Topo

RJ: Milícia usa esquema de cartórios e alvarás para ter prédios irregulares

Bairro de Rio das Pedras, localizado na zona oeste do Rio, é dominado por milicias que lucram cobrando por serviços ilegais  - Ricardo Borges/UOL
Bairro de Rio das Pedras, localizado na zona oeste do Rio, é dominado por milicias que lucram cobrando por serviços ilegais Imagem: Ricardo Borges/UOL

Sérgio Ramalho

Colaboração para o UOL, no Rio

17/04/2019 04h01Atualizada em 17/04/2019 12h00

Resumo da notícia

  • MP-RJ investiga esquema do Escritório do Crime para construir prédios irregulares
  • Denúncia aponta estratégia da milícia de conseguir escrituras e alvarás para imóveis
  • No caso de alvarás, há diálogo interceptado que sugere pagamento de propina
  • Segundo MP, milícia usa três construtoras e uma imobiliária na zona oeste do Rio

O Escritório do Crime, considerado a principal milícia do Rio de Janeiro, usa ao menos três pequenas construtoras e uma imobiliária para erguer e negociar imóveis ilegais em Rio das Pedras e na Muzema, comunidade na zona oeste do Rio onde dois edifícios ruíram, causando as mortes de 16 pessoas. Investigações do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público estadual mostram que o grupo paramilitar usou laranjas como sócios nas empresas abertas por um contador que teria pago propina a um suposto funcionário da Prefeitura do Rio.

A organização criminosa, ainda segundo a investigação, também usa artifícios para conseguir alvarás na prefeitura para o piso térreo dos imóveis, o que garante dificuldade ao poder público para posteriormente interditar o prédio irregular.

A partir da constatação de que a milícia usa empresas para lavar dinheiro de crimes como extorsão, receptação de carga roubada (inclusive material de construção), agiotagem e cobrança de taxas de proteção, os promotores abriram um inquérito para apurar o suposto envolvimento de servidores municipais no esquema criminoso.

As empresas ConstruRioMZ, São Felipe Construção Civil e São Jorge Construção Civil tiveram os alvarás de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) concedidos pela Prefeitura do Rio no ano passado. Todas estão em nomes de integrantes da milícia chefiada pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, citado em escutas telefônicas do MP como "Gordo" ou "Patrãozão".

Alvará do piso térreo garante edifício

De acordo com as investigações, Fábio Campelo Lima, apontado como o contador dos negócios de fachada da milícia, registrava em cartórios escrituras públicas dos imóveis e solicitava alvarás para lojas erguidas nas bases dos prédios. A estratégia tinha por objetivo impedir a demolição das construções por parte da prefeitura já sob o argumento de que o processo de legalização havia sido iniciado. Dessa maneira, os empresários ligados à milícia conseguiam obter na Justiça liminares impedindo o poder público de colocar as estruturas irregulares abaixo.

As investigações também descobriram outra finalidade para a abertura de empresas no ramo da construção civil: baratear o valor de custo da construção dos imóveis, pois a utilização do CNPJ da empresa garante a compra de material de construção por menor preço.

Numa das interceptações telefônicas feitas pelo MP, o miliciano Manoel de Brito Batista deixa claro a um interlocutor a quem pertencem os apartamentos de um prédio recém erguido em Rio das Pedras:

Eu tenho oito apartamentos naquele prédio, o resto é tudo do Adriano e do Maurício entendeu, você procura ele e fala com ele entendeu, não adianta ficar me mandando mensagem.
Miliciano em ligação interceptada pelo MP

Na interceptação feita com autorização da Justiça, em novembro de 2018, Manoel se refere ao ex-oficial do Bope e ao tenente reformado da PM Maurício Silva da Costa. De acordo com promotores, Manoel atuava como uma espécie de gerente para Adriano e Maurício, além de ter participação minoritária nos edifícios construídos em Rio das Pedras e na Muzema.

Manoel e o tenente Maurício foram presos em janeiro na Operação Os Intocáveis, que também levou à cadeia outros cinco envolvidos com o Escritório do Crime, entre eles Fábio Campelo Lima e Benedito Aurélio Ferreira Carvalho - este último, sócio da São Felipe Construção Civil.

O esquema para erguer prédios irregulares

As investigações revelam que Fábio recebia ordens diretas de Manoel para abrir empresas, conseguir alvarás e registrar escrituras públicas dos imóveis em cartórios. Em muitos casos, pagando propina a servidores públicos.

Em um diálogo interceptado, Manoel cobra de Fábio a legalização de uma loja: "A gente precisa legalizar logo isso aí (...) Oferece um dinheiro que eu te arrumo aqui", disse Manoel ao contador.

Fábio chega a citar na conversa a ida à Subprefeitura de Jacarepaguá, no Rio, mas ressalta que o "cara na subprefeitura" quer dinheiro para agilizar. O contador ressalta já ter conseguido o alvará da São Felipe Construção Civil em nome de Benedito Aurélio. "Essa já está pronta, agora falta a loja".

O UOL enviou mensagem à assessoria da prefeitura e à Secretaria Municipal de Fazenda, onde funciona o órgão responsável pela concessão de alvarás, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Venda e aluguel de lojas para igrejas evangélicas

Em ao menos dois diálogos interceptados em outubro e novembro de 2018, Manoel trata da venda e do aluguel de lojas recém-construídas na Muzema.

Em uma delas, Manoel e um interlocutor não identificado (mas citado na denúncia do MP como sendo "o possível engenheiro projetista dos diversos empreendimentos imobiliários da organização criminosa") falam da venda de uma das lojas na comunidade da Muzema para a Igreja Universal do Reino de Deus. Fica claro pela análise da conversa que o pastor responsável pela compra desconhece que o imóvel é irregular: "A gente tá vendo a documentação com o contador, mas se ele (pastor) não quiser a gente aluga para outro", diz o miliciano.

Em outra gravação, Manoel e outro integrante da milícia falam do aluguel de outra loja, também na Muzema, para um pastor de outra igreja evangélica, mas não cita a denominação. Na conversa, Manoel cobra a escritura pública e sugere que o imóvel seja colocado em nome de Isamar Moura, que é citado pelo Ministério Público como um dos laranjas do Escritório do Crime. Morador de Rio das Pedras, ele também figura como sócio na ConstruRioMZ.

As investigações identificaram outros laranjas usados pelo grupo paramilitar, entre eles Gerardo Alves Mascarenhas, o Pirata, que aparece como sócio da São Jorge Construtora. Pirata também é sócio de Benedito Aurélio na Distribuidora de Bebidas dos Amigos, também em Rio das Pedras. Ambos foram presos na Operação os Intocáveis.

Muitos dos imóveis erguidos pela milícia eram negociados pela Moreth Imobiliária, que tem como sócio administrador Jorge Alberto Moreth, o Beto Bomba, que é presidente da associação de moradores de Rio das Pedras. Beto Bomba e o ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega estão foragidos da Justiça desde janeiro, quando escaparam da Operação Os Intocáveis.

As investigações indicam que eles tinham acesso a informações privilegiadas sobre ações policiais em andamento. Numa das escutas do MP, Manoel é informado por um interlocutor sobre a possibilidade de as comunidades serem alvo de uma operação conjunta do Inea (Instituto Estadual do Ambiente) e da Prefeitura: "Vê aí onde vai ser, Rio das Pedras ou Muzema, e me avisa para eu alertar aqui", conclui.

O miliciano Adriano é amigo do policial militar reformado Fabrício de Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), quando este foi deputado estadual. Queiroz admitiu ter indicado a mãe e a mulher do ex-capitão para trabalhar na Assembleia no gabinete do filho mais velho do presidente da República, Jair Bolsonaro.

Outro lado

O UOL tentou fazer contato por telefone com os escritórios das construtoras São Felipe (da qual Benedito Aurélio Ferreira Carvalho é sócio), São Jorge (Gerardo Alves Mascarenhas, o Pirata, é um dos donos) e ConstruRioMZ (em que Isamar Moura é sócio), mas nenhum funcionário atendeu. Na Moreth Imobiliária uma funcionária disse que não estava autorizada a falar e desligou o telefone.

Apontados como milicianos, Manoel de Brito Batista, Maurício Silva da Costa e Fábio Campelo Lima não prestaram depoimento e alegam que só vão falar em juízo. Adriano da Nóbrega e Jorge Alberto Moreth, o Beto Bomba, estão foragidos.