agora colocados em xeque compreenderam cerca de R$ 11 milhões ao longo de três anos para um total de 2.015 famílias em 13 TQs (Territórios Quilombolas). Assim, seria um crédito de R$ 5,4 mil em média por família ao longo dos três anos. Os recursos, contudo, não eram mensais. Há comunidades que só receberam em 2018, e nada mais depois.
Na comunidade de Caraíbas, em Canhoba (SE), recursos chegaram no final de 2018 para 148 famílias, depois nada ao longo do governo de Jair Bolsonaro, de acordo com a líder quilombola Xifroneze Santos, integrante da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas). A primeira e única liberação foi "essencial" para as famílias, disse a liderança.
"O recurso chegou no Natal, quando muitas famílias não tinham nem um pão para fazer sua ceia. Todo mundo sorriu. O recurso movimentou a comunidade e o comércio do município de uma forma que todos saíram ganhando. Representou um avanço muito grande e significativo na vida das famílias no sentido de garantir qualidade de vida naquilo que as famílias não conseguiam alcançar. Melhorar sua casa, garantir um transporte, poder gerar outras rendas", disse Xifroneze.
Sob a alegação de que houve "irregularidades" na liberação de "69,9%" dos recursos, a Superintendência do órgão no Estado acionou a Polícia Federal, o TCU (Tribunal de Contas da União), o MPF (Ministério Público Federal) e a CGU (Controladoria Geral da União) para que investiguem os atos das servidoras e também de um ex-superintendente e um técnico.
Em nota à coluna, o Incra afirmou que acionou os órgãos "para que sejam analisados os fatos, pondere-se sobre sua ilegalidade, e, seja verificado a materialidade e autoria de possível ilegalidade, dentro do princípio do contraditório e ampla defesa". Um dos território citados pelo órgão é o da comunidade de Caraíbas. Ao final do texto, mais sobre a manifestação do Incra.
No último dia 27, o site "Brasil de Fato" antecipou que a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) preparava uma denúncia contra a superintendência do Incra em Sergipe "por racismo institucional e perseguição" às servidoras no Estado. A coluna teve acesso a um conjunto de documentos sobre o assunto.
O questionamento do Incra sobre a liberação dos créditos gira em torno de um decreto editado em 2018, durante o governo de Michel Temer (2016-2018), de número 9414, que passou a restringir o acesso de quilombolas às políticas públicas de reconhecimento e de apoio público aos territórios quilombolas.
No entanto, o relatório final apresentado ao órgão pelas servidoras - como uma espécie de defesa preliminar - aponta que o critério utilizado para a liberação dos recursos vinha sendo o mesmo desde 2018, com aprovação do próprio comando do órgão, inclusive da área jurídica, e que essa prática só foi questionada pela primeira vez no órgão sergipano em janeiro de 2021. Durante o governo Bolsonaro, já houve trocas de superintendentes do Incra em Sergipe em 2019, 2020 e 2021.
Políticas públicas são fundamentais para quilombolas, diz MPF
O atual superintendente, o advogado Victor Alexandre Sande Santos, é indicado de fora dos quadros do órgão. Ele foi nomeado em julho de 2020, deixou o cargo em janeiro de 2021 e voltou em junho de 2021 - o que demonstra a instabilidade administrativa da superintendência, que também foi ocupada por um interino em 2020. Até entrar no Incra pela primeira vez, Sande atuava como advogado de várias empresas do Nordeste na condição de sócio-gerente de um escritório de advocacia que atua em "relações trabalhistas, contratos bancários e imobiliários, família e sucessão, relações de consumo e responsabilidade civil".
Os ofícios enviados às autoridades no último dia 6 de agosto foram subscritos por Sande. Nos textos, o Incra deixou de informar que a liberação dos créditos foi acompanhada e teve entendimento positivo do MPF, tanto em Sergipe quanto na 6ª Câmara, vinculada à PGR (Procuradoria Geral da República), em Brasília. As informações sobre a posição do MPF constam da íntegra da documentação, que foi enviada por Sande aos órgãos federais de controle, mas não foram salientadas no corpo dos ofícios.
Em fevereiro passado, por exemplo, a subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6ª Câmara, Eliana Peres Torelly de Carvalho, afirmou em ofício que "a Nota Técnica conclui que o instrumento proposto pela Superintendência do Instituto de Reforma Agrária/SE mostra-se da maior relevância, seja por seu conteúdo, seja sob a perspectiva sociocultural, por permitir que comunidades quilombolas, não possuidoras de títulos de seus territórios possam acessar políticas públicas como o PNRA [Plano Nacional de Reforma Agrária], fundamentais para sua sobrevivência, ao tempo que vislumbra dar alguma proteção à posse dessas comunidades, cujos processos de regularização são lentos".
A procuradora da República em Aracaju (SE), Lívia Nascimento Tinôco, acompanha toda a política federal a respeito dos territórios quilombolas em Sergipe, por meio de um inquérito civil, e já havia emitido uma recomendação ao Incra no sentido de que se abstivesse de "realizar revisão administrativa causadora de prejuízos ao erário, à segurança e à estabilidade das relações entre a administração pública e os administrados, bem como danos aos direitos territoriais" de comunidades quilombolas "que já tiveram seus processos administrativos integralmente concluídos, aguardando apenas a publicação do decreto presidencial que declare seus territórios como de interesse público para fins de desapropriação".
Área jurídica do Incra havia apontado ausência de ilegalidades
No conjunto de documentos que trata do assunto consta o relatório, em resposta a uma "solicitação de auditoria", produzido pelas servidoras Robervone Nascimento e Sany Mota Fonte, ambas engenheiras agrônomas. Elas explicaram que tudo foi feito com o acompanhamento do comando do órgão em Sergipe e do MPF, "guardião da ordem jurídica e do regime democrático", e que "o Termo de Reconhecimento de Posse e Uso Coletivo revestiu-se de todos atributos necessários a um ato administrativo perfeito".
"Recomendamos que a Autarquia [Incra] deve de pronto restabelecer tratamento igual aos diferentes públicos do PNRA [Programa Nacional de Reforma Agrária], devendo retomar de imediato a concessão de crédito instalação a todas as comunidades quilombolas do estado do SE e, em todo País, evitando-se fomentar o cerceamento de todos os direitos garantidos constitucionalmente a essa população tão vilipendiada, aviltada em seu direito de sobreviver analogamente aos seus pares", apontou o relatório.
As servidoras citaram ainda a manifestação do procurador chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra em Sergipe, Marcos Bispo dos Santos Andrade. Em agosto de 2021, ele reafirmou um parecer de 2018 pela legalidade das concessões. Ele disse que seu entendimento na época estava "lastreado em fundamentado estudo técnico e interesse político institucional" e que "nenhum ato ali praticado está eivado de
ilegalidade". Se houver uma "superação" do entendimento, diz o procurador, a "nova interpretação" deveria seguir de agosto de 2021 em diante.
Além de Robervone e Sany (então Chefe de Divisão), outro alvo do comando do órgão é a analista em reforma e desenvolvimento agrários Lidiane Carvalho Amorim de Sousa Dourado, que elaborou pareceres e uma nota técnica que recomendou a instituição do Termo de Reconhecimento de Posse e Uso em favor das comunidades quilombolas. O objetivo do termo é justamente a proteção possessória a fim de viabilizar o acesso às políticas do Programa Nacional de Reforma Agrária. Além do Termo, o Incra atualmente utiliza um Termo de Compromisso para o caso dos territórios quilombolas sobrepostos a unidade de conservação.
Para a liderança quilombola Xifroneze Santos, a movimentação do Incra contra as servidoras vai impedir que outros servidores do órgão "façam o seu papel".
"É uma escravidão moderna. É uma forma de criminalizar um servidor para colocar as pessoas 'nos troncos'. O servidor perseguido não vai ter força nem coragem para trabalhar em prol de uma população. Ou seja, vai parar, só vai fazer o que seu 'capitão' está mandando. O Estado oprime dessa forma", disse Xifroneze.
Incra diz que recomendação do MPF foi "prejudicial" ao órgão
Em nota à coluna, o Incra nacional repassou a manifestação da Superintendência Regional do Incra em Sergipe, segundo a qual a inserção das comunidades quilombolas na política de crédito foi estabelecida por uma portaria e um parecer de 2016 e que o "impasse em relação aos procedimentos de pagamento de créditos a algumas comunidades remanescentes de quilombo" surgiu após uma "consulta formalizada pela então gestão da regional em abril de 2020".
Depois da consulta, disse o órgão, "houve uma série de análises pelas Diretorias de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamentos e de Governança Fundiária, além da Procuradoria Federal Especializada do Incra Sede". O levantamento foi seguido de um parecer e uma nota, de 2021, da Procuradoria do Incra, vinculada à AGU (Advocacia Geral da União), que apontou "a ilegalidade da proposta de adoção do instrumento Termo de Reconhecimento de Uso e Posse Coletiva, para fins de concessão do Crédito de Instalação previsto no Decreto 9.414/2018".
O Incra afirmou que "apenas as comunidades remanescentes de quilombo que formalizaram o Termo de Reconhecimento de Uso e Posse Coletiva, documento criado na Superintendência Regional de Sergipe, sem autorização superior, sem amparo em lei e considerado ilegal, tiveram a concessão de créditos suspensas"
"É importante reafirmar que a política de pagamento de créditos às comunidades remanescentes de quilombo em Sergipe não está paralisada, mas está restrita às comunidades que possuem CCDRU ou TD", diz o Incra.
O órgão afirmou ainda que manifestação jurídica da sua Procuradoria considerou que a recomendação expedida pelo MPF "não tem valor", "foi prejudicial ao Incra" e que o MPF "recomendou ao Incra proceder ao arrepio da lei e em clara ofensa a princípios de direito orçamentário e financeiro, indicando-se todo os motivos para o não atendimento da Recomendação expedida".
"Logo, em que pese a orientação do MPF, a mesma não levou em consideração a legislação vigente que somente permite a concessão de crédito às comunidades quilombolas, àquelas que tiveram as famílias quilombolas reconhecidas como beneficiárias da Política Nacional de Reforma Agrária, e, para isso, a referida comunidade deverá ter Título de Domínio ou Contrato de Concessão de Direito Real de Uso", diz o parecer citado pelo órgão na resposta à coluna.
Sobre ter acionado os diversos órgãos para investigar o assunto, o Incra afirmou que, em fevereiro de 2021, "após diversas constatações sobre o pagamento de crédito às comunidades quilombolas no estado", o Gabinete da Superintendência Regional em Sergipe enviou ofício à sede do órgão, em Brasília.
Em abril, "a superintendência foi instada a se manifestar à Auditoria Interna do Incra Sede, com o fito de 'Identificar se dos territórios quilombolas a seguir relacionados possuem a titulação de que trata o art. 24 da IN Incra Nº 57/2009 ou Título de Reconhecimento de Domínio, ou título de Concessão de Direito Real de Uso Coletivo'."
No mês passado, "foi apresentado o Relatório Preliminar da Auditoria". Em setembro de 2021, a Controladoria Geral da União instaurou uma auditoria. "Coube à atual gestão da regional, após tomar ciência dos fatos, submeter a instâncias e instituições competentes, inclusive à Seção de Correição do Incra, para que sejam analisados os fatos, pondere-se sobre sua ilegalidade, e, seja verificado a materialidade e autoria de possível ilegalidade, dentro do princípio do contraditório e ampla defesa", disse o Incra na nota.
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