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País teve 211 casos de censura e ataques à cultura em 3 anos, diz relatório
O Brasil registrou ao menos 211 casos de censura, desmonte institucional do setor cultural e "autoritarismo contra a cultura" nos três primeiros anos do governo Jair Bolsonaro. O número consta de levantamento realizado pelo Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), uma coalizão de organizações não governamentais criada em 2020 com o objetivo de monitorar e agir em casos do gênero.
O grosso das iniciativas contra a cultura, com 192 casos (ou 91% do total), partiu do Poder Executivo — o Judiciário foi responsável por 13 casos (6,16%). O Executivo Federal, durante o mandato do presidente Bolsonaro, foi responsável por 72% dos registros.
O relatório indica a tendência de aumento dos casos no país. De janeiro a dezembro de 2020, foram listadas 45 ocorrências no chamado "Mapa da Censura". O número saltou para 70 no ano de 2021. De janeiro a fevereiro de 2022 surgiram mais 11 casos.
Procurada pela coluna no final da tarde desta quarta-feira (16), a Secretaria Especial de Cultura do governo federal não se manifestou até a publicação deste texto.
O Mobile pesquisou casos anteriores à posse de Bolsonaro e localizou apenas 16 registros de 2016 a 2018. A coalizão é formada pelas ONGs Artigo 19, 342 Artes, Artigo Quinto, LAUT, Rede Liberdade e Samambaia Filantropias.
O levantamento, que vai até fevereiro, ainda não inclui o caso rumoroso mais recente, a censura imposta pelo Ministério da Justiça a uma comédia lançada em 2017, "Como se tornar o pior aluno da escola", roteirizada pelo apresentador de TV e humorista Danilo Gentili. O "Mapa da Censura" tem por foco a produção artística e não inclui outras violações de liberdade de expressão registradas, por exemplo, contra jornalistas e empresas jornalísticas.
Governo coloca cultura como 'inimiga', diz gestor cultural
Para o advogado Guilherme Varella, gestor cultural e integrante do Mobile, o "Mapa da Censura" mostra que os principais agentes perpetradores da "agenda de violações contra a cultura" estão no governo federal, tanto na administração direta como na indireta, como o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a Fundação Palmares. A "matriz narrativa", porém, vem do próprio Bolsonaro e seus auxiliares no governo.
"Muito dessa agenda é convocada, acionada e disseminada por ações que não estão no poder formal. Não são um projeto de lei, um decreto, uma medida institucional assinada, mas estão no âmbito discursivo, de ameaça, do ataque. Bolsonaro e o secretário de Cultura [Mario Frias] também acionam, do ponto de vista discursivo, essa agenda conservadora. Quando Caetano Veloso sofre um ataque de Bolsonaro, por exemplo, isso é replicado por sua base de apoiadores", diz o advogado.
Para Varella, o governo trabalha com a lógica de que é "é preciso abalar a reputação do setor artístico. [Por isso] faz sentido sempre criar uma alimentação de destruição da reputação".
Desde que o governo Bolsonaro começou, ele tem anunciado que a cultura não é um setor que será valorizado. Ele anunciou que uma das medidas seria acabar com o Ministério da Cultura, o que fato aconteceu. Tem uma estratégia de fundo que é colocar a cultura como inimiga do governo e assim criar uma atmosfera bélica contra a cultura. Abastecido por medidas concretas"
Guilherme Varella, gestor cultural e integrante do Mobile
Não é mera 'cortina de fumaça', diz especialista
A advogada Denise Dora, diretora regional da Artigo 19, uma organização voltada para a defesa da liberdade de expressão, lembrou que, quando casos do gênero são noticiados, é comum parte das pessoas críticas ao governo entenderem o episódio como "uma cortina de fumaça" criada para desviar a atenção do eleitor de outros temas que seriam piores para a imagem do governo. Dora disse que não é bem assim.
"Esses 211 casos demonstram um padrão, uma estratégia e uma intenção. Ao fazer essa pesquisa e documentar os casos, nós descobrimos que não é 'cortina de fumaça'. É uma destruição sistemática do espaço de produção artística, de opinião, de estética, de manifestações populares artísticas e isso é muito sério", disse.
As artes, a literatura, a música, o grafite, são uma janela para o futuro. As artes sempre são o espaço onde as pessoas se expressam para além do que está colocado hoje. Ao sufocar isso, o que governo Bolsonaro está fazendo, junto com essas forças que o apoiam, é reduzir uma perspectiva de futuro. Não é cortina de fumaça, não é eventual, é muito sólido"
Denise Dora, advogada e diretora regional da Artigo 19
Para Dora, o governo quer "eliminar opiniões diferentes da sua ou interpretações que possam ser diferentes da sua".
"É um governo autocrático, assentado em dogmas, em armas e em uma visão fechada e autoritária do mundo. Esse governo não quer participação popular. Não quer manifestações púbicas contrárias ao governo e não quer uma manifestação artística diferente da sua. Ele tem um projeto de poder de longo prazo autocrático, só para si e seus amigos", afirmou.
Audiovisual, artes plásticas, músicas, teatro, nada escapou
O levantamento do Mobile separou os ataques ao setor cultural em três grupos:
- Contra a liberdade artística e cultural: "compreende a medida autoritária de restrição direta e específica da liberdade do agente artístico e cultural, de sua obra, veículo ou contexto de exibição, de fora prévia (censura) ou durante a realização da manifestação, por ação de qualquer agente estatal". O levantamento registrou, de 2019 a 2021, 96 casos do gênero (ou 45,5% do total de 211 casos).
- Autoritarismo contra a cultura: "Compreende medidas arbitrárias do agente estatal direcionadas ao campo cultural, como atos de repressão, perseguição, enfraquecimento de mecanismos de fiscalização e controle, falta de transparência, levando à restrição de direitos." Foram listados 46 casos do gênero no período (21,8% do total)
- Desmonte da cultura: "Compreende medidas de enfraquecimento institucional da cultura, dissolução de instâncias, aparelhamento ideológico, esvaziamento de instâncias de participação social, estrangulamento financeiro, ingerência indevida nos órgãos e retirada de sua autonomia". Foram identificados 69 casos do gênero no período (32,7% do total).
No campo das "manifestações autoritárias", o estudo do Mobile identificou "ataques a pluralismo e minorias" (52 casos), "construção de inimigos" (110), "legitimação da violência e do vigilantismo" (8), entre outros tópicos.
No recorte sobre os segmentos, as artes plásticas e visuais foram as mais atingidas (35 casos), seguidas de perto pelo audiovisual (33 registros). Houve 23 ataques no setor musical e outros 16 no campo "livros e literatura".
Nos veículos da expressão artística e cultural, filmes (20 casos), livros (14), exposições (13) e peças teatrais (12) foram os mais atingidos.
Nos casos em que foi possível identificar a motivação dos ataques, os "posicionamentos ou críticas políticas" lideram com 74 registros, seguidos pela "afirmação identitária e minorias", com 26 ocorrências. Nudez e conteúdo sexual aparecem em terceiro lugar, com 13 casos, seguidos por "orientação sexual", com 12 registros.
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