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Casas para vítimas de enchentes foram doadas a pessoas não atingidas, diz MP de Alagoas

Carlos Madeiro

Do UOL, em Murici, Rio Largo e São José da Lage (AL)

15/03/2013 06h00

Número de casas construídas maior do que o número de desabrigados, doações irregulares e até uso eleitoral da reconstrução. Essas são algumas das denúncias investigadas pelas promotorias do MP-AL (Ministério Público de Alagoas), que já detectaram uma série de ilegalidades na entrega de residências a serem doadas exclusivamente aos desabrigados das cheias de 2010 no Estado.

Em junho daquele ano, as enchentes deixaram 27 mortos, 29 desaparecidos e 17 mil casas destruídas, que estão sendo reconstruídas em 15 municípios alagoanos. Segundo balanço do governo do Estado, 7.778 casas já foram entregues pelo Programa da Reconstrução --cada uma com 41 m².

Durante mais de uma semana, o UOL ouviu autoridades e visitou três dos municípios atingidos: Rio Largo (região metropolitana de Maceió), Murici (51 km da capital) e São José da Laje (100 km de Maceió). Em todos há irregularidades encontradas, que resultaram em ações judiciais.

Municípios atingidos

  • Arte UOL

    População de Murici, Rio Largo e São José da Lage sofreu com enchentes em 2010

Segundo as denúncias, muitas casas foram doadas a pessoas que não teriam sido atingidas pela tragédia, enquanto vítimas seguem morando em áreas de risco. Promotores, autoridades e moradores ouvidos também têm a convicção de que há mais casas construídas do que a quantidade real de famílias atingidas, o que deve levar a uma "sobra" de casas.

O problema é que, como a verba foi específica para atender às vítimas das enchentes, as casas não podem ser repassadas a outros moradores. Ao todo, no Estado, a Caixa Econômica Federal investe R$ 780 milhões para a reconstrução. Por serem vítimas de tragédia, as casas seriam doadas, sem a necessidade de nenhum pagamento aos moradores.

Vídeo mostra imagens da enchente de 2010

Cadastros irregulares

Uma das provas de superdimensionamento de casas estaria em São José da Lage, onde o governo construiu e ainda constrói 1.006 residências. O promotor do município, Jorge Dória, afirmou que apenas 478 das mais de mil casas devem ser entregues a desabrigados, já que apenas eles têm cadastros no Creas (Centro Especializado de Assistência Social).

Segundo Dória, a gestão executiva anterior fez dois cadastros, sendo um deles apenas de pessoas que seriam supostamente beneficiadas com as casas que "sobrassem". O UOL procurou a prefeitura, que informou que iniciou uma auditoria no cadastro em janeiro, quando encontrou 20 irregularidades, cancelando todos os nomes.

“Algumas famílias tinham quatro casas, o cadastro tinha pessoas falecidas e inclusas sem relatório de danos. Havia até pessoas que moravam em bairros onde não houve enchente", disse o prefeito Bruno Rodrigo de Araújo (PMDB), que está no poder há pouco mais de dois meses.

Segundo o prefeito, um pente fino está sendo realizado, e já foram achados pelo menos mais 80 cadastros irregulares. "Montamos uma equipe para comprovar quem de fato foi vítima, com um documento de declaração, com assinatura de duas testemunhas. Como não podemos voltar a 2010, estamos fazendo isso para intimidar esse tipo de fraude", afirmou.

O UOL não localizou o ex-prefeito Márcio José da Fonseca Lyra, o Dudui (PP), para comentar as supostas irregularidades.

Entrega suspensa

O promotor de Murici, Carlos Eduardo Maia, também não tem dúvidas de que há irregularidades no cadastro. "Tem muita gente que foi atingida e não foi contemplada, ao mesmo tempo que temos muitas denúncias de casos de pessoas que não foram atingidas e receberam as casas", disse.

No município, a Justiça determinou a suspensão da entrega das casas, atendendo a pedido da Defensoria Pública, avalizado pelo MP-AL. Para o promotor, desde o início existia o questionamento de que não havia controle do número de desabrigados.

Maia informou que, como o caso envolve recursos públicos da União, enviou o caso para que o MPF (Ministério Público Federal) se posicione. Procurado pela reportagem, o MPF em Alagoas disse que "investiga o caso para a eventual propositura de ação".

O UOL procurou a assessoria de imprensa da prefeitura e o responsável por falar em nome do município desde a última quinta-feira (7), mas até a publicação desta reportagem não recebeu retorno.

Uso eleitoral

Outra cidade com problemas é Rio Largo, onde na quarta-feira (6) a Justiça determinou a realização de novo cadastro no município. A nova lista com as verdadeiras vítimas da enchente deverá ser repassado à Caixa Econômica Federal.

Segundo o MP-AL, autor da denúncia, 2.994 casas que teriam sido destruídas ou danificadas --segundo dados do relatório da Defesa Civil-- estão sendo reconstruídas. Integrantes do Movimento Popular (que representa moradores vítimas de enchente), porém, afirmam que apenas 1.204 famílias foram atingidas em 2010. O caso também está sob análise.

De acordo com o promotor Jorge Luiz Bezerra, há diversos relatos de venda, aluguel ou cessão dos imóveis com "fins eleitorais”, em 2012. As ligações feitas à prefeitura de Rio Largo e ao assessor de imprensa do município não foram atendidas desde a segunda-feira.

Desabrigados esperam

Em meio às denúncias, muitos moradores que foram vítimas da cheia e estão em área de risco seguem à espera de casas. É comum ouvir relatos e até nomes de pessoas que ganharam casas mesmo não sendo vítimas da cheia de 2010.

Em Murici, José Antônio da Silva, 43, foi morar na área mais pobre da cidade --a favela Portelinha-- após perder a casa, levada pelo rio Mundaú em 2010. Até hoje espera pela entrega de uma nova casa prometida.

“Fiz o cadastro e até aqui não me procuraram. Mas tem gente que veio de outras cidades e está recebendo casas, todo mundo sabe disso aqui. Se fizerem uma fiscalização vão ver”, garantiu.

Também às margens do rio Mundaú, em Rio Largo, moradores protestam contra a demora na entrega das residências. Aos 77 anos, Carmelita Conceição conta que teve problemas de saúde logo após a enchente e nunca mais se recuperou. Ela continua morando na rua Pereira Leite, que há quase três anos era totalmente tomada pela água.

“Quando vem a chuva, ninguém dorme. Na época da cheia, meu marido teve um derrame, e eu passei 15 dias com pneumonia. Fiquei três dias sem comer. Até hoje espero pela casa”, disse.

"Culpa das prefeituras"

Segundo o governo do Estado, responsável pela construção das casas, o cadastro das famílias atingidas pelas cheias foi elaborado pela Defesa Civil, logo após a tragédia.

O Programa da Reconstrução informou que "cabe às prefeituras identificar as verdadeiras famílias" atingidas pelas enchentes e "repassar os documentos necessários para a Caixa Econômica Federal, que por sua vez deve analisar e aprovar a documentação dos mutuários."

“Acho louvável que o Ministério Público ou qualquer outra entidade fiscalize com rigor essas supostas irregularidades para impedir que terceiros, que não sofreram com a enchente, venham a ser beneficiados”, disse, em nota encaminhada ao UOL, o vice-governador e coordenador do Programa da Reconstrução, José Thomaz Nonô.

Em nota encaminhada ao UOL, a Caixa informou que o cadastro de beneficiários é de responsabilidade do "Poder Público." "A Caixa faz a validação dos beneficiários indicados de acordo com as regras do programa Minha Casa Minha vida. Para as vítimas das enchentes é apresentada documentação específica que comprova o enquadramento deste critério", informou.

A Caixa disse que as casas autorizadas para construção em Alagoas seguiram o número contido nos relatórios de danos apresentados pelo Defesa Civil, com autorização específica, por meio de uma portaria do Ministério das Cidades.

Por fim, o banco informou ainda que as prefeituras suspeitas "foram notificadas para completar a apresentação da relação de beneficiários, vítimas das enchentes bem como a população residente em áreas de risco de novas enchentes."