Papa pediu "atenção", mas "terra prometida" da JMJ ainda sofre com lama
O lamaçal em que se transformou o terreno que receberia os atos finais da JMJ (Jornada Mundial da Juventude) e inviabilizou a realização dos eventos no local, há exatos dois anos, frustrou e causou prejuízos a moradores de Guaratiba, bairro pobre da zona oeste do Rio de Janeiro.
Dias após a Jornada, em carta enviada ao prefeito Eduardo Paes, o papa Francisco pediu que “fosse dada uma atenção especial” aos moradores da região. Prontamente, Paes anunciou que o espaço onde havia sido erguido o Campus Fidei (Campo da Fé) seria desapropriado para a construção de um bairro popular. Também declarou que todas as localidades da região receberiam obras de infraestrutura e urbanização --com pavimentação, calçadas, implantação de sistema de drenagem, água e esgoto, saneamento, iluminação e paisagismo-- até 2016.
Nos últimos dois anos, no entanto, salvo poucas exceções, a frustração dos moradores de Guaratiba só aumentou. Às vésperas do segundo aniversário do que teria sido um marco histórico na região, que receberia cerca de 2 milhões de fiéis na ocasião, o clima geral na região era de desilusão e desesperança.
O terreno do Campus Fidei, mais de três vezes maior que o Vaticano, hoje está cercado e sinalizado com placas que avisam que aquela é uma “propriedade particular” e que a entrada é proibida, pertencente à Vila Mar Construtora. Anunciado como a "terra prometida" da JMJ em novembro de 2012, o espaço, de 1,7 milhão de metros quadrados foi preparado e aterrado durante cinco meses pela Arquidiocese do Rio. O mato, que havia sido cortado, voltou a crescer.
O plano da prefeitura de implantar no local um bairro popular foi abortado ainda no fim de 2013, após a realização de estudos técnicos no terreno pelo IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), que desaconselhou a construção de edificações no espaço, suscetível a novos alagamentos e carente de grandes projetos de infraestrutura. Segundo moradores, nos últimos meses houve movimento intenso de caminhões retirando terra do espaço. O UOL entrou em contato com a Vila Mar Construtora, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Nas ruas que ficam no entorno do terreno, a lama que toma o chão de terra batida após qualquer chuva é um lembrete frequente da pouca presença do poder público na região. "Disseram que iam calçar várias ruas, mas até agora não vi eles fazendo nada. Eu nunca criei expectativa porque eles sempre prometem e nunca cumprem", afirma a dona de casa Paula Silva, 25, moradora de Pedra de Guaratiba --uma das localidades do bairro-- há seis anos. "Não mudou nada, só tem buraco, lixo e lama", diz Renato da Silva, que há três anos trabalha em uma empresa no bairro.
A comerciante Autônoma Vanuze Veloso, 21, reclama do efeito dos problemas da infraestrutura no trabalho. "Quando chove, fica um lamaçal danado. As crianças e os idosos ficam sofrendo, e o movimento do comércio cai", conta. "Até começaram a asfaltar algumas em dezembro do ano passado, mas ainda não houve mudança de verdade mesmo em quase nenhuma." O marido, que trabalha na mesma "vendinha", decidiu colocar algumas pedras na frente da barraca para as pessoas passarem por cima. "A gente tenta dar um jeito, mas o jeito é se acostumar à lama. O pior é que é esgoto misturado com terra. É uma vergonha", diz Mamede Vicente de Souza, 38.
No canteiro central de uma das principais avenidas da localidade, a estrada da Matriz, encharcado pela chuva do dia anterior, uma grande placa anuncia que ali estão acontecendo obras do programa Bairro Maravilha Oeste. De acordo com a Secretaria Municipal de Obras, atualmente há 15 frentes de trabalho na região de Guaratiba, com prazo de conclusão em 2016. Os investimentos do programa, desde 2009, são da ordem de R$ 249,1 milhões. Ainda segundo a pasta, 85 ruas já foram beneficiadas e outras 174 vias ganharão melhorias até o o ano que vem.
As informações divulgadas pela secretaria não condizem com o cenário observado pela reportagem no último dia 6 e relatado pelos moradores. Apenas uma equipe foi encontrada realizando o calçamento e a pavimentação da rua 34, na localidade Vila Mar. Os operários não quiseram conversar com a reportagem, mas a dona de um restaurante situado na esquina denunciou: "Eles vão e voltam desde dezembro do ano passado. Estavam há mais de dois meses sem vir aqui. Sempre dizem que para por falta de verbas", afirma Valdineia Oliveira, 50.
Em uma rua paralela ao terreno do Campus Fidei, o estudante Leonardo Barreto, 18, nascido e criado em Guaratiba, tenta conduzir com dificuldade a bicicleta, até que desiste e decide levá-la a pé. "Quando chove muito, tem rua que não dá pra passar nem de bike", comenta. A empregada doméstica Antenora Deonice, 43, também sofre com a rua enlameada. "Tenho que colocar saco plástico de mercado para ir para o trabalho, senão chego toda suja lá. Na época do papa, eles limparam tudo, tiraram árvores. Pensei que ia melhorar para gente aqui. Estamos esperando até agora", conta.
Sonho e prejuízo
A cabeleireira baiana Claudia Pereira dos Santos, 28, se mudou para o Rio com o pai e três irmãos há nove anos. Guaratiba foi o destino. Católica, a família viaja todos os anos para Aparecida (SP) para visitar Santuário de Nossa Senhora Aparecida, com exceção do patriarca. O comerciante Lauro Luís dos Santos, 52, conta que nunca conseguiu ir por causa do trabalho, mas se define como como muito devoto. "Tenho muita fé. Deus me ajuda em todos os sentidos", afirma.
Quando soube que o papa iria para o terreno situado ao lado da casa, resolveu comprar um imóvel e montar vendinha de produtos alimentícios. "Ainda estava no começo do meu negócio e, por causa do evento, resolvi investir. Tomei empréstimo de R$ 3.000 e fique pagando um tempão, com juros".
O baque sofrido com a transferência dos eventos para a praia de Copacabana foi duplo. "Pensei que ia ter um bom lucro, mas no fim deu tudo errado. Tive que vender bicicleta e televisão por um preço muito menor do que eu comprei para conseguir quitar. E ver o papa de perto seria uma emoção muito forte, mas infelizmente não deu".
Em 2013, o marmoreiro Rodrigo Silva gastou cerca de R$ 10 mil para construir 12 toaletes ao lado da sua casa, localizada em frente ao Campus Fidei, assim como no filme uruguaio "O Banheiro do Papa" (2007), que conta a história de um contrabandista que gastou todas as suas economias na construção de um banheiro para receber os peregrinos que passariam pelo pequeno vilarejo de Melo, na fronteira do país com o Brasil, por conta da visita do papa João Paulo 2º. Sem papa, Rodrigo conta que se viu obrigado a desfazer os banheiros. Conseguiu vender parte das peças; outras, teve que descartar.
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