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Relatório do Senado sobre consumo recreativo da maconha usa dados corretos?

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Imagem: Arte/UOL

Tai Nalon e Bárbara Libório

Do Aos Fatos

28/11/2017 04h00

O senador Sérgio Petecão (PSD-AC) apresentou no início deste mês relatório em que rejeita sugestão de origem popular de descriminalização do cultivo da maconha para uso próprio. Em um documento de cinco páginas, diz que tirar penalidades do uso da cannabis para fins recreativos não é "conveniente e nem oportuno". No entanto, para subsidiar sua posição, o relator usa dados de origem não verificada, confunde legalização com descriminalização e faz inferências a partir de consensos científicos não estabelecidos.

Em parceria com o UOL, Aos Fatos checou trechos do relatório apresentado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado. Veja o resultado abaixo.

Ademais, segundo o referido profissional, se as evidências sinalizam que, com a possível liberalização da maconha, haverá aumento de consumo e dos problemas decorrentes desse consumo, apenas se desloca o problema do sistema judicial para o da saúde. Nesse diapasão, podem ser citadas as experiências de países que já descriminalizaram o porte, como é o caso da Holanda, Portugal e Estados Unidos, que passaram a tratar o uso como caso de saúde, e não mais de polícia.

IMPRECISO: É difícil achar consenso quando o tema é aumento ou diminuição da criminalidade depois da descriminalização ou legalização da maconha. Os estudos sobre o assunto não são conclusivos.

Nos Estados Unidos, segundo dados do FBI (agência de inteligência americana), 643 mil pessoas foram presas por maconha em 2015 --uma pessoa a cada 49 segundos. Dessas prisões, 574 mil foram por posse, em vez de distribuição e venda. Mas as prisões diminuíram constantemente desde 2007, quando 872,7 mil pessoas foram presas. O ano de 2015 foi, na verdade, o com menor número de prisões relacionadas a maconha desde 1996.

Um estudo da fundação norte-americana Drug Policy, ONG que promove o debate público sobre o uso de drogas e temas relacionados, diz o mesmo: que as prisões por posse, cultivo e distribuição de maconha caíram desde que os eleitores legalizaram o uso adulto de maconha nos Estados Unidos. No Colorado, o número total de prisões por posse de maconha diminuiu 46% entre 2012 e 2014. Em Washington, a queda foi de 85% entre 2014 e 2015, com as prisões por posse caindo 98%. No Alasca, a redução foi pela metade entre 2013 e 2015, assim como em Oregon de 2011 a 2014.

Nos Estados Unidos, segundo estudo conduzido por pesquisadores australianos e publicado na revista acadêmica "Journal of Public Health Policy", a descriminalização resultou em economias substanciais para a fiscalização das drogas devido ao menor número de casos de posse de cannabis e ao aumento das receitas com impostos e taxas --recursos que podem ser redirecionados para a execução de delitos de tráfico e leis relativas a outras drogas.

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Imagem: Jim Wilson/The New York Times

Na Califórnia, que em 1976 descriminalizou a posse de maconha, os custos passaram de US$ 17 milhões no primeiro semestre de 1975 para menos de US$ 4,4 milhões no primeiro semestre de 1976. Até julho deste ano, o Colorado recolheu meio bilhão de dólares em impostos e taxas desde que legalizou o uso recreativo da erva --foram US$ 506 milhões desde que as vendas no varejo começaram, em janeiro de 2014.

Diz um relatório da Open Society Foundations (organização que atua em temas como liberdade de expressão, transparência e igualdade) que, em Portugal, que descriminalizou o uso da droga em 2001, o número de delitos relacionados com drogas caiu de aproximadamente 14 mil por ano para uma média de 5.000 a 5.500 por ano após a descriminalização. Isso levou a uma redução significativa na proporção de indivíduos presos por essas infrações: em 1999, 44% dos prisioneiros portugueses foram presos por delitos relacionados a drogas, em 2008, esse número foi reduzido para 21%.

O mesmo levantamento também mostra que no Reino Unido, na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos, por exemplo, não foi verificado aumento significativo do consumo de drogas e que, embora tenha sido verificado aumento nas notificações por porte de drogas, não houve aumento dos índices de violência.

Outro estudo publicado na revista científica "The B.E. Journal of Economic Analysis & Policy" examinou a relação entre a legalização da maconha medicinal, a despenalização da posse e a incidência de crimes não relacionados com drogas em lugares com regras mais brandas. Entre 1970 a 2012, verificou-se uma redução de 4% a 12% em assaltos e roubos devido à legalização da maconha medicinal. A despenalização, no entanto, segundo a pesquisa, tem pouco efeito e, em vez diminuir, pode aumentar as taxas de criminalidade. 

O relatório do departamento de segurança pública do Colorado também mostra que o Departamento de Saúde Pública e Meio Ambiente do Estado analisou os dados da Administração do Hospital do Colorado e classificou as visitas de acordo com a indicação de possível exposição à maconha. As hospitalizações com possíveis exposições, diagnósticos ou códigos relacionados por 100 mil hospitalizações aumentaram de 803 por 100 mil antes da comercialização (2001 a 2009) para 2.413 por 100 mil após a comercialização (2014 a junho de 2015).

A comercialização do varejo trouxe um aumento significativo nas visitas ao departamento de emergência, de 739 por 100 mil a 956 por 100 mil. E o número de chamadas ao controle de envenenamento que menciona a exposição humana à maconha aumentou nos últimos dez anos, de 44 chamadas em 2006 a 227 em 2015.

Um dos argumentos mais utilizados por aqueles que defendem a descriminalização seria o de que a sua regulamentação reduziria --ou até eliminaria-- o tráfico de drogas. Entretanto, tal argumento foi refutado pelo representante do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) para o Brasil e para o Cone Sul, Bo Mathiasen, que declarou que a legalização não teria tal efeito, tendo em vista que o tráfico de drogas não existe exclusivamente em consequência do uso da droga.

INSUSTENTÁVEL: Aqui o relatório faz uma confusão entre legalização das drogas e sua descriminalização. Essa diferença é citada no mesmo texto de Bo Mathiasen usado pelo legislador como base no seu relatório: enquanto na legalização todas as possíveis sanções são eliminadas, na descriminalização o ato deixa de ser ilícito apenas do ponto de vista penal, mas o indivíduo ainda pode sofrer punições administrativas --ou seja, os indivíduos deixam de estar sujeitos à possibilidade de cumprimento de pena de prisão, mas o consumo continua sendo proibido e suscetível a alguma sanção. Em seu texto, Mathiasen defende que os usuários de drogas precisam de acesso à saúde e à assistência social, e não de sanção criminal.

Misturar descriminalização com legalização é um erro comum, mas qualquer associação com consequências decorrentes de qualquer dessas medidas deve ser vista com cuidado. No texto do relatório, o senador não faz essa diferenciação. Já a ONU, e não só Mathiasen, é contra inclusive a legalização da maconha para fins medicinais desde sua convenção de 1961 para drogas e narcóticos.

Já nos Estados Unidos, em 2015, os dados da Patrulha da Fronteira mostraram que as apreensões de maconha ao longo da fronteira com o México caíram para o seu nível mais baixo em pelo menos uma década, em um sinal de que os produtores mexicanos estão tendo dificuldade em competir com a produção doméstica. À medida que essa produção aumentou em lugares como a Califórnia, Colorado e Washington, os preços da maconha caíram e a qualidade da maconha produzida nos EUA e no Canadá se mostrou superior.

Os usuários acabariam sendo levados para o uso de drogas mais fortes e, muitas vezes, enveredariam para o mundo crime.

EXAGERADO: Pesquisas recentes tanto no Brasil quanto no exterior demonstram que o uso da maconha está associado ao consumo de drogas consideradas mais pesadas, como cocaína e crack, mas não apenas à maconha. Estudo desenvolvido com universitários brasileiros de todas as unidades da federação publicado neste ano na revista científica "Drug and Alcohol Review" e conduzido por cientistas da USP e da Universidade Columbia, nos EUA, mostra que o álcool, que é uma droga legal, é uma porta de entrada a outros tipos de droga tão prevalente quanto a maconha. "Dessa maneira, ser legal ou ilegal não parece desempenhar um papel na primeira transição de uso de drogas", dizem os pesquisadores.

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Imagem: iStock

Segundo outra pesquisa publicada em 2017 na revista científica "International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology" e conduzida por pesquisadores da Universidade de Memphis, nos Estados Unidos, o uso de maconha por adolescentes pode, de fato, servir como um fator que aumenta a probabilidade de usar qualquer droga ilícita. Se a maconha é a droga mais disponível, é natural, segundo os cientistas, que a substância possa ser a primeira droga a ser usada.

A pesquisa pondera, entretanto, que o uso sequencial de drogas e o consumo mais frequente de maconha está intimamente relacionado a estressores. Ou seja, para que o jovem consumidor transite da maconha para outros tipos de aditivos, deve ter um ambiente de tensão que o leve a isso. Dentre os elementos estressores, segundo a literatura médica, são "fracasso em metas culturalmente valorizadas, falta de reconhecimento e exposição a estímulos nocivos". "O que seria tirado deste estudo é que pressões severas desempenham um papel importante no uso de drogas", dizem os pesquisadores.

Outros estudos seguem a mesma lógica, como este, de 2015 e publicado na revista científica "Journal of School Health", em que os autores verificaram que jovens em idade escolar, entre o ensino fundamental 2 e o ensino médio, em sua maioria usaram o álcool como porta de entrada para outras drogas. "Especificamente, 644 entrevistados usaram primeiro o álcool antes do tabaco e da maconha, enquanto 389 responderam que iniciaram o uso do tabaco antes do álcool e da maconha, e 170 disseram ter usado maconha antes do tabaco e do álcool", relatam os cientistas.

Outro exemplo vem do professor Wayne Hall, da King's College, no Reino Unido, que mostrou em 2014 que "aproximadamente 9% das pessoas que já usaram maconha se tornaram dependentes, contra 32% para nicotina, 23% para heroína e 15% para o álcool". Hall fez uma revisão da literatura científica ao analisar a evolução das pesquisas ao longo dos últimos 20 anos. Em seu artigo, ele diz que, em estudos longitudinais, desenvolve dependência de maconha 1 a cada 6 usuários que começaram a consumi-la durante a adolescência. Também conforme o estudo, afeta metade dos usuários diários da erva.

Além disso, o UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) defende o que se convencionou chamar de Regra 80/20 --baseada no Princípio de Pareto--, segundo a qual 80% dos usuários de drogas no mundo consomem 20% das drogas disponíveis no mercado, enquanto 20% dos usuários consomem 80% dos psicoativos mundialmente. Isso significa que grande parte dos usuários de drogas são pequenos consumidores, indicando níveis baixos de demanda e, por consequência, pouco descontrole.

Já a relação entre o uso de drogas e aumento generalizado da criminalidade não encontra respaldo em estudos conduzidos internacionalmente. É o caso de artigo publicado em 2015 na revista científica "Canadian Medical Association Journal", em que os autores ressaltam a ligação entre uso de maconha e acidentes de carro no Canadá e na Austrália como uma das consequências mais negativas. No mesmo artigo, há menção a casos em que houve, inclusive, declínio nas taxas de criminalidade.

Artigo publicado em 2010 na revista científica "British Journal of Criminology" demonstra também que os efeitos da descriminalização das drogas nos índices de violência em Portugal foram positivos. Segundo o estudo, conduzido por cientistas baseados no Reino Unido e na Austrália, foram verificadas reduções no uso problemático das drogas, além de menos danos relacionados ao uso de psicoativos e menor sobrecarga no sistema judiciário.

Outro estudo de 2010, publicado na revista científica "Drug and Alcohol Dependence", coordenado por pesquisadores na Universidade de Maryland, nos EUA, abordou a vulnerabilidade de jovens afrodescendentes usuários contumazes de maconha em bairros pobres de Chicago. Segundo as conclusões dos autores, o consumo intensivo da erva pode ter relação com crimes relacionados a drogas, além de furtos e roubos, mas não tem relação com crimes violentos. A região não havia descriminalizado a droga à época da condução do estudo.

Essa última conclusão converge com um estudo publicado em 2015 na revista “Latin American and Caribbean Studies”: apenas o tráfico de drogas --e não a posse de drogas-- tem impacto nos números de homicídios. Ao analisar o consumo e o tráfico de crack no centro de São Paulo, pesquisador da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio) aponta que só o tráfico ou usuário de crack sozinhos não impulsionam a criminalidade: "Eles só podem ser analisados dessa forma se o crime induzido por drogas for impulsionado pela violência sistêmica induzida pela própria ilegalidade", diz.

Pessoas aguardam em fila para comprar maconha em farmácia de Montevidéu, no Uruguai - Matilde Campodonico/AP - Matilde Campodonico/AP
Pessoas aguardam em fila para comprar maconha em farmácia de Montevidéu, no Uruguai
Imagem: Matilde Campodonico/AP

Por exemplo, no caso do Uruguai, onde houve a legalização da maconha no ano de 2013, o diretor nacional de polícia do Uruguai, Mario Layera, informou que a descriminalização não implicou diretamente a queda dessa droga.

VERDADEIRO: De acordo com relatório produzido pela Junta Nacional de Drogas do Uruguai em 2016 com dados de 2014, a tendência no aumento do consumo de maconha vem desde 2001. Por isso, não houve grande impacto da legalização da maconha no consumo da droga no país, pois a tendência não se alterou substancialmente.

Para o ano de 2014, dentre as pessoas que disseram ter iniciado o consumo de maconha nos últimos 12 meses, houve crescimento de 0,8%. O relatório informa ainda que 4 de cada 10 que experimentam maconha pela primeira vez mantêm o consumo. Os 60% restantes são aqueles que dizem que só experimentaram uma vez ou que são ex-consumidores.

O narcotráfico aumentou o número de assassinatos [no Uruguai].

INSUSTENTÁVEL: O Uruguai registrou em 2016 queda em suas taxas de homicídio: foram 265 mortes no ano passado, contra 293 em 2015. Conforme os dados oficiais, entretanto, a afirmação de que houve aumento nos números de assassinatos decorrentes de tráfico de drogas permanece insustentável. Em março deste ano, Mario Layera, diretor nacional de polícia do Uruguai, afirmou que a legalização da maconha no país não teve impacto direto na queda do tráfico e que aumentou o número de assassinatos promovidos pelo narcotráfico. Esses dados não aparecem diretamente nos dados oficiais do Ministério do Interior.

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