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Polícia reconstitui morte de marido de Flordelis; o que se sabe do crime

O pastor Anderson do Carmo e a deputada federal Flordelis (PSD-RJ) - Reprodução/Facebook
O pastor Anderson do Carmo e a deputada federal Flordelis (PSD-RJ) Imagem: Reprodução/Facebook

Marina Lang

Colaboração para o UOL, no Rio

21/09/2019 04h00

A reconstituição do assassinato de Anderson do Carmo, 42, está prevista para ser feita na noite de hoje na casa em que o pastor morava com a deputada federal Flordelis (PSD-RJ) e onde ele foi morto na madrugada de 16 de junho em Pendotiba, Niterói, região metropolitana do Rio. Intimada, a parlamentar confirmou presença. A Justiça autorizou que dois filhos do casal presos por suspeita de envolvimento no assassinato participem da reconstituição.

Lucas de Souza, 18, participará da reprodução simulada do crime. Já a defesa de Flávio Rodrigues, 38, informou que ele estará presente, mas que não vai participar. A investigação, cuja 1ª fase foi concluída, conta com dezenas de depoimentos do clã Flordelis. Ao menos quatro dos 54 filhos do casal (a maioria adotivos) apontam suspeitas de envolvimento da parlamentar no crime. Há relatos de suposto envenenamento do pastor e de disputas por dinheiro.

Tanto a Polícia Civil quanto o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) não têm dúvidas de que mais de seis tiros foram disparados contra o pastor —o corpo dele tinha mais de 30 perfurações— e de que há mais pessoas envolvidas no crime além dos dois filhos já detidos. As investigações buscam agora entender a motivação do crime.

O UOL teve acesso a 843 páginas do processo judicial relativas à 1ª fase do inquérito policial, que corre sob sigilo no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio). A Justiça aceitou a denúncia do MP-RJ e dois dos 54 filhos do casal viraram réus pelo assassinato do pastor. Flávio e Lucas respondem por homicídio triplamente qualificado.

Segundo a polícia, Flávio confessou ter dado seis tiros em Carmo, e Lucas foi o responsável por arranjar a arma calibre 9 mm usada no assassinato. A 2ª fase do inquérito vai apurar quem foi o mentor do homicídio, quantos disparos foram efetuados contra o pastor e se mais uma arma foi usada no crime.

Veja a seguir o que a polícia sabe até agora:

4 filhos incriminam Flordelis

Em depoimentos à polícia, ao menos quatro dos 54 filhos de Flordelis e Carmo apontam a participação da mãe no crime. Três deles abriram uma dissidência pública em relação à deputada. A reportagem preservou a identidade dos depoentes.

Um deles disse à polícia que a mãe seria "mentora intelectual da execução de Anderson". Ele também afirmou que Flordelis teria lhe dito "que Anderson iria morrer" e acrescentou que a deputada vinha sondando os filhos há cerca de dois anos para saber se algum deles teria coragem de executar o crime. De acordo com esse depoente, a parlamentar estaria descontente com a situação financeira, que ficava sob gestão do pastor, "e acreditava que Anderson poderia estar dando volta nela".

Outro filho afirmou em depoimento que ouvira a mãe falar, em diversas ocasiões, que "a hora do seu pai ia chegar e que não ia demorar muito". Além dos irmãos que se tornaram réus e de Flordelis, esse depoente implicou uma das filhas biológicas dela, outra adotiva —que, por sua vez, admitiu à polícia ter colocado remédios na comida do pastor— e uma das netas biológicas da deputada.

Anderson e Flordelis - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Anderson e Flordelis
Imagem: Reprodução/Facebook

Quando soube do crime, outra filha da deputada disse à polícia que seu primeiro pensamento teria sido "foi ela [Flordelis], não acredito que realmente tiveram coragem de fazer isso com ele". Ela disse ainda "que vê nos olhos de Flordelis um sentimento de alívio" após o assassinato.

Essa depoente implicou as mesmas pessoas citadas no depoimento do outro filho —a neta e a filha biológica da deputada, Flávio e uma das filhas adotivas "se beneficiariam financeiramente" com a morte, "pois eram os mais queridos de Flordelis e não gostavam da maneira como Anderson controlava o dinheiro da casa".

O quarto filho também disse à polícia acreditar na suposta participação de Flordelis no crime e que ela teria tentado demovê-lo de prestar depoimento porque, nas palavras dele, a deputada sabia que ele "não mentiria em absolutamente nada".

Uma quinta filha não apontou a suposta ligação da mãe ao homicídio, mas teria ouvido de Flordelis que "o tempo de Anderson estava chegando" em decorrência da administração que o pastor impunha às finanças relativas a dízimos de igreja e à carreira de cantora gospel de Flordelis.

A deputada não é formalmente considerada suspeita pela polícia. No entanto, Bárbara Lomba, delegada-titular do caso, declarou que todas as pessoas que estavam na casa na noite do crime são investigadas.

O que diz Flordelis

Sobre os depoimentos dos quatro filhos que a incriminam, a assessoria da deputada disse, por meio de nota, que as acusações do filho Wagner de Andrade Pimenta, conhecido como Misael, causaram surpresa. "Cada vez, conforme o tempo passa, fica mais evidente a intenção premeditada do Wagner de macular a imagem da mãe com o propósito político, ao que parece", diz o comunicado.

Quanto a comentários que supostamente teria feito sobre uma eventual morte do pastor, Flordelis disse que "todas as pessoas próximas do casal e, mesmo as mais distantes, testemunharam sempre a relação de absoluta confiança e de amor existente entre eles dois. Portanto, não é verdade a frase absurda atribuída à deputada".

Ela também negou que estivesse insatisfeita com a maneira com que o pastor administrava as finanças da família. "As finanças do casal eram de responsabilidade do Pastor Anderson de comum acordo com a deputada Flordelis. É um absurdo imaginar que houvesse discussão por dinheiro num casal que tinha as responsabilidades financeiras do Pastor Anderson e Flordelis. Os gastos eram todos para a família e para o projeto em comum", diz o comunicado da assessoria da deputada.

Remédios na comida do pastor

Ao menos seis depoimentos prestados à Polícia Civil apontam que remédios teriam sido colocados em comidas e bebidas do pastor, supostamente com o intuito de dopá-lo. Uma das filhas adotivas admitiu que pôs o ansiolítico Rivotril e outro remédio que não soube descrever na comida de Carmo com regularidade e, supostamente, sem o conhecimento de Flordelis.

O pastor Anderson do Carmo - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O pastor Anderson do Carmo
Imagem: Reprodução/Facebook

Ela foi apontada por outros irmãos como uma das pessoas diretamente envolvidas na morte do pastor. A justificativa dada por ela para dopá-lo, segundo o depoimento, seria porque "Anderson era uma pessoa agressiva com os filhos em geral".

Ela admitiu ter furtado R$ 5.000 do pastor em 2012. Desde então, a depoente alega que era retaliada por Anderson, tanto financeiramente quanto em assuntos relativos à ascensão dela na igreja Ministério Flordelis. A filha adotiva também contou à polícia que, em meados de janeiro, propôs a Lucas R$ 10 mil para matar o pastor. No entanto, no mesmo dia, disse ter se arrependido e desfeito a oferta.

Além da confissão da filha adotiva sobre os remédios, outros depoimentos de filhos do casal apontam essa irmã como a pessoa que ministrava medicamentos na alimentação do pastor. Há relatos de que o pastor teve problemas de saúde principalmente no segundo semestre do ano passado, antes de Flordelis ser eleita.

Uma das filhas disse ter presenciado a mulher colocando remédios na alimentação e afirmou que ela "falava para a declarante e para quem quisesse ouvir que estava cumprindo ordens de Flordelis".

Outro filho disse que, além da filha adotiva que confessou colocar medicamentos na comida do pastor, Flordelis, sua filha e neta biológicas "já teriam colocado remédios na comida de Anderson e que isso seria a causa da sua saúde comprometida atualmente".

A empregada doméstica da casa também confirmou que "Flordelis mandava a declarante colocar esses medicamentos no suco que a vítima tomava". Segundo ela, a deputada solicitava que colocasse entre cinco e seis gotas de Rivotril na bebida e que "algumas vezes a própria Flordelis colocava o medicamento escondido para a vítima tomar", porque Anderson se recusava a tomar os remédios voluntariamente.

Outro filho disse à polícia que a outra filha biológica de Flordelis, já apontada como envolvida com a morte, teria falado "em tom sarcástico, que era ela quem havia deixado Anderson com problema de saúde e que realmente vinha colocando alguma coisa na comida de Anderson; e que ela disse ao declarante: 'mas ele não morre, não. Ele [Anderson] é ruim de morrer'".

A assessoria da deputada negou as acusações sobre suposto uso de remédios na comida do pastor.

"É mentira que a deputada, ou alguém, com o conhecimento dela, agisse desse modo. As pessoas que afirmam isso seriam então coniventes dessa ação. Por que não denunciaram e não fizeram nada? O Pastor Anderson sofria crises de ansiedade e tinha acompanhamento médico nas crises. Seria impossível um processo de envenenamento não ser identificado pelos exames e médicos."

Filha pesquisou por veneno em alimento

Apontada em depoimentos como uma das interessadas na morte do pastor, essa mesma filha biológica de Flordelis teria feito pesquisas na internet pelo termo "cianeto", segundo demonstraram investigações da polícia sobre o celular dela.

O cianeto é um veneno que, caso seja ingerido, causa sintomas iniciais como falta de ar, dor de cabeça e vômitos, mas que, quando não é detectado no organismo, pode levar à perda de consciência e à morte por parada cardíaca.

Ela admite ter feito as pesquisas. Na primeira versão do depoimento, ela alegou que tinha o hábito de assistir a programas policialescos na TV, e que em um dos canais foi mencionado cianeto.

Perguntada, em seguida, sobre o porquê de ter pesquisado os termos "cianeto nos alimentos" e "cianeto comprar" no dia 4 de junho, ou seja, 12 dias antes do assassinato do pastor, ela disse que sua amiga cuidava de um cachorro de rua que estava com tumor e que o intuito das pesquisas era para sacrificar o animal.

Flávio deixa casa de Anderson do Carmo e Flordelis instantes após o crime - Reprodução/Polícia Civil RJ - Reprodução/Polícia Civil RJ
Flávio deixa casa de Anderson do Carmo e Flordelis instantes após o crime
Imagem: Reprodução/Polícia Civil RJ

Pastor soube de complô para assassinato

Em depoimento à polícia, um dos filhos do casal contou que outro filho biológico de Flordelis teria se reunido com a mãe e com o pastor no intuito de avisar que uma das filhas biológicas da missionária e a própria deputada tinham um plano para matá-lo.

Carmo não teria acreditado que Flordelis estaria supostamente articulando o complô e brigou com o filho que lhe relatou.

O relato entra em consonância com o depoimento da filha adotiva que admitiu ter colocado medicamentos na comida do pastor. De acordo com ela, "Anderson ficou sabendo que sua morte estava sendo tramada e chamou um a um da casa para falar sobre o assunto".

O pastor teria dito que grampearia todos os telefones da casa. Essa filha —a mesma que, além de ter colocado remédios na comida de Anderson, teria tramado a sua morte em janeiro junto ao filho preso Lucas— teria comprado um outro chip de celular para conversar com Flordelis. Ela narrou à polícia que a deputada adotou o mesmo procedimento. As conversas, segundo essa filha, girariam em torno do plano feito pela declarante e por Lucas para assassinar Anderson.

Procurada, a assessoria de Flordelis disse que "a deputada nunca agiu de qualquer forma com os filhos ou filhas para isolar o Pastor Anderson da relação dele com eles e elas. Na educação dos filhos e filhas, como em todos os outros campos, Flordelis e Anderson eram confidentes. No dia a dia da casa, a atitude do casal sempre foi de preservar todos seus filhos e a relação deles todos como família que eram".

Sobre a suposta reunião para discutir o complô, a deputada afirmou que "não houve esse momento. Era comum os filhos e filhas se reunirem com a deputada Flordelis e com o Pastor Anderson, desde sempre. As orientações eram individuais e coletivas. A reunião específica sobre ameaças nunca houve".

Noite da morte: neto nega socorro e muda cena do crime

Um dos netos do pastor negou a orientação do médico do Pronto Atendimento do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) para que verificasse se Carmo estaria respirando. Descrito como "muito calmo" pelo médico, o neto biológico de Flordelis disse que "não faria nenhum procedimento porque a vítima já estaria em óbito".

Ainda de acordo com o médico, "o interlocutor se recusou a fazer manobras de reanimação na vítima, tendo inclusive fornecido essa informação de recusa no chamado".

O mesmo neto teria alterado a cena do crime, mexendo em artigos de Anderson e no local onde ocorreu o assassinato. Estudante de Direito, uma das filhas adotivas de Flordelis teria dito a ele: "Por que você está mexendo nas provas? Não pode. Para de mexer nas balas e nem pode limpar o sangue. Para de mexer". Em depoimento logo após o assassinato, ele entregou dois projéteis que coletou na cena do crime.

Celular ao mar

Em depoimento prestado à polícia, uma das filhas adotivas do casal declarou que viu a filha biológica de Flordelis escondendo dois aparelhos celulares. Ela disse que "viu o momento em que [a filha biológica de Flordelis] escondeu um telefone na janela do seu quarto e em seguida jogou um outro telefone em cima do closet". Segundo a depoente, isso se deu durante cumprimento de mandado de busca e apreensão dos celulares da casa dois dias após o crime.

Outros depoimentos de familiares informaram que a neta biológica de Flordelis —filha da mulher que teria escondido os celulares—levou o celular de Carmo para ser jogado em Pendotiba, uma praia de Niterói, no mesmo dia em que a polícia cumpria o mandado de apreensão dos celulares na residência do casal.

A neta biológica de Flordelis disse à polícia que teria ido à praia para descansar e que ficou por lá durante 20 minutos. Ela foi levada por um motoboy —que também prestou depoimento à polícia e contradisse a versão da cliente. Segundo o mototaxista, a jovem ficou por cerca de cinco minutos na praia.

Conclusões da polícia

No relatório final da 1ª fase das investigações, Flávio e Lucas são apontados como executores do crime pela Polícia Civil, mas não os mandantes.

"As investigações criminais puderam garantir que Flávio e Lucas executaram partes da empreitada criminosa, de cujos planejamento e preparação participaram terceiras pessoas. Não há dúvidas de que o homicídio em apuração tem autores intelectuais e seus respectivos auxiliares, que atuaram no recrutamento do executor (ou dos executores), no provimento de recursos para a execução do crime, e no planejamento e atos preparatórios da ação propriamente dita (data, horário, forma de execução, comunicação entre os envolvidos)", diz o relatório.

Arma encontrada em casa de filho de Flordelis - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
Arma encontrada em casa de filho de Flordelis
Imagem: Reprodução/TV Globo

A polícia considera que a motivação central do crime ainda não está esclarecida. "Certamente [a motivação] pertence ao autor (ou autores) intelectual do fato", afirma o texto. No depoimento em que confessou ter dado seis tiros no pastor, Flávio declarou "ter raiva da vítima por um suposto crime sexual".

No entanto, o relatório nota que Flávio "participava de uma ação planejada e organizada por terceiros, portanto aderiu à motivação principal do crime, qual seja, a do organizador final". Com base nos depoimentos, a polícia acrescenta que a intenção de matar o pastor vinha desde ao menos outubro de 2018.

O relatório final das investigações confirma também a existência de uma segunda arma calibre 9 mm dentro da residência na madrugada em que ocorreu o crime —além da pistola de mesmo calibre encontrada pela polícia e cujo uso no assassinato já foi confirmado pela perícia.

A segunda arma teria sido levada por Lucas em uma mochila deixada no quarto de Flávio minutos antes do assassinato —imagens de câmeras de segurança externas mostram Lucas saindo de um carro com uma mochila, entrando na casa e voltando sem a bolsa.

O motorista que o levou na noite do homicídio fazia bicos de transporte. À polícia, ele disse que na mochila "havia drogas e uma outra pistola calibre 9 mm, pertencente ao tráfico de drogas da Comunidade da Cocada, onde Lucas atuava como vendedor da boca de fumo".