Massacre de Manaus começou com tiroteio com PM e terminou com festa regada a drogas
Mulheres choravam ao deixar o Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, após a passarem a noite de Réveillon com seus maridos nas celas. Casadas com os "soldados" da facção criminosa FDN (Família do Norte), elas saíam com olhos arroxeados pelas lágrimas às 15h, uma hora antes do prazo para o fim das visitas. Os funcionários da prisão observavam as despedidas apressadas e suspeitaram que algo de errado estava para acontecer durante aquela tarde.
Desde agosto, pelo menos, os presos e os carcereiros sabiam que a cadeia estava perto do "dia do apocalipse". Os "jacks", que ocupavam as celas especiais, reservadas aos condenados por estupro, ou os "vermes" do "Seguro PCC", membros da facção paulista, sabiam que iriam sofrer um ataque da FDN, cujos integrantes se espalhavam pelos quatro pavilhões do presídio, armados e em número muito maior.
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Os chefes da FDN avisaram em novembro: queriam esvaziar as celas especiais dos "jacks" para transformá-las em "motel" durante as visitas íntimas. E passavam em frente às destinadas ao pessoal do PCC, a facção inimiga, e diziam para quem quisesse ouvir: "A hora de vocês vai chegar".
Adriano Braga do Nascimento, membro do PCC, sabia que a hora havia chegado quando viu os "soldados" da FDN renderem os agentes de ressocialização pouco antes das 16h. Correu desesperado até encontrar um bueiro aberto. Não teve dúvidas: entrou no buraco, onde encontrou outros dois "irmãos" com os quais ficou escondido. Nas primeiras três horas, eles ouviam os sons de tiros e explosões, além dos gritos de gente que matava e de gente que morria.
Assim começou o massacre de Manaus. O UOL reconstitui a segunda maior chacina da história prisional do país, por meio de depoimentos de reféns e detentos que participaram da chacina. Os relatos integram as mais de 3.300 páginas do processo criminal que corre na 2ª Vara do Júri de Manaus.
Um policial militar troca tiros com a massa da FDN
Após a saída das visitas, os chefes da FDN reuniram-se em uma das celas do pavilhão 1. Tiram uma "selfie". A fotografia mostra que estão armados com pistolas, escopetas e facões. Chefes como "Caroço", "Marabá" e "Maguila" começam a exigir que todos os presos saiam de suas celas e corram em direção a três áreas fora dos pavilhões.
Armados, os gêmeos "Ploc" e "Plic", "Kaká" e "Diabo Loiro" rendem os agentes de ressocialização até a entrada da portaria 3. Os membros da FDN usam agentes como escudo para avançar e dominar o espaço.
No posto da guarda está o policial militar Maurílio Vieira da Silva. O PM saca sua pistola e atira, o grupo revida, mas recua. Voltam com mais dez comparsas, também armados, e rendem o terceiro-sargento.
No caminho até as celas especiais, os soldados da FDN destroem as câmeras de monitoramento.
Meses depois, o policial militar receberá uma comenda do governo do Amazonas. A ironia de sua situação está na suspeita de que seus colegas de farda, que atuam nas guaritas da muralha do Compaj, tenham recebido propinas para repassar as armas aos presos, como afirmaram detentos em depoimentos à força-tarefa da SSP (Secretaria da Segurança Pública) do Amazonas.
"Ploc" fugiria durante o massacre pelo buraco feito no muro do semiaberto. Seu corpo alvejado seria encontrado depois no matagal que circunda o Compaj. Seu irmão diria meses depois em um dos depoimentos que prestou à Polícia Civil:
Quem quis matar, matou
Preso de apelido "Plic"
O bando segue em direção às celas especiais. A primeira delas é chamada de "Inclusão", onde permaneciam 41 presos "em situação vulnerável": são os "jacks", condenados por estupros, além de policiais, filhos de policiais e "caguetas". Neste lugar morreram 19 presos.
O primeiro a morrer foi Sebastião Ribeiro Marinho Filho, o "Velho Sabá", 51, conhecido no mundo do crime de Manaus por sua extensa ficha criminal. Sua última prisão, em 2015, decorria do fato de ele comandar uma milícia na invasão conhecida como Cidade das Luzes, no Tarumã, na zona oeste da capital.
"Velho Sabá" foi morto "porque jogava" com a direção do presídio. Seria um "X-9" (delator). Morto a facadas, teve seu corpo esquartejado. Na organização do massacre, pelo menos um dos presos ganhou o apelido de "Açougueiro", pela facilidade de desmembrar corpos.
A segunda área a ser conquistada chamava "Seguro PCC", onde ficavam abrigados os internos que se autointitulavam ou eram membros efetivos do PCC. Segundo informações preliminares, dos 27 presos recolhidos nessa área salvaram-se apenas quatro --três deles são aqueles que conseguiram se esconder no bueiro.
“Membros do PCC atearam fogo em colchões nas entradas das celas para tentar impedir que os integrantes da FDN conseguissem entrar nos espaços. Alguns detentos do PCC tentaram fugir por uma janela, de uma das celas, que foi serrada, mas foram alcançados pelos presos da FDN e foram mortos”, relatou o delegado Tarson Yuri, durante entrevista coletiva da força-tarefa, realizada no começo de setembro.
Houve quem fosse morto por asfixia resultante da fumaça dos colchões. Quem tenha morrido carbonizado. Ou recebido tiros, a exemplo de Jander de Andrade Maciel, o "Gigante", alvejado no tórax. Porém, uma parte do grupo do PCC foi rendida e levada à quadra do pavilhão 3, onde eram obrigados a ajoelhar e recebiam tiros nas cabeças, que eram decepadas. Outros morreram degolados. Um balde servia de depósito de corações arrancados.
As cabeças eram colocadas em filas e filmadas e fotografadas por celulares. Um preso arrancava os olhos das vítimas e brincavam com eles como se estivesse manejando bolinhas de gude. Os vídeos foram divulgados pelo aplicativo WhatsApp e serviram para a Polícia Civil identificar os participantes da chacina.
Com apenas duas celas especiais, a área "Seguro P3" foi a terceira a ser conquistada. No local, estavam o ex-policial militar Moacir Jorge Pessoa da Costa, mais conhecido pelo apelido de "Moa", além de um policial civil do Amazonas, um policial civil de Roraima e outros presos igualmente em situação de vulnerabilidade. Todos morreram.
Houve momentos em que a situação saiu do controle e até um membro da FDN foi assassinado e teve seu corpo esquartejado. Paulo Henrique foi "velado" pelos próprios assassinos depois que eles perceberam o engano.
Rixas pessoais também foram resolvidas. João Paulo Venâncio, o "João Professor", foi morto por "Garrote", um dos chefes da FDN, após ser torturado física e psicologicamente. O motivo? Teria assediado a filha de "Caçula", soldado da FDN.
Os corpos se amontoavam. Um carrinho de ferro, usado pelos funcionários para entregar marmitas, serviu de rabecão improvisado para vários corpos, inteiros ou em partes, muitos deles carbonizados.
Um rapaz escreveu a sigla FDN com o sangue das vítimas na parte exterior da área em que ficava os membros do PCC. Em determinado momento, foi hasteada uma bandeira com os dizeres "F.D.N. Família do Norte CV RL".
Às 16h27, detentos começaram a fugir usando uma escada e uma "teresa" (corda feita de lençóis e peças de roupas), acessaram o corredor da muralha e pularam em seguida para área do semiaberto. Outros preferiram escapar por meio de um pequeno buraco no muro. Armas de fogo, a exemplo de um rifle, eram levadas pelo caminho inverso.
Outros presos roubaram os pertences dos que haviam morrido. No começo da noite, o massacre já estava encerrado e o uso de drogas foi liberado, a exemplo de cocaína --o que normalmente é proibido pela FDN.
Por volta das 20h, "Marabá" começou a negociar com as autoridades, que estavam do lado de fora do Compaj. "Não entramos para evitar um Carandiru 2", afirmou o então secretário da Segurança Pública, Sergio Fontes.
No total, 12 funcionários do Compaj foram feitos reféns. Um deles recebeu um tiro na perna. Do lado de fora do presídio, além do grupo de autoridades e do Batalhão de Choque, dezenas de mulheres --mães, filhas e mulheres dos presos-- choravam apreensivas à espera de notícias.
Outros parentes, mais previdentes, resolveram aguardar à porta do IML (Instituto Médico Legal), localizado na zona norte de Manaus. Os chefes da FDN resolveram entregar armas e libertar os reféns às 8h40 do dia do seguinte. O Batalhão de Choque entrou no Compaj 17 horas após o começo do massacre.
Às 11h do dia seguinte, Adriano Braga do Nascimento e outros dois membros do PCC saíram do bueiro e se entregaram aos policiais militares da Tropa de Choque.
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