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Como funciona o porte de armas no Brasil? Especialistas explicam

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Imagem: Arte/UOL

Lucas Borges Teixeira

Colaboração para o UOL

15/09/2018 04h01

Com as eleições presidenciais chegando, a segurança pública está no centro do debate nacional. De acordo com o Datafolha, 20% da população brasileira considera a violência o principal problema do país atualmente. O tema só perde para saúde, na opinião dos eleitores ouvidos na pesquisa. E não é por acaso. Em 2016, o Brasil bateu o recorde histórico de 62,5 mil homicídios.

Neste cenário, vem à tona o debate sobre a flexibilização do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003). Grupos de parlamentares e representantes da sociedade civil argumentam que diminuir as restrições de compra de arma poderia ajudar a reduzir o número de homicídios ou, pelo menos, aumentar a sensação de segurança da população.

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Mas quão difícil é comprar uma arma de fogo no Brasil, de fato? Ter uma arma significa poder usá-la na rua? Quanto mais armas, menos ou mais mortes? Em que pé andam as leis de flexibilização? O UOL ouviu especialistas em segurança pública e parlamentares para explicar como funciona o armamento no Brasil.

Quem pode ter arma de fogo no Brasil

Ao contrário do que prega o imaginário popular, comprar uma arma de fogo no Brasil é relativamente simples. Na verdade, a quantidade de pessoas com porte tem crescido nos últimos anos. Segundo dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz por meio da Lei de Acesso à Informação, o número de registros para pessoas físicas quintuplicou entre 2008 e 2017: de 6.260 para 33.031.

Isso se dá porque, de acordo com o estatuto que regulamenta a compra, qualquer cidadão acima de 25 anos pode obter uma arma de fogo, basta seguir alguns pré-requisitos. São eles: comprovar idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral, além de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal; ter ocupação lícita e residência fixa; e, por fim, comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio.

De acordo com o advogado Alexis Couto De Brito, professor de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é uma licença abrangente. “Qualquer um acima de 25 pode ter, só precisa mostrar que nunca esteve envolvido com atividade ilícita e que tem o mínimo de aptidão técnica e psicológica para pegar em uma arma”, explica.

“Além dos testes, a Lei restringe a uma pessoa localizável, com residência fixa. A ocupação lícita é para que também seja identificada no trabalho”, explica Helder Ferreira, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e um dos responsáveis pelo estudo Atlas da Violência. 

Não basta, no entanto, ir à loja e fazer o pagamento. A licença de compra é emitida pela Polícia Federal. Além de apresentar todos os documentos, é mandatório que o cidadão explique ao órgão o motivo pelo qual pretende comprar a arma. “Não basta falar que gosta de armas, tem de ter um motivo específico. Se não der uma explicação plausível, a Polícia Federal pode recusar”, afirma De Brito. 

Porte de arma de fogo x posse de arma de fogo

Comprar é permitido, o que o Estatuto do Desarmamento mudou foi o porte de arma, desde então proibido a todos os cidadãos, exceto militares, policiais e afins e trabalhadores rurais que comprovem o uso para subsistência. “Quase todo mundo pode comprar uma arma, mas ninguém pode portá-la”, explica De Brito. “O cidadão pode comprá-la e deixá-la em casa ou no trabalho, mas nunca sair com ela na rua.”

Para transitar com a arma é preciso ter uma Guia de Trânsito de Arma de Fogo, expedida pela PF. Quem não se enquadrar nas exceções e for pego armado em público sem a Guia pode pegar de dois a quatro anos de prisão, além de multa. O Estatuto considera carregar arma sem porte um crime inafiançável.

“Nisso a Lei é ok, não é uma pena branda”, afirma De Brito. De acordo com o advogado, não há flexibilidade. “Há uma questão cultural de pessoas que têm o costume social de andarem armadas, mas elas estão cometendo um crime. Se forem pegas, serão processadas.”

Esta divisão entre porte e posse de arma de fogo foi estabelecida em 2005 por meio de um Plebiscito. Originalmente, o Estatuto, aprovado em 2003, proibia também a comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, por meio do Artigo 35. A aceitação ou não do artigo foi condicionada ao voto popular e 63,9% dos eleitores decidiram não colocá-lo em vigor.

De acordo com os especialistas, proibir o porte fez com que o número de mortes por armas de fogo diminuísse, mas permitir a venda evitou com que este índice caísse ainda mais, pois grande parte dos homicídios são causados por armamentos que um dia foram regularizados, e não pelos contrabandeados.

“As pessoas falam das armas que chegam pela fronteira, é claro que é um problema, mas o fuzil é a menor parte das armas de circulação. Na última pesquisa, entre 2% e 4%, em comparação, é realmente pouco”, afirma Felippe Angeli, gerente de advocacia do Instituto Sou da Paz. De Brito concorda: "Os bandidos procuram por armas 'escondíveis'. Afinal, o crime organizado todo não pode sair por aí só portando fuzis. Ninguém assalta no sinal com um fuzil, mas com um revolver que, em sua maioria, já foi registrado legalmente”.

Possibilidades de flexibilização do Estatuto

Há também grupos que entendem que, com maior restrição, a população fica refém, dado crescimento do número de homicídios. Atualmente, há projetos em tramitação no Congresso e no Senado que buscam flexibilizar o Estatuto.

Uma dessas iniciativas é a Frente Parlamentar em Defesa da Segurança Pública. Liderada pelo deputado federal Alberto Fraga (DEM/DF) o grupo quer revogar a lei por meio da nº PL 3722/2012.

Entre as principais iniciativas do projeto estão a retirada da exigência de comprovação da necessidade da arma para a PF e a diminuição da idade de compra de 25 para 21 anos.

“O desarmamento civil é uma tese que se revelou integralmente fracassada para a redução da violência, seja aqui ou em qualquer lugar do mundo”, argumenta o deputado na justificativa da PL, também chamada de Estatuto de Regulamentação das Armas de Fogo. “A proposta que se apresenta visa corrigir essa distorção legislativa, oferecendo à sociedade brasileira um novo sistema regulatório, baseado [...] na instituição de um controle rígido e integrado da circulação de armas de fogo no país.”

“É fundamental registrar que não se está propondo a liberação indistinta da posse e do porte de armas de fogo. O que a norma pretende é conciliar a vontade popular, a técnica prevalente na questão da segurança pública e o controle do Estado sobre a circulação de armas de fogo e munições.”

O novo Estatuto já foi aprovado em todas as comissões e aguarda, desde 2015, votação no Plenário da Câmara.

Projeto semelhante circula no Senado Federal. De autoria de Cidinho Santos (PR/MT), o PLS 480/2017 pretende passar a responsabilidade de avaliar os documentos de venda de armas de fogo da Polícia Federal para os vendedores.

“Hoje quando você vai na Polícia Federal pedir sua arma, é praticamente impossível [conseguir], há muita burocracia”, afirma o parlamentar ao UOL. De acordo com Santos, as exigências seriam as mesmas, mas o processo seria reduzido porque se tornaria menos subjetivo. “O vendedor vira o responsável: se a documentação está correta, ele tira essa burocracia”, afirma o deputado. No momento, o projeto aguarda avaliação da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado.

Angeli considera a flexibilização um equívoco. “Os mercados legal e ilegal são indissociáveis. As pessoas são roubadas, há desvios, uma série de coisas. É óbvio que outros elementos vão influenciar, mas há uma correlação entre o maior número de armas de fogo em circulação e a possibilidade de gerar impacto em incidentes letais", ?argumenta o especialista.

De acordo com o Atlas da Violência, 71,1% dos homicídios no Brasil em 2016 se deram por armas de fogo, número que se mantém constante desde 2006, ano seguinte ao Plebiscito. Ferreira estima que, se não houvesse o Estatuto, os homicídios teriam crescido 12% desde então.

“Não se trata de posicionamento ideológico, gostar ou não de arma: se trata da totalidade das evidências científicas, aqui ou no exterior, não de opinião”, afirma o especialista. “Sempre faço a comparação com o cigarro. Não é uma opinião que ele faz mal à saúde, é um fato.”

“A maior difusão de armas de fogo apenas jogou mais lenha na fogueira da violência letal”, diz o relatório do Atlas. “O crescimento dos homicídios no país ao longo dessas três décadas e meia foi basicamente devido às mortes com o uso das armas de fogo, ao passo que as mortes por outros meios permaneceram constantes desde o início dos anos 1990."