Carioca encontrou cemitério sob casa na Gamboa, no Rio, durante reforma
Filha de um português com uma espanhola, a carioca Ana Maria de la Merced Guimarães demonstrou muito interesse pelo passado. Não tinha a menor ideia de como sua vida mudaria após a compra de uma casa construída em 1866 na rua Pedro Ernesto, no bairro da Gamboa, na região portuária do Rio de Janeiro. Em 1996, ela e o marido, Petruccio dos Anjos, estavam às voltas com uma reforma no imóvel onde morariam com três filhas. A reportagem é da "Agência Pública".
Um dia, Merced, como é conhecida, recebeu um telefonema em seu trabalho. Escutou, atônita, que os pedreiros da obra, ao cavar um buraco, se depararam com um punhado de ossos. Ela soube então que havia um sítio arqueológico sob seus pés. Até aquele momento, não havia nenhuma referência material da existência do Cemitério dos Pretos Novos, que servira para sepultar os escravos que morriam quando o navio negreiro já estava na baía de Guanabara, ou que faleciam após o desembarque.
Logo que chegou em casa, Merced se dirigiu à residência do vizinho Antônio Carlos Machado, presidente do Afoxé Filhos de Gandhi, que a aconselhou a procurar o Centro Cultural José Bonifácio, dedicado à cultura negra. De lá, saiu o aviso ao então Departamento Geral de Patrimônio Cultural, que, por sua vez, arregimentou membros do Instituto de Arqueologia Brasileira. De repente, a casa que escolhera para morar com a família passou a abrigar constantemente seis pessoas, entre arqueólogos e técnicos de escavação.
Vinte e oito esqueletos tiveram seus ossos reunidos e pesquisados. Os estudos trouxeram algumas características dos mortos: idade entre três e 25 anos, de ambos os sexos. O historiador Júlio Cesar Medeiros conta o horror dos enterros em seu livro “À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro”. Nele, o autor descreve que os cadáveres eram enterrados a apenas um palmo de profundidade.
Inicialmente o Cemitério dos Pretos Novos estava instalado no largo de Santa Rita, próximo à praça Mauá, onde havia um grande fluxo da burguesia da época: “O vice-rei marquês de Lavradio tirou o mercado dali, para esconder as cenas do desembarque dos escravos onde já havia uma burguesia vivendo. Consequentemente, o cemitério que funcionava ali foi a para a Região do Valongo, na segunda metade do século 18, quando a região era desabitada”, diz o texto. Aos poucos, a área ao redor foi sendo ocupada por uma população pobre.
Mais de 6.000 escravos foram enterrados ali de 1824 a 1830, segundo registros históricos da Igreja de Santa Rita, então responsável pelo serviço, anota Medeiros em seu livro. À“Pública”, ele afirmou categoricamente: existem mais corpos enterrados na área do Cemitério dos Pretos Novos e também em casas vizinhas. “Digo isso porque só calculei o número de enterros no CNP [Cemitério dos Pretos Novos] em um período bem curto, com os registros do livro de óbitos da freguesia de Santa Rita, de 1824 a 1830.”
Nesse momento, o historiador faz um desabafo: “Os dados de outros períodos relacionados a esses enterros estão no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, na Catedral do Rio de Janeiro, no centro. Ocorre que os livros estão em péssimo estado, e ainda tive dificuldade de acesso a eles na Cúria. Há um risco grande de se perder um material de riqueza inestimável”, alerta Medeiros.
Há outro risco de perda irreparável. O presidente da Cdurp (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio), Alberto Silva, afirmou em entrevista à “Pública” que uma pesquisa do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dá conta de que casas de mais três ruas estão na delimitação espacial do cemitério feita pela pesquisa.
“Casas das ruas Pedro Ernesto, Leôncio de Albuquerque e do Propósito estão na área do cemitério”, afirmou. Indagado sobre por que a prefeitura não promoveu novas escavações nessas casas e na via, Silva respondeu: “Quem tem de definir isso é o Iphan. Não é uma atribuição da prefeitura”. Sobre a prefeitura não estimular novas escavações, Silva, que é sociólogo, declarou que o sofrimento dali está representado pelo cemitério –e que esse debate está “errado”.
“O importante é que o Cemitério dos Pretos Novos está simbolizado na área da casa da Merced, que recebe em torno de R$ 90 mil por ano para preservá-lo. Os corpos foram queimados e revolvidos, o que dificultaria muito o trabalho. E teríamos de desapropriar casas para fazer novas pesquisas”, disse ele, que representa a prefeitura, que removeu mais famílias do que qualquer governo municipal da história do Rio.
A “Pública” procurou a presidente da Superintendência Regional do Iphan no Rio de Janeiro, Mônica da Costa. Pela assessoria de imprensa, ela respondeu que quem estava mais à frente desse assunto era o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, presidido pelo arquiteto Washington Fajardo, com quem a “Pública”entrou em contato, por intermédio da assessoria de imprensa, e não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Medeiros acrescenta que há outro fato de grande importância que continua sendo subestimado: “Ninguém sabe até hoje onde ficava no Valongo o lazareto, uma enfermaria de quarentena dos escravos. Os escravos que não resistiam ali eram diretamente encaminhados ao CPN. Ainda há muito o que pesquisar no porto”.
As muitas mortes dos pretos novos
A expressão “pretos novos” era a denominação para os escravos recém-chegados ao Brasil. Os que não resistiam às intempéries das viagens nos navios negreiros iam sendo enterrados. Os registros desses enterros trazem o nome do traficante, data dos sepultamentos, a faixa etária do escravo, o nome da embarcação e do capitão. O porto de origem de cada africano também consta no livro de óbitos.
No entanto, se havia algum tipo de organização dos registros, o desrespeito às cerimônias africanas, por sua vez, era imenso. “Na cultura banto, seguida pela maioria dos escravos vindos para o Rio de Janeiro, a morte significa a passagem do mundo dos vivos para o sobrenatural. O morto, se fosse enterrado de acordo com os rituais, tinha um encontro com seus antepassados, mantendo uma ligação com o mundo dos vivos. Sem isso, o morto passaria ser um infortúnio para os vivos. Trata-se de uma cosmovisão”, diz Medeiros.
O historiador cita o cemitério de Nova York, na ilha de Manhattan, chamado African Burial Ground, no qual, no século 18, os africanos escravizados e seus descendentes eram enterrados de acordo com seus ritos. Ali, após uma grande luta da comunidade africana dos Estados Unidos, ergueu-se um memorial nos anos 1990. Os pesquisadores dizem que o trabalho ali é contínuo e deve durar pelo menos mais cem anos, segundo a dissertação do arqueólogo Reinaldo Bernardes Tavares para o Museu Nacional.
Medeiros não entende por que não há mais investimentos no Cemitério dos Pretos Novos e em outras escavações em casas da vizinhança. “A fachada [da casa que abriga o cemitério] precisa ser reformada, e o próprio cemitério poderia estar mais bem estruturado”, afirmou ele. “O cemitério deveria ter seu próprio banco de dados e computadores para alunos e pesquisadores visualizarem, entre outras coisas, as rotas dos navios negreiros”, diz Medeiros.
De fato, falta muita coisa ao cemitério. Os ossos encontrados não estão no museu. Repousam no Instituto de Arqueologia do Brasil, na cidade de Belford Roxo, na região metropolitana, a cerca de 30 quilômetros do centro do Rio.
Um depoimento do diplomata inglês James Herderson, reproduzido no livro “1808”, do jornalista Laurentino Gomes, mostra o porquê da morte de tantos escravos: “Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível da miséria humana. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham até os depósitos onde ficarão expostos para a venda, mais se parecem com esqueletos ambulantes, em especial as crianças”.
A chegada de crianças e adolescentes escravizados ao Cais do Valongo, por sinal, também parece pouco estudada; seu objetivo perverso era aumentar a vida útil do escravo e prolongar a escravidão. Dados do site The Trans-Atlantic Slave Trade Voyages revelam os efeitos da pressão para dar fim ao tráfico de escravos liderada pela Inglaterra, cuja produção manufatureira de suas colônias no Caribe com homens livres custava mais que a portuguesa assentada no escravismo. Houve um aumento exponencial de crianças de ambos os sexos em navios negreiros desembarcados no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco entre 1811 e 1850.
Tais dados elevam a crença de Manolo Florentino de que há mais ossadas de escravos de meninos e meninas enterradas na região portuária. “Isso é um motivo mais do que suficiente para entender que aquela região não pode ser simplesmente ‘revitalizada’. Ela precisa ser estudada profundamente, e isso exige investimento”, diz o professor do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais).
Florentino ficou apreensivo com a decisão da prefeitura de construir um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) justamente na rua Pedro Ernesto, endereço do Cemitério dos Pretos Novos, onde mais pesquisas deveriam ser feitas, acredita. “Desejo que o VTL tenha sido instalado ali sem que se prejudiquem futuras pesquisas arqueológicas, que se mostram cada vez mais necessárias naquela área.” Segundo Alberto Silva, os trilhos foram instalados seguindo as regras do Iphan, e nada foi encontrado no caminho.
De qualquer forma, para o professor, é necessária uma prospecção técnica contínua para definir a real extensão do cemitério, tentativa já feita pelo Museu Nacional, com alguns avanços. Segundo estimativa do jornalista Laurentino Gomes, mais de 20 mil corpos de escravos devem ter sido enterrados na região do Valongo até a desativação do mercado negreiro.
“Aquela área deveria ser palco de um grande estudo arqueológico e de genética para uma análise acurada dos ossos a serem encontrados, com uma ampla equipe multidisciplinar envolvendo também profissionais como antropólogos e historiadores. Nos Estados Unidos, onde o movimento black exigiu isso, foi feito esse trabalho em áreas na Costa Leste, assim como no Caribe. Não vejo iniciativas assim no Brasil”, diz Florentino.
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