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Como estelionatários conquistam a confiança de vítimas para aplicar golpes com passagens aéreas

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

25/03/2018 04h01

São muitos os golpes envolvendo passagens aéreas. Em diversos casos, essas fraudes não dependem de links maliciosos, sites fraudulentos ou anúncios mentirosos: elas são praticadas por pessoas extremamente atenciosas, que chegam a conhecer as vítimas pessoalmente e insistem que tudo dará certo. Mesmo quando, no dia da viagem, ainda não exista nenhuma informação referente ao embarque.

Esses estelionatários atraem com preços baixos, muitas vezes explicando que a compra é feita via sistema de milhas. O segredo de seu “sucesso” está em entregar, inicialmente, aquilo que prometem: experiências bem-sucedidas acabam gerando indicações para futuramente aplicarem seus golpes em um número maior de pessoas.

A seguir, três pessoas relatam como foram vítimas. Na tentativa de evitar que isso aconteça, vale desconfiar de preços baixos, fazer buscas na internet referentes ao prestador de serviço e parcelar a compra --em caso de fraude, esta medida pode minimizar o prejuízo.

grupo Homeostase ritmos ballet passagem aérea  - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Bailarinos estavam prontos para viagem à Itália, mas golpista não entregou as passagens
Imagem: Arquivo Pessoal
 

“Entrei em desespero” 

As malas de sete bailarinas, um bailarino e quatro acompanhantes do grupo Homeostase, da Ritmos Ballet, estavam prontas no começo de fevereiro, quando viajariam à Itália para uma competição de dança. A ansiedade típica dessas situações era muito maior para Gislaine Aparecida Ribeiro de Freitas, 41, proprietária da academia, que em setembro havia comprado as passagens.

No dia da viagem --e com R$ 21 mil dos R$ 25 mil já pagos--, Gislaine ainda não tinha as informações para embarque.

“Na véspera, ela disse que alguém tinha dado ‘mancada’ e ficou sem as passagens. Mas garantiu que resolveria de outra maneira, comprando outras. Repetia que era para eu ficar tranquila, que não me deixaria na mão e de fato não sumiu. Conversava comigo o tempo todo”, lembra Gislaine, que disse ter chorado muito.

Eu só não sabia que ela era uma estelionatária e estava tentando dar golpe em outras vítimas para que nós pudéssemos embarcar

Gislaine Aparecida Ribeiro de Freitas

A agente havia sido muito bem indicada por um amigo. Como disse que ela vendia passagens mais baratas e era de confiança, Gislaine pediu que a mulher fosse até sua academia, em Campinas (SP), onde fecharam negócio após conversarem pessoalmente.

A compra seria feita com sistema de milhas e, por isso, a mulher dizia que só teria as informações em data próxima à viagem. Todos os meses, os passageiros transferiam o dinheiro para Gislaine, que repassava à prestadora de serviço --até a descoberta do golpe, faltava só a última parcela, de R$ 4.000. Paralelamente, o grupo ainda arcava com outros gastos, como hotel, seguro de viagem, cursos e audições ligados ao evento. 

No dia 7 de fevereiro, todos deveriam embarcar para o Livorno in Danza. Em vez disso, Gislaine foi com a mulher até uma agência de turismo em um shopping de Campinas, onde ela disse que conseguiria comprar as passagens. A professora de ballet não sabia, mas a empresa havia atraído a agente com preços baixos e chamado a polícia para prendê-la em flagrante --depois de muitos golpes, era bem conhecida na área em que atuava.

“Na agência, começaram a falar que ela não escaparia. Ela, de forma irônica, disse que nada aconteceria. Ela foi detida e me levaram a uma salinha, para explicar a situação. Foi quando entrei em desespero”, lembra.

Eu vi o sacrifício de cada um, fizemos até bingo para arrecadar dinheiro. Muitos nunca haviam pisado em um avião e tinham o sonho de viajar para dançar. Senti uma dor que não desejo para ninguém. Pensava: ‘E agora? O sonho acabou?’ 

Gislaine Aparecida Ribeiro de Freitas 

grupo Homeostase ritmos ballet passagem aérea itália  - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Apresentação dos bailarinos do grupo Homeostase no evento de dança na Itália
Imagem: Arquivo Pessoal

Sensibilizados, os responsáveis pela agência eliminaram todas as taxas possíveis para vender novas passagens ao grupo. A história ganhou repercussão em redes sociais e virou notícia, fazendo com que mais gente colaborasse: “Tivemos ajuda de familiares, amigos, fomos juntando, pegando do limite do banco... Conseguimos comprar as passagens e chegamos um dia depois do planejado, mas pudemos participar da competição”.

Os bailarinos que foram ao evento têm entre 18 e 27 anos --sendo uma delas filha de Gislaine. “Embarcamos abatidos, mas no final foi tudo bem.”

O dinheiro não foi recuperado, e a estelionatária continua presa em um centro de detenção provisória. Ela é investigada em cerca de 30 casos, todos ligados à venda de passagens e pacotes turísticos, que somam mais de R$ 150 mil.

Segundo Alvaro Santucci Noventa Junior, delegado titular do 3º Departamento de Polícia de Campinas, a mulher já havia sido interrogada em setembro de 2017, quando chorou muito e disse que pagaria tudo o que devia. Depois disso, aplicou o golpe na companhia de dança.

O delegado relatou os casos de outras vítimas, todos envolvendo grupos de passageiros. Como a da família que viajaria inteira para comemorar bodas de ouro e, chegando ao aeroporto, descobriu não existir as passagens. Ou de outra família, que foi na alta temporada para a Flórida (EUA), onde não havia nenhuma reserva supostamente feita pela mulher --em cima da hora, os gastos ficaram muito maiores que o previsto. Além disso, as passagens de volta não haviam sido compradas. 

"Sabemos que não vamos recuperar o dinheiro" 

Na empresa onde Keith Paiva, 43, trabalha, em São Paulo, nove pessoas tiveram prejuízos ao comprar passagens de uma mesma mulher. Sua perda foi de R$ 600, mas no total o calote do grupo teria chegado a R$ 20 mil. A golpista só aceitava dinheiro em espécie ou transferências bancárias.

Para enganar tanta gente, a mulher conquistou a confiança dos primeiros clientes. Eles conseguiram preços baixos e boas experiências, passando a recomendação adiante. 

Keith Paiva está entre as vítimas de estelionatária, que ganhou a confiança de diversos conhecidos - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Keith Paiva está entre vítimas de estelionatária, que ganhou a confiança de diversos funcionários da mesma empresa
Imagem: Arquivo Pessoal

A própria Keith havia viajado para Florianópolis, no segundo semestre de 2016. “Minha volta era para [o aeroporto de] Congonhas, ela emitiu Guarulhos. Percebi que era um pouco enrolada.” A confirmação veio quando descobriu que as reservas feitas --e pagas-- para a viagem ao Rio no Réveillon de 2017 eram inválidas. Depois de Keith reclamar, a mulher chegou a simular um depósito de devolução do valor, que nunca foi feito.

Aqui entra uma observação comum entre todas as vítimas ouvidas para esta reportagem. Nesse tipo de crime, o estelionatário geralmente não some: ele continua conversando, prestando assistência e pode até se ofender quando tem sua honestidade questionada --choro e agressão estão entre as táticas usadas nesse momento. A confiança dos clientes é essencial para o sucesso de suas ações.

Quando as viagens começaram a dar errado, o grupo decidiu denunciar a mulher à polícia. O caso foi divulgado no programa policial “Brasil Urgente” e, em agosto de 2017, ela foi presa por esse mesmo tipo de golpe em Tianguá (Ceará). Nesta quinta-feira (22), a delegacia responsável pelo flagrante informou que a mulher havia sido transferida para Fortaleza. A reportagem tentou contato, sem sucesso, com a delegacia de capturas e assessoria de imprensa da Polícia Civil da cidade.

Sabemos que não vamos recuperar o dinheiro. Mas quisemos divulgar a história para que ela ficasse conhecida e não pudesse fazer isso com mais ninguém  

Keith Paiva

Grupo denunciou estelionatária no Brasil Urgente, no final de 2016

Band Notí­cias

"Vítima pode ganhar ação, mas não leva"

Em setembro do ano passado, Marina* comprou duas passagens de ida e volta, de Paris para Londrina (PR), para visitar a família no final do ano. Ela recebeu uma indicação de um conhecido e contatou a suposta agente via WhatsApp, acreditando já ter adquirido bilhetes aéreos com essa mesma pessoa. Estava enganada e a confusão custou caro.

A mulher apresentou uma promoção de R$ 12 mil e insistiu em receber uma transferência rapidamente, para que pudessem aproveitar o preço. O pai de Marina depositou o dinheiro, mas as passagens nunca foram entregues.

“A princípio ela dizia estar muito ocupada, porque estava embarcando muita gente. Se era pressionada, respondia de forma agressiva, dizendo que trabalhava com isso havia muitos anos”, relata Renan De Quintal, advogado que cuida do caso. Quando a vítima se deu conta de que era realmente um golpe e seu pai abriu um boletim de ocorrência, a mulher chegou a dizer que acabaria com sua família. As conversas, todas por texto e áudio via WhatsApp, serão usadas no processo. 

Pode ser fácil ganhar a ação contra um estelionatário, porque a vítima pagou por algo que não recebeu. O problema é que ganha, mas não leva: dificilmente o dinheiro é devolvido. O golpista não tem nada no nome dele
Renan De Quintal, do Batistute, Peloi & Advogados Associados

A viagem não foi cancelada, mas as novas passagens compradas de última hora saíram por R$ 15 mil.

Especialistas dão dicas para fugir do golpe

Preços baixos são a principal isca para os golpistas atraírem suas vítimas. “Orientamos a sempre desconfiar quando o preço estiver muito barato. A possibilidade de levar vantagem chama muita atenção”, afirma Alvaro Santucci Noventa Junior, do 3º Departamento de Polícia de Campinas, que deteve a estelionatária do primeiro relato. “Dê uma busca na internet e veja se tem alguma reclamação sobre aquele prestador de serviço”, continua.

O advogado Renan De Quintal reforça essas sugestões e acrescenta: guarde as conversas, as informações, os comprovantes. Pergunte quem é o contato daquele vendedor na empresa aérea, quem você pode procurar em caso de problema. “Quanto mais informação, melhor. E se a pessoa não quiser passar algo, desconfie.” Por fim, ele sugere fazer sempre um parcelamento do valor total para minimizar o prejuízo em caso de golpe.

* O nome foi trocado para não identificar a entrevistada