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Rubens Valente

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Livro de Moro conta uma história da carochinha sobre "combate à corrupção"

Moro e Bolsonaro de mãos dadas, sorrindo na época em que o ex-juiz era ministro da Justiça - Agência Brasil
Moro e Bolsonaro de mãos dadas, sorrindo na época em que o ex-juiz era ministro da Justiça Imagem: Agência Brasil

Colunista do UOL

13/12/2021 04h00

O ex-juiz Sergio Moro (Podemos) tem pela frente um problema lógico para sua participação nos debates eleitorais do ano que vem sobre o chamado "combate à corrupção". Pelo que se viu até agora, ele continuará usando a Operação Lava Jato como ativo eleitoral sem conceder que ela existiu porque o governo de Dilma Rousseff (PT), do partido do seu opositor Luiz Inácio Lula da Silva, apoiou e sustentou a investigação.

A desinformação de que a Lava Jato só pôde ser desencadeada graças às ações dele mesmo, Moro, e de um grupo de policiais federais e procuradores de Curitiba (PR) impregna o livro autobiográfico do ex-juiz "Contra o sistema de corrupção" (Ed. Sextante). A versão ignora todo o contexto político que possibilitou a existência de uma operação com aquela dimensão. Mas serve para reforçar o que o ex-juiz jura não praticar: a fabricação de um mito.

"Um grupo de policiais, procuradores da República, advogados e juízes, com grande apoio da população e da opinião pública, conseguiu vitórias importantes contra a corrupção", escreveu Moro orgulhosamente na sua obra. Em outro trecho, explicou que "aparentemente, o combate ao crime também o é [contagiante]: às vezes as instituições precisam apenas de um empurrãozinho para começar". Na semana passada, em entrevista à Rádio Tupi, o ex-juiz disse: "O que aconteceu foi sim que nós fomos firmes contra a corrupção".

A cantilena da polícia 'de Estado, não de governo'

Uma das maiores falácias repetidas nos cinco anos de glória da Operação Lava Jato (2014-2018) era dizer que o chamado "combate à corrupção" no Brasil "é uma política de Estado, não de governo" e que órgãos do Executivo como a Polícia Federal são "instituições de Estado, e não de governo". Por essa lógica, a Lava Jato teria sido um procedimento inexorável, indiferente ao governo de plantão.

Era uma forma que adversários políticos de Dilma e do PT encontraram para diminuir o papel do governo da época na gênese e no desenvolvimento da Lava Jato, então apoiada por milhões de brasileiros. A Lava Jato representava votos, muitos votos, e esse capital eleitoral precisava ser diluído pelos adversários como "política de Estado, não de governo".

Em julho de 2015, por exemplo, o então senador Aécio Neves (PSDB-MG), que depois seria acusado pela própria Lava Jato, disse à imprensa: "Essas instituições [MPF e PF] não são de governo, elas são de Estado. A Polícia Federal pertence ao Estado brasileiro e tem que investigar, e tem que buscar punir todos os agentes que cometeram crime independe de partidos políticos".

Dilma teve que defender o papel do seu governo na Lava Jato algumas vezes. Para o desconforto de quem pretende reescrever fatos com base no que se sabe em 2021, a então presidente declarou a respeito da Lava Jato em novembro de 2014, por exemplo, logo após uma das fases da operação ter prendido executivos de grandes empreiteiras e dirigentes da Petrobras: "Acredito que [a Lava Jato] é uma questão simbólica para o país. Acho que é a primeira grande investigação efetiva sobre corrupção no Brasil que envolve segmentos privados e públicos. [...] Eu acho que isso pode, de fato, mudar o país para sempre".

No debate promovido pela TV Globo no segundo turno das eleições de 2014, Dilma reiterou: "Eu tenho orgulho de ter dado inteira autonomia, que não era dada nos governos anteriores, porque nomeavam filiados de partidos para dirigir a Polícia Federal. A Polícia Federal no meu governo investiga".

Lula e Dilma - Charles Platiau/Reuters - Charles Platiau/Reuters
Imagem: Charles Platiau/Reuters

Em março de 2015, quando a Lava Jato chegou a uma lista de 49 políticos sob investigação, a direção nacional do PT emitiu uma nota pública pela qual pediu "ampla defesa" aos acusados e "devido processo legal", mas manifestou seu apoio à Operação Lava Jato. "Reafirmamos integral apoio ao prosseguimento das investigações que se realizam no âmbito da chamada Operação Lava Jato, de forma completa e rigorosa, sem favorecimentos ou parcialidade, nos marcos do Estado Democrático de Direito."

A nota disse ainda: "O PT se orgulha de liderar governos que combatem implacavelmente a corrupção. Foram os governos Lula e Dilma que mais combateram a corrupção, fortalecendo os órgãos de fiscalização e controle e garantindo a independência e a autonomia do Ministério Público e da Polícia Federal".

Mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa das raras vezes em que se manifestou sobre a Lava Jato antes de ser alvo da operação, em março de 2015 fez críticas sobre supostos "vazamentos" à mídia, mas acrescentou que "nem tudo que é falado [sobre a investigação] é mentira, mas nem tudo é verdade".

Lula acrescentou: "Se alguém, mesmo que seja do PT, praticou qualquer ato de corrupção, ele tem de ser punido". Em outro evento, em abril de 2015, Lula advertiu que "nós temos que ter mais cuidado e o PT tem que errar menos". "O PT não pode fazer aquilo que ele criticava nos outros, tem que ser exemplo."

Governo intermediou acordos essenciais para a investigação

As declarações públicas de Dilma de apoio à investigação nos seus primeiros anos inexistem no livro de Moro. Em vários trechos da obra, por outro lado, ele exaltou o papel do Judiciário - por extensão, ele mesmo. Um juiz, entretanto, pouco ou nada pode fazer se no processo não atuar uma polícia diligente e tecnicamente capaz de obter provas, uma Receita que cruze os dados tributários com rigor, um Coaf, a unidade de inteligência financeira do governo federal, que consiga extrair alguma conclusão da maçaroca de milhares de transações bancárias, entre vários outros servidores do Executivo.

A capacidade investigativa do MPF também fica em boa parte dependente do trabalho da PF e de seus peritos criminais federais, agentes e delegados, dos auditores da Receita e da CGU, dos analistas do Coaf, de bancários.

Não é demais reforçar que o chamado "combate à corrupção" nunca será feito exclusivamente por um juiz - embora ele tenha um papel relevante em todo o processo, como Moro obviamente teve na Lava Jato de Curitiba, não se trata de negar o fato. Mas quem está de fato no comando da produção e localização das eventuais provas é o Executivo e é o MPF. Sem governo e MPF decididos e com liberdade para atuar, não há "juiz herói". Sem investigação, não há corrupção provada nem desfecho correto do processo, inclusive para inocentar um suspeito, se for o caso.

Em seu livro, Moro disse que os acordos de colaboração premiada na Lava Jato "ajudaram muito", mas foram o "trabalho de rastreamento do dinheiro e o cruzamento de dados, além da cooperação jurídica internacional, que permitiram revelar e provar todo o sistema de corrupção". Explicou ainda que a delação do poderoso empresário Marcelo Odebrecht só foi possível depois que a Lava Jato obteve "provas contundentes contra a empresa e seus dirigentes por meio de cooperação com outros países".

O ex-juiz providencialmente deixou de explicar quem eram os responsáveis por intermediar e cobrar o cumprimento da "cooperação jurídica internacional": uma PGR independente, a partir do procurador-geral da República nomeado por Dilma, Rodrigo Janot, e o Ministério da Justiça, em Brasília, então ocupado por um conhecido petista, o ex-deputado federal José Eduardo Cardozo, outro nomeado pela gestão petista. Ao ministério também está vinculada a direção-geral da PF. O MJ tem todo um aparato voltado para o tema da cooperação com outros países, como o DRCI, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional.

O nome de Cardozo não foi citado por Moro ao longo do livro. O de Janot foi mencionado uma única vez, no contexto de negociações para duas colaborações premiadas no início da Lava Jato. Também não foram mencionados o delegado Leandro Daiello, diretor-geral da PF ao longo da Lava Jato de 2014 a 2017, e os secretários da Receita Federal de 2014 a 2016 Carlos Alberto Barreto e Jorge Rachid. Nem o presidente do Coaf, Antônio Gustavo Rodrigues.

O suposto lapso de Moro é explicável. Expor a gama de atores dentro de um governo petista prejudicaria sua descrição da Lava Jato como um produto do Judiciário e de "um grupo" de "policiais, procuradores, advogados e juízes" que se voltam "contra o sistema de corrupção". Também ressaltaria as mais diversas comparações com o processo de desmonte dos órgãos de fiscalização e controle protagonizado por Bolsonaro, do qual Moro foi ministro. É educativo, nesse sentido, ver o caso da extradição do bolsonarista Allan dos Santos.

Ministros que garantiram a operação foram nomeados por Dilma

Numa rara concessão ao longo do livro, Moro disse que o ministro do STF Teori Zavascki "seria um dos grandes responsáveis pelo sucesso da operação" e que ele "proferiu decisões firmes e ponderadas e liderou seus pares no STF para apoiar os avanços anticorrupção no Brasil". Morto em janeiro de 2017 num acidente aéreo, Teori foi substituído na relatoria dos casos ligados à Lava Jato pelo ministro Edson Fachin. Sobre este, Moro trouxe de novo ótimas referências: "Fachin também se destacou na condução dos processos, honrando o legado do seu antecessor. A Lava Jato estava de novo em boas mãos".

Nas duas citações, Moro, acometido novamente de amnésia seletiva, deixou de explicar que Teori e Fachin foram nomeados por indicação da então presidente petista, Dilma. Cada um a seu modo, como sabemos, ambos garantiram a existência e o desenvolvimento da Lava Jato dentro de uma segurança jurídica que julgavam adequada. Mas seria assim com André Mendonça, por exemplo, escolhido ao STF pelo governo Bolsonaro, ao qual Moro serviu, se as revelações atingissem o governo que o indicou ao cargo? O que sabemos é que nem Teori nem Fachin tiveram que fazer juras públicas de fé no Evangelho para serem aceitos como intérpretes da Constituição.

André Mendonça, ministro da Justiça, presta continência ao presidente Jair Bolsonaro ao tomar posse - TV Brasil/Reprodução - TV Brasil/Reprodução
André Mendonça, ministro da Justiça, presta continência ao presidente Jair Bolsonaro ao tomar posse
Imagem: TV Brasil/Reprodução

Seguramente muitos livros podem ser escritos sobre corrupção durante os governos do PT, começando pelos dois grandes escândalos, o do mensalão e o da Petrobras. Governos anteriores não ficarão imunes a esse retrospecto, vide o impeachment de Fernando Collor, do PRN (1992), e os escândalos da emenda da reeleição e da privatização das telefônicas no governo FHC, do PSDB (1995-2002). No caso de Bolsonaro e seu clã, o escândalo do "Orçamento Secreto", revelado pelo jornal "O Estado de São Paulo", e as rachadinhas com dinheiro público.

Contudo, seria uma desonestidade intelectual não reconhecer que a partir de 2003, no primeiro mandato de Lula, houve uma ampla revitalização do combate aos chamados crimes do colarinho branco, com a deflagração de inúmeras operações da PF, órgão então sob o comando do delegado Paulo Lacerda, que contava com o apoio firme do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos (1935-2014).

Inéditas, abrangentes, essas operações abalaram setores dos três Poderes, prenderam empresários, banqueiros, políticos, prefeitos, juízes, governadores. A PF entrou numa atividade frenética que muitas vezes precisou ser acompanhada pelo MPF e pelo Judiciário.

Mas o que Moro refletiu em seu livro sobre todo esse processo, amplamente documentado e noticiado pela mídia? Nada. Simplesmente como se a maior liberdade de ação conferida aos diversos órgãos de fiscalização e controle - todos atuantes na Lava Jato - não tivesse existido a partir de 2003.

Um governo dá ou não impulso ao "combate à corrupção"

A tese de que o "combate à corrupção" existe à revelia de uma decisão de governo é uma quimera. Para quem ainda acreditava na fantasia, foi preciso a chegada ao poder de um presidente como Jair Bolsonaro para deixar tudo mais claro.

Em outras palavras, se Dilma quisesse ter destruído a Lava Jato bastaria ter agido como Bolsonaro tem agido em relação à PF, ao Coaf, à Receita Federal, ou seja, ter tolhido, desestabilizado e colocado em descrédito esses órgãos e suas investigações. Bastaria não ter indicado um Fachin (a nomeação ocorreu um ano após o início da Lava Jato).

Bastaria ter indicado um procurador-geral da República domesticado e fora da lista da tríplice e desmontado as forças-tarefas no MPF, como a PGR sob comando de Augusto Aras fez a partir de 2019. Em 2015, Dilma reconduziu à PGR Rodrigo Janot, que poucos meses depois denunciaria políticos importantes do PT, como Delcídio Amaral, então líder do governo no Senado.

23.ago.2017 - A ex-procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega, com o ex-procurador-geral Rodrigo Janot durante visita ao Brasil em 2017 - Evaristo Sá/AFP/Arquivo - Evaristo Sá/AFP/Arquivo
23.ago.2017 - A ex-procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega, com o ex-procurador-geral Rodrigo Janot durante visita ao Brasil em 2017
Imagem: Evaristo Sá/AFP/Arquivo

É verdade que Dilma foi alvo de críticas sobre uma eventual intervenção branca no Ministério da Justiça, em especial sobre os ditos "vazamentos" de informações, quando nomeou para o cargo um crítico da Lava Jato, o procurador da República Eugênio Aragão. Mas o governo já estava no final e a nova gestão, que durou menos de dois meses, pouco ou nada alterou o desenrolar da investigação. E o diretor-geral da PF foi mantido no cargo por Aragão.

Na prática, um governo pode interromper, prejudicar, fragilizar ou retardar uma investigação da PF e do MPF das mais variadas formas: destituir ocupantes de cargos de chefia, cortar recursos financeiros, atrapalhar politicamente, atacar os responsáveis em declarações públicas. É relativamente fácil, por exemplo, ficar tirando e colocando pessoas em postos-chave desses órgãos, de modo a causar um pandemônio no dia a dia da administração. Assim, o órgão não consegue funcionar como deveria. Em três anos de Bolsonaro, a PF teve três diretores-gerais.

É uma aspiração antiga de delegados da PF que ela seja reconhecida de fato como um "órgão de Estado", ou seja, com total autonomia e mandato temporário para o diretor-geral. Entre vontade e realidade, porém, há um abismo. Hoje o diretor-geral é nomeado pelo presidente da República e pode ser demitido qualquer momento. Como Bolsonaro fez no ano passado com o então diretor-geral Maurício Valeixo, após inúmeras reclamações públicas e humilhações impostas ao delegado.

No final do livro, amargura sobre "um cenário que mudou"

No seu livro, a princípio Moro apresentou aquele mesmo discurso cor-de-rosa: "A polícia judiciária tem autonomia dentro do Poder Executivo para realizar as suas funções, até porque entre elas encontra-se investigar crimes de corrupção que, por vezes, podem envolver o próprio governante".

As palavras são lindas. A realidade, duríssima. Quando foi caminhando para o final do livro, o ex-juiz passou a se queixar: "A minha percepção na época era de que Jair Bolsonaro não tinha qualquer respeito às instituições ou às pessoas". Escreveu ainda que "o presidente estava interferindo na PF sem uma justa casa e sem apresentar qualquer motivo republicano".

Por fim, concluiu amargamente: "Apesar dos esforços de bons policiais, quase não tenho visto qualquer atuação mais significativa da Polícia Federal no combate à corrupção, especialmente em relação a pessoas poderosas. Essas iniciativas parecem estar amortecidas".

Em entrevista recente ao "Correio Braziliense/Estado de Minas", Moro disse que "respeito muito a Polícia Federal como instituição, os delegados, os peritos, os agentes, os servidores. Mas a Polícia Federal de hoje não é a mesma da época da Lava Jato. O cenário mudou completamente".

Ué, mas a Polícia Federal não tem "autonomia dentro do Poder Executivo para executar suas funções"?

A essa altura está claro que o livro é uma peça dentro de um plano de marketing. Moro fez o lançamento da obra quase simultaneamente à sua filiação ao Podemos, pelo qual pretende disputar a Presidência. A versão sobre a Lava Jato desenvolvida no livro se ajusta aos movimentos eleitorais do ex-juiz. Importa, para ele, reduzir o papel dos governos anteriores e enaltecer o seu. É um esforço de propaganda - porém cheio de buracos.