Tragédia no RS: Governo Lula aprovou metade do que pediram cidades afetadas
Passados sete meses desde a tragédia ambiental que matou 183 pessoas e deixou 27 desaparecidas, cidades do Rio Grande do Sul ainda tropeçam na burocracia e têm dificuldades para refazer equipamentos de saúde, educação, moradia e prevenção a enchentes destruídos pelas chuvas.
Em mais de um discurso, o presidente Lula disse que o governo federal não mediria esforços para restaurar a "dignidade e o orgulho do povo gaúcho" e entregou ao petista gaúcho e então chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, o controle da secretaria extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, com status de ministério.
Números oficiais demonstram, no entanto, que o esforço não foi suficiente para garantir celeridade aos investimentos para o restabelecimento total das cidades.
Durante os quatro meses de funcionamento da secretaria extraordinária, Pimenta recebeu em reuniões oficiais, por mais de duas vezes, prefeitos ou representantes de 28 cidades do estado, em tese as mais afetadas.
O UOL perguntou às autoridades de cada uma delas o que solicitaram e qual foi o grau de atendimento às demandas para reconstrução de infraestrutura. Das 28, 20 responderam à reportagem e encaminharam informações detalhadas sobre pedidos que somaram R$ 4,6 bilhões.
De acordo com as prefeituras, deste total, o governo federal aprovou pagamentos que somam R$ 2,8 bilhões — o que representa pouco mais da metade do que foi pleiteado.
Quando considerados valores efetivamente pagos aos municípios, e não apenas aprovados, o resultado é ainda menor, de acordo com prefeitos e secretários de Fazenda ouvidos pela reportagem.
Buscar os municípios é a única forma de conhecer estes dados. Isso porque o governo federal não divulga aquilo que demandam os municípios aos diferentes órgãos federais, apenas o que é aprovado e pago a eles.
Pimenta defende os investimentos feitos pelo governo, tratados como ele como "um conjunto de ações" que injetou "R$ 60 bilhões nas cidades".
E diz também que a execução de repasses só ocorre após envio de projetos, licitação e assinatura de contratos, processos cuja celeridade depende dos municípios. (leia mais abaixo).
O balanço de investimentos do governo federal mostra que a maior parte da resposta à tragédia não veio por meio de aportes direto aos municípios, mas por meio da antecipação de repasses obrigatórios, rolamento de dívida e concessão de crédito mais barato a empresários.
São medidas que garantiram, na prática, mais dinheiro no caixa dos municípios durante o período emergencial.
O governo também investiu mais no pagamento direto aos afetados pelas enchentes — uma bolsa mensal de R$ 5.100 paga a 400 mil famílias que foram comprovadamente atingidas pela tragédia, distribuídas por todo o estado.
Dinheiro para projetos não chegou
Mesmo na condição de adversário político de Paulo Pimenta, o prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom (PSDB), reconhece o esforço do ministro no período em que esteve à frente da secretaria extraordinária.
Mas diz que não foi suficiente e apresenta os dados de repasses à sua cidade: de R$ 87,2 milhões solicitados, R$ 34 milhões receberam sinalização positiva do governo. No caixa da prefeitura, até o final de novembro, caiu apenas R$ 4,9 milhões.
"Teve muita boa vontade do Pimenta, mas o dinheiro, de fato, não chegou ainda para resolver os problemas. E olha que fui uma das cidades menos atingidas", diz Pozzobom.
Uma das cidades mais atingidas pela tragédia, São Leopoldo tem na prefeitura Ary Vanazzi (PT), aliado antigo de Pimenta e o mais recebido pelo político durante seu período à frente da secretaria extraordinária — foram 10 vezes.
Ele reconhece o apoio à retirada de água das cidades para recuperação de sistemas de diques e a limpeza da cidade como méritos do governo federal.
Também aplaude o oferecimento de crédito barato a pequenas e médias empresas por meio do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) e o auxílio-reconstrução, que garantiu uma renda a quem perdeu tudo nas enchentes.
"Muito rapidamente os mercados abriram, as cidades voltaram, graças a dinheiro novo que passou a circular na cidade. Meu ISS cresceu 5%", diz o prefeito.
No entanto, os números apresentados pela Prefeitura de São Leopoldo mostram que o tempo de análise de projetos pleiteados para reconstrução de escolas, unidades de saúde e infraestrutura de diques não foi diferente até mesmo na cidade de um aliado político de Pimenta.
Passados seis meses da tragédia do RS, de R$ 278,2 milhões pleiteados pela cidade, R$ 117 milhões foram aprovados pelo governo - o que representa 42% do total.
"Temos que considerar que este foi também o único recurso que recebemos, as cidades se recuperaram. O governo trabalha para ajudar, mas há também a dificuldade de prefeituras carentes de equipe técnica para cumprir aquilo que a burocracia exige", afirma Ary.
A cidade teve 18 escolas atingidas de forma severa pelas enchentes - 3 só voltaram às aulas em agosto.
Naquele mês, três dos oito postos de saúde atingidos severamente pelas enchentes continuavam funcionando em tendas, no modelo de hospital de campanha.
Escolas sem aula
As 14 escolas de Eldorado do Sul, cidade da região metropolitana de Porto Alegre administrada pelo PDT, foram atingidas em nível grave pelas enchentes de maio - o que havia no primeiro pavimento se perdeu, segundo o secretário de Educação da cidade, Gelson Antunes Santos.
"O governo federal mandou apenas R$ 7.500 para cada escola atingida. O que se faz com isso? Absolutamente nada", conta o secretário, que ainda aguardava a aprovação de projetos de reforma por parte do governo.
Além de medidas estruturais, até o início de setembro as escolas ainda precisavam adquirir livros, brinquedos, computadores, mobiliário, equipamentos, nova frota de veículos para buscar as crianças em casa - três ônibus escolares ficaram destruídos. O prejuízo é estimado em R$ 20 milhões.
A ausência de estrutura obrigou a secretaria a estabelecer neste ano um esquema de rodízio.
"Algumas turmas tinham aula presencial três vezes por semana, e duas vezes online. É precário porque muitas famílias perderam tudo, celular, computador, mas a gente faz do jeito que pode", comenta o secretário.
De acordo com Antunes Santos, o governo reconheceu o problema e destinou emergencialmente, em setembro, R$ 300 mil para as escolas, mas o dinheiro é insuficiente.
"A escola é um direito das crianças, não é? Elas falam sobre as enchentes, desenho sobre isso, contam o que aconteceu com suas famílias, o que perderam. A escola voltou a funcionar, mas por causa dos estragos, não está 100%", conta Juliana Silveira, que trabalha na EMEI Arco Íris, em Eldorado do Sul.
Para colocar a educação da cidade de volta aos trilhos, a prefeitura usa o próprio caixa e adia os planos de investimento nas escolas que estavam previstos antes das enchentes.
O mesmo ocorreu em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre.
"Tínhamos recursos próprios para começar as obras, mas não dava para esperar. Nada impede que haja novas tempestades e chuvas intensas neste fim de ano", conta o prefeito da cidade, Jairo Jorge (PSD).
A cidade é a que mais pleiteou recursos ao governo federal - R$ 3,3 bilhões. A maior parte refere-se à construção de 6.500 moradias (R$ 1,3 bilhão) e do cinturão de diques para prevenção à enchentes, que impacta não apenas a cidade, mas toda a região em que se insere (R$ 1 bilhão).
A prefeitura informou que R$ 2,3 bilhões foram pré-aprovados pelo governo federal, mas o valor efetivamente pago corresponde a menos de 10% do que foi pleiteado (R$ 268,4 milhões).
Embora seja grato pelos recursos que chegaram até o momento, ele reclama da demora de chegada dos recursos destinados à educação e à saúde.
"Tem atraso, mas sem aporte do governo federal não teríamos conseguido limpar a cidade", reconhece o prefeito da cidade que teve 68 mil casas atingidas pelas enchentes — 3.000 delas ficaram totalmente destruídas.
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Criado um mês após a tragédia climática, o site "Brasil Unido pelo Rio Grande do Sul" anuncia o aporte de novos recursos que somam R$ 82,9 bilhões.
No entanto, de acordo com o mesmo portal, deste total, apenas um quarto (R$ 20,1 bilhões) já foi efetivamente pago.
Ao detalhar aquilo que de fato saiu dos cofres públicos, percebe-se que o investimento direto é ainda menor: dois terços referem-se a empréstimos que deverão ainda ser pagos por empresas (R$ 10,9 bilhões) ou agricultores (R$ 4 bilhões).
O auxílio-reconstrução consumiu, até agora, R$ 2 bilhões.
Estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (CNC) estimou em R$ 97 bilhões o impacto negativo da tragédia climática do RS na economia.
Uma análise produzida pelo Banco Mundial, BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) apresentou estimativa semelhante: R$ 88,8 bilhões em prejuízo.
"Em qualquer desastre importante no mundo, a maior parte da reconstrução não é realizada no mesmo ano em que o desastre ocorreu. Dada a magnitude deste desastre, espera-se que também sejam direcionados recursos para a reconstrução em 2025 e 2026", registraram as organizações em estudo divulgado há uma semana.
Quando questionado sobre a razão de municípios mais recebidos por ele em audiência terem recebido pouco mais da metade daquilo que solicitam, o ministro Paulo Pimenta mencionou a complexidade de alguns dos projetos e a necessidade de adoção de medidas pelos municípios até que ocorra a liberação de valores, como realização de licitação e contratação de fornecedores.
O governo também considera que alguns dos pedidos feitos pelos municípios não são considerados emergenciais.
Pimenta entende que a resposta do governo deve ser analisada "por um conjunto de ações" que inclui não apenas o repasse direto a municípios, mas também os números do auxílio-reconstrução, a antecipação de benefícios previdenciários e o crédito oferecido a quem perdeu tudo nas enchentes.
"Este conjunto de medidas injetou mais de R$ 60 bilhões na economia do estado", defende o ministro.
De acordo com Pimenta, o trâmite de atendimento às demandas foi mais ágil por conta da estrutura da secretaria criada para atenção à reconstrução do estado — havia um funcionário intermediando a relação dos municípios com cada ministério.
O gaúcho deixou a secretaria extraordinária de olho em 2026: para aliados, ele é o candidato mais provável do partido ao governo do Rio Grande do Sul na disputa estadual.
Em entrevista recente sobre o tema, o ministro citou o último candidato do PT ao governo, como alguém com a "primazia" de disputar uma nova eleição.
"Meu nome está à disposição do partido, do presidente (Lula), mas eu tenho esse respeito e essa consideração pelo Edegar", desconversou.
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