Eu perdoo os PMs, diz parente de 8 mortos na chacina de Vigário Geral (RJ)
Vera Lúcia Silva dos Santos, 50, perdeu a mãe, o pai, cinco irmãos e uma cunhada na chacina de Vigário Geral, favela da zona norte do Rio de Janeiro, há exatamente 20 anos. As oito vítimas eram evangélicas e tinham acabado de chegar de um culto, pouco antes do crime cometido por um grupo de policiais militares do 9º BPM (Rocha Miranda). "Uma [das irmãs] ia casar, outra ia lançar um CD evangélico. Meu pai estava voltando para a igreja", disse.
Após duas décadas da tragédia, a ex-moradora de Vigário Geral --hoje em Bonsucesso, também na zona norte-- afirmou que "perdoa" os PMs que cometeram os crimes. "Que eles possam estar em paz com o meu perdão", declarou. A lembrança mais triste, segundo Vera, vem à cabeça quando ela lembra da irmãs Lúcia e Léa.
"Lúcia tinha tido um desentendimento com o meu pai. E ela ficou uns dois meses fora de casa, morando na casa da vizinha. A gente sempre falava para ela voltar para casa e parar de besteira, mas ela não voltava. Ela voltou no sábado e morreu no domingo", afirmou ela.
"A Léa sempre dizia que, se ela estivesse presente, ela nunca iria deixar ninguém e nada afetar os nossos pais. Ela cumpriu o que ela falava. Ela falava que se colocaria à frente. E, da maneira que eles fizeram, quebraram um braço e um dedo dela. Quebraram mesmo. Ela deve ter enfrentado. Isso não sai da minha mente", completou.
Relato
Minha mãe me avisou que tinham matado quatro policiais na praça Catolé do Rocha. Ela falou para que eu não ficasse na rua por que a situação não ficaria boa na favela. Eu concordei e fui embora. No domingo, geralmente eu ia para a casa dela porque ela sempre pedia para fazer almoço pra eles. E nesse domingo eu não fui porque eu fiquei trabalhando na minha casa, que estava em obras.
A JUSTIÇA FOI FEITA?
"Eu não estou aqui para falar se fulano é ruim ou ciclano é bonzinho. Eu não isento eles porque eles têm que pagar pelo que eles fizeram. Quem tira uma vida tem que pagar. Mas hoje eu estou em paz comigo. De certa forma, eles pagaram. Eles perderam farda. Uns foram presos e outros foram mortos. Outros perderam filho. Um está aleijado. De certa forma, isso dá um alívio. Mas não foi eu que fiz justiça com as próprias mãos. Eles estão pagando pelo que eles fizeram. Mas eu acho que o Estado deveria dar um suporte maior para os parentes. Foi uma coisa terrível na nossa vida. Muita gente está doente. Eu tenho um sobrinho que está doente. O governo não deu um suporte significativo para a gente. (...) Eles não estão nem aí para a gente. Nem todas as indenizações foram pagas. Eu perdi a família inteira. Dá até vergonha de falar o quanto que eu recebi. (...) É um um dinheiro que tem sangue no meio. Mas as pessoas que ficaram precisam sobreviver"
Vera Lúcia Silva dos SantosPor volta das 21h, eu fui na casa da minha mãe. Eles já tinham voltado da igreja. E até brinquei com os meus pais, que estavam cochilando no sofá. Nesse dia, o Brasil tinha vencido a Bolívia e se classificado [para a Copa do Mundo de 1994]. Já era quase meia-noite. Eu estava deitada e ouvi tiros e correria muito longe. Estava tudo fechado em casa e quase não era possível ouvir os tiros. Eu pensei logo nos policiais. Bem que a minha mãe me avisou.
Depois de todos aqueles tiros, passou um tempinho e eu comecei a escutar alguém jogando pedra na minha porta, me chamando. O meu marido na época, Paulo, levantou e foi abrir a porta. Era a vizinha da minha mãe, acompanhada das crianças, todas com roupas de dormir. Ela falou algo no ouvido do meu marido e ele disse que era para eu colocar as crianças para dentro porque ele iria na casa dos meus pais para ver o que tinha acontecido lá.
Ele foi e voltou em questão de minutos. Quando ele chegou, ele me abraçou e disse: 'Vera, a sua família está toda morta'. Eu respondi: 'Pode me largar. Não precisa me abraçar'. Ainda não tinha caído a ficha. Foi quando ele disse que iria ver como estava a mãe dele, que também morava na comunidade. Nesse meio tempo que ele foi ver a mãe dele, eu pensei que deveria ir na casa dos meus pais para ver como estava a situação. Eram mais ou menos 50 metros de distância.
Eu cheguei duas vezes até a esquina, mas me faltou coragem. Meu coração disparava. Mas eu repetia: 'Eu tenho que ir lá. Eu tenho que ir lá'. Quando eu olhei para o céu e pedi forças a Deus, aí eu fui. Cheguei e presenciei aquela cena terrível. Triste mesmo. Eles fizeram de uma maneira que ser humano nenhum merece. Da maneira que eles fizeram, parecia que eles estavam muito irados. Como se as pessoas que eles mataram tivessem culpa da morte dos policiais.
Uma vizinha chegou para mim e falou que o corpo da minha irmã estava quente, e que era para eu tomar o pulso dela para ver se ela estava viva. Eu respondi que não, que ela estava morta mesmo. Eu sei porque quando eu entrei na casa o cabelo dela estava caindo sobre a cabeça o sangue escorria pelo fio de cabelo. Eu peguei os lençóis e cobri todo mundo. Naquela hora, eu só pensei que deveria pegar os documentos e roupas para as crianças.
Minha mãe morreu com a bíblia na mão. Meu irmão Luciano ainda mostrou documentos. Ele morreu de joelhos. Eu não gosto muito de pensar. Quando a minha mente começa a pensar o sufoco e o desespero que eles passaram nessa casa, eu procuro pensar em outras coisas. Mas hoje o que me sustenta é Deus. Eu me sinto leve e não sinto tristeza mais no meu coração. Mas não podemos deixar esquecer. Sempre temos que lembrar.
A gente tem que olhar para frente, mas não esquecer do que aconteceu. A gente fala que 'relembrar é viver'. Mas não com tristeza. Infelizmente, eles foram mortos dessa maneira. Não mereciam isso. Um dia a gente vai ter que morrer mesmo, mas não dessa maneira. Não vir uma pessoa e bloquear a nossa vida. Minhas irmãs tinham planos. Uma ia casar, outra ia lançar um CD evangélico, meu pai ia voltar para a igreja.
Eles interromperam a vida da minha família e dos meus amigos. Pessoas dentro do bar. Pessoas nos arredores da favelas. Eles iam matando quem encontravam pela frente. Como se fossem pessoas que não valiam nada, como se fosse uma porcaria. Eles não encontraram quem eles queriam [traficantes] e pessoas inocentes acabaram pagando por isso. Mas eu perdoo. Estou falando de coração. Eu os perdoo. Esses que participaram: que eles possam estar em paz com o meu perdão.
ENTENDA A CHACINA DE VIGÁRIO GERAL
A chacina de Vigário Geral ocorreu no dia 29 de agosto de 1993. No total, 21 moradores morreram durante a ação criminosa de policiais militares que integravam um grupo de extermínio conhecido como "Cavalos Corredores". A motivação do crime teria sido quatro homicídios contra PMs do 9º BPM (Rocha Miranda) supostamente cometidos por traficantes da comunidade. No dia da vingança, porém, só havia inocentes na favela. Dos 52 acusados em um processo complexo, marcado por polêmicas e que posteriormente foi desmembrado, apenas sete policiais foram condenados, dos quais três conseguiram a absolvição em um segundo julgamento e um acabou sendo morto após fugir da prisão. Dos três que continuaram detidos, apenas um continua na prisão: o PM Sirlei Alves Teixeira, apontado como o mais violento do grupo de extermínio. Ele chegou a fugir do sistema prisional, em 2007, mas posteriormente foi preso em flagrante após participar de um assalto a uma agência da Caixa Econômica Federal, pelo qual foi condenado a oito anos de prisão pela Justiça Federal.
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