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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Esvaziado, Incra pagará R$ 22 milhões para autarquia do MEC titular lotes

Grupo protesta contra despejo de acampamento do MST em MG: "Zema covarde" - Divulgação/MST
Grupo protesta contra despejo de acampamento do MST em MG: 'Zema covarde' Imagem: Divulgação/MST

Colunista do UOL

04/07/2021 04h01

Resumo da notícia

  • Para especialistas, parceria aprofunda esvaziamento do serviço público e transfere competências do órgão encarregado da reforma agrária no país
  • Termo foi assinado entre o Incra e instituto federal a fim de realizar as etapas anteriores ao ato da titulação em Goiás, Bahia e Tocantins

Esvaziado e com o plano de reforma agrária praticamente paralisado desde o início do governo de Jair Bolsonaro (semp partido), o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) decidiu repassar R$ 22,5 milhões para um instituto vinculado ao MEC (Ministério da Educação) fazer o trabalho que dá base à titulação final de lotes de assentamentos da reforma agrária.

Embora o ato formal da titulação continue na alçada do Incra, todas as etapas anteriores, como levantamento de informações e coleta de documentos dos beneficiários, georreferenciamento dos lotes e regularização de ocupantes deverão ser feitas pelo IF Goiano (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano), uma autarquia federal, em três estados (Goiás, Bahia e Tocantins).

Para especialistas e servidores do Incra ouvidos pela coluna, a parceria representa o aprofundamento da estratégia de terceirização das ações do Incra e o aumento do foco na titulação dos lotes.

A titulação abre espaço para a venda dos terrenos a grandes fazendeiros, o que reduz o campo da agricultura familiar e permite uma nova concentração de terras no país, subvertendo o propósito do programa da reforma agrária previsto na Constituição de 1988.

Com o título final nas mãos, o assentado pode ceder às pressões e ofertas dos vizinhos economicamente mais poderosos e abrir mão do lote.

Desembolso de R$ 9,8 milhões

Documentos obtidos pela coluna mostram que o repasse de recursos ao IF Goiano, chamado tecnicamente de TED (Termo de Execução Descentralizada), foi assinado em dezembro de 2020, vale até dezembro de 2023 e já levou ao desembolso de R$ 9,8 milhões.

O gasto chama a atenção num momento de grande esvaziamento das ações e do orçamento do Incra. Um levantamento feito no ano passado pela CNASI (Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra) mostrou que o orçamento do órgão naquele ano representava cerca de um quinto do praticado, por exemplo, no ano 2000, em valores atualizados.

Histórico do orçamento discricionário do Incra de 2010 a 2020 informado ao STF pelo órgão  - Reprodução - Reprodução
Histórico do orçamento discricionário do Incra de 2010 a 2020 informado ao STF pelo órgão
Imagem: Reprodução

O orçamento do Incra registrou em 2007, por exemplo, um total de R$ 3,5 bilhões em valores pagos e não atualizados. A cifra caiu para R$ 1,3 bilhão em 2019, ou seja, antes da pandemia do novo coronavírus. O próprio Incra, numa nota técnica enviada ao STF (Supremo Tribunal Federal), reconheceu um tombo histórico no programa da reforma agrária no país, embora tivesse negado a paralisia.

As entidades representativas da categoria estimam que o número de servidores no órgão desabou de 9 mil, há cerca de 20 anos, para cerca de 3 mil atualmente.

Para especialista, "transferência de competências não é normal"

O doutor em geografia humana pela USP (Universidade de São Paulo) e um dos principais especialistas em reforma agrária, Ariovaldo Umbelino Oliveira, disse que o TED com o instituto federal "evidentemente não é normal". "É uma atividade para a qual o Incra deveria ter um corpo técnico para poder fazer. O Incra está transferindo competências que lhes são próprias. Parto do princípio que o Incra tem competência e não deveria fazer o que está fazendo, transferir. É o esvaziamento do serviço público", disse o professor.

Indagado se o IF Goiano é conhecido no país por trabalhos anteriores de análise e regularização de lotes em projetos de assentamentos da reforma agrária, o professor disse que "não tinha ouvido falar, para mim não tem expressão nenhuma no debate político sobre a reforma agrária, não tem e não teve". Porém, ponderou o professor, o instituto pode "até fazer melhor do que o Incra, ou contratar pessoal especializado, não entro nesse mérito; não podemos analisar o que ele pode ou vai fazer, e sim o seu passado".

De acordo com o geógrafo, há hoje "duas posições em debate" sobre o tema da titulação dos lotes. A primeira, do Incra e do governo Bolsonaro na figura do ruralista Nabhan Garcia, que é assessor especial do Ministério da Agricultura, diz que o Incra está apenas cumprindo a lei porque a maioria dos assentamentos tem mais de dez anos, o que levaria a uma avaliação dos lotes para a emissão dos títulos.

A segunda corrente, levantada por organizações não governamentais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), porém, observa que a estratégia por trás desse raciocínio é a abertura de espaço para os grandes proprietários de terra ampliarem seus domínios, incorporando terras da reforma agrária.

"Essas pequenas propriedades recém-tituladas podem ser facilmente compradas por um movimento especulativo de grandes produtores no Brasil. É isso que está em jogo. É facilitar o trabalho da especulação imobiliária. Hoje a estrutura fundiária é violentamente concentrada, em que se tem um percentual baixo de produtores com uma quantidade muito grande de áreas, inclusive com quadro de terra improdutiva", disse o professor, que se filia à segunda correte do debate.

O engenheiro agrônomo Gerson Teixeira, ex-presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e assessor da liderança do PT na Câmara, disse que "nunca ouviu falar" nem conhece o instituto como vinculado ao tema da reforma agrária. Para ele, o foco do governo Bolsonaro na titulação é uma reivindicação do setor ruralista, que pretende ganhar competitividade no mercado internacional do agronegócio.

"Os fazendeiros hoje, em função da crise fiscal, não estão tendo as montanhas de subsídios que eles estavam acostumados a ter. Sempre dependeram do Estado. Hoje, as subvenções para os agricultores estão abaixo dos US$ 3 bilhões ao ano, enquanto nos EUA são de US$ 50 bilhões, na China são US$ 250 bilhões. Então eles perdem a competitividade lá fora. A estratégia que usam para se contrapor isso é a escala. E a escala significa a incorporação de mais terras. Por isso que esse binômio terra e desmonte da legislação ambiental é fundamental para eles. Eles compensam com passivo ambiental, escala, precarização do trabalho."

Incra diz que instituto de Goiás é "referência"

Em nota à coluna, o Incra afirmou que "o IF Goiano é uma instituição federal de referência em pesquisa, ensino e extensão, com atuação junto ao público da agricultura familiar e da reforma agrária".

"A formalização de instrumento legal com instituições de ensino, que já estabelecem parcerias com outros órgãos do governo federal, tem agregado outras contribuições ao processo de reforma agrária, por meio da pesquisa aplicada, elaboração de estudos na área e na contribuição na política de desenvolvimento dos assentamentos", disse o Incra, na nota.

O órgão afirmou que, com a "formalização de parcerias", ele "avalia sua capacidade operacional, bem como suas necessidades de formalização de instrumentos legais necessários ao atendimento de suas metas e objetivos, de forma discricionária, respeitando seu planejamento orçamentário aprovado na Lei Orçamentária Anual".

Indagado se outros termos de execução descentralizada estão sendo ou serão feitos para outros Estados do país, o Incra não respondeu, dizendo apenas que "possui outros termos de execução com outras instituições federais para execução de serviços visando o atendimento de demandas de famílias assentadas no país". Disse ainda que "possui convênios, termos de parceria, termos de execução descentralizada, acordos e termos de cooperação, além de outros instrumentos legais, com diferentes órgãos e entidades da Administração Pública Federal, Estadual, Distrital e Municipal". E que "tais parcerias são importantes para assegurar o atendimento das metas e ações do Incra e tem respaldo legal".

Em nota à coluna, o IF Goiano afirmou que "atende mais de 25 alunos em todo o estado de Goiás, em diversos eixos tecnológicos, com cursos em diferentes áreas, abrangendo desde a formação inicial e continuada até a pós-graduação Stricto sensu" e que desenvolve "pesquisas aplicadas, desenvolvimento tecnológico, formação de recursos humanos e atividades de extensão".

Sobre o trabalho com o Incra, o IF Goiano afirmou que "conta com pesquisadores de seu quadro funcional, pesquisadores de quadros de instituições parceiras e alunos, cujos projetos de pesquisa são vinculados ao objeto desta atividade, que inclui trabalhos de estudantes de pós-doutorado, trabalhos de estudantes de pós-graduação nos mais diversos níveis e trabalhos de estudantes graduação. A Instituição projeta o envolvimento de 4 coordenadores, 35 pesquisadores e 16 alunos. Além da equipe de pesquisa, há os serviços de apoio à pesquisa que atuarão nas atividades deste TED. Ao todo, estima-se uma quantidade aproximada de 135 pessoas atuando nestas atividades".

Indagado sobre quais são as instituições parceiras citadas na resposta, não houve resposta. Instado a citar as suas experiências anteriores com o tipo de trabalho acertado com o Incra para titulação de imóveis rurais, não houve resposta.