"Escutei o tiro que matou meu filho", diz mãe de jovem assassinado no Ceará
Tinham entre 16 e 18 anos. Eram quase todos homens e majoritariamente negros e pardos. De famílias pobres, habitando lares chefiados em grande parte exclusivamente pela mãe, localizados na franja precária de infraestrutura da cidade. A maioria fora da escola nos últimos meses de vida e muitos mortos bem perto de casa por engano (no lugar de pessoas ameaçadas, por exemplo).
É o retrato do adolescente vítima de homicídio no Ceará apresentado no estudo "Trajetórias Interrompidas: Homicídios na Adolescência em Fortaleza e em Seis Municípios do Ceará".
Com base em casos de assassinatos de pessoas entre 12 e 18 anos registrados em 2015, a pesquisa resulta do trabalho do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, parceria do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) com o governo do Estado do Ceará e a Assembleia Legislativa do Estado, lançada em 2016.
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O Ceará, segundo outro estudo coordenado pelo Unicef, que produz o IHA (Índice de Homicídios na Adolescência), é o Estado brasileiro onde mais se matam adolescentes entre 12 e 18 anos. O IHA do Ceará em 2014 foi de 8,71, o que significa dizer que 8,71 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos por grupo de mil adolescentes no Estado.
Além da capital cearense, o levantamento "Trajetórias Interrompidas" também investiga mortes nos municípios de Caucaia, Eusébio, Horizonte e Maracanaú, na região metropolitana, e Juazeiro do Norte e Sobral, no interior do Estado. São locais de vulnerabilidade social elevada, conforme o estudo.
Os pesquisadores entrevistaram 224 famílias de adolescentes mortos para conhecer as vítimas em profundidade. Também foram analisados grupos relacionados aos jovens, como educadores de escolas onde eles estudavam. Cento e quarenta e seis casos são de adolescentes de Fortaleza e os demais dos outros seis municípios.
"Ele viveu tudo de uma vez", diz mãe de vítima
O papel da cobertura midiática dos crimes dos adolescentes, noticiado extensivamente em programas policiais locais, é criticado pelos estudiosos. Segundo eles, "a cobertura, que poderia contribuir para a apuração dos casos de violência, acaba, no entanto, reforçando estereótipos que colocam, em muitos casos, as vítimas de homicídio, sobretudo os adolescentes e jovens moradores de periferia, como os verdadeiros responsáveis por sua própria morte".
Aos familiares, sobretudo suas mães, que chefiam a maior parte dos lares, restam o espanto e o culto da memória do filho morto como companhia. "Escutei o tiro que matou meu filho", lamentou uma delas, de nome Lucimar. Ela e o marido prepararam um vídeo de fotos do filho com amigos e parentes, com uma música evangélica de fundo, preferida do rapaz, para ninguém esquecê-lo.
Outra mãe não se conforma com a velocidade com que tudo aconteceu: "Foi tudo muito rápido. Ele viveu tudo de uma vez. Em um ano, se envolveu com más amizades, deixou a escola, brigou, assaltou, usou drogas, recebeu medida socioeducativa e foi assassinado".
"A gente fica abismada com o potencial desses meninos, que está sendo perdido porque eles não têm oportunidade", atesta a diretora de uma escola de Fortaleza.
Sem o refúgio da escola
Duas características sobrelevaram das entrevistas: a evasão escolar constante entre as vítimas e a impunidade persistente nos casos.
Mais de 70% dos adolescentes assassinados em 2015, nos sete municípios, estavam fora da escola havia pelo menos seis meses. A maioria das vítimas, segundo o estudo, não tinha completado o ensino fundamental, apesar de ter idade para ter concluído o ensino médio.
Em Fortaleza, por exemplo, dos jovens assassinados, cerca de 30% tinham o ensino fundamental 1, 57% o fundamental 2 e apenas 11% o ensino médio completo.
Conforme relatos de familiares, muitos dos jovens mortos mostravam "desinteresse" pela escola (em Fortaleza, mais da metade dos casos mostrou esse componente). Uma mãe relatou que matriculou o filho em diversas escolas do bairro, mas ele sempre fugia.
O estudo identificou também que a necessidade de trabalhar ou ficar em casa cuidando dos irmãos mais novos, dada a falta de creche no local, favorecia a evasão.
"Quando o menino falta cinco vezes, pode ir atrás que o problema ali está grave. Pode ser a mãe usando o menino para ficar com o menor [irmão mais novo], que a gente vê muito quando há evasão, ou pode estar botando o menino para trabalhar", disse em entrevista uma diretora de escola.
Só 2,8% de responsabilização criminal
Até dezembro de 2016, como apurou o estudo, houve a responsabilização criminal, em primeira instância, em 1.542 processos de homicídios de adolescentes protocolados no Sistema de Justiça em Fortaleza nos últimos cinco anos, o que corresponde a apenas 2,8% do total.
Das 292 famílias que tiveram adolescentes assassinados em Fortaleza em 2015, 117 (40%) não possuíam endereços identificados nos órgãos de segurança pública - o que dificulta a apuração.
A grande maioria dessas famílias também não pediu a abertura de inquérito policial, em muitos casos por temer represálias dos próprios algozes dos filhos, muitos morando no próprio bairro, ou duvidar da validade do sistema judicial.
O estudo quantifica a impunidade: "Apesar de em boa parte desses homicídios existirem indícios de sua autoria, só 10% das famílias afirmaram que o autor do crime foi preso ou detido pela morte do adolescente em Fortaleza. Em Maracanaú, Sobral, Juazeiro do Norte e Eusébio, nenhuma pessoa foi presa ou detida. Nas demais cidades, o cenário de mortes sem esclarecimento e responsabilização se repetiu, reforçando a sensação de injustiça dos familiares que tiveram seus filhos assassinados".
No último domingo (8), mais quatro jovens viraram estatística na capital cearense: tinham 14, 17, 18 e 20 anos e foram mortos com tiros de pistola na cabeça.
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