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Há 4 anos, Vale ignora 2.000 pessoas afetadas pelo desastre de Mariana

Impacto da lama foi sentido ao longo de todo o rio Doce por conta dos rejeitos da barragem rompida em Bento Rodrigues (MG) - Gabriel Lordello/Mosaico Imagem
Impacto da lama foi sentido ao longo de todo o rio Doce por conta dos rejeitos da barragem rompida em Bento Rodrigues (MG) Imagem: Gabriel Lordello/Mosaico Imagem

Carlos Eduardo Cherem

Colaboração para o UOL, em Belo Horizonte

22/09/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Fundação criada após desastre não considera 2.000 pessoas em indenizações
  • Comunidades viviam de pesca, garimpo e lenha à beira do rio Doce
  • Estudo entregue pelo MPF considera atividades como tradição local
  • Renova diz que garimpo era ilegal e há outras iniciativas para auxílio

A Fundação Renova, criada pela Vale e pela BHP Billiton, ignora os danos causados a cerca de 2.000 pessoas de comunidades tradicionais nos municípios mineiros de Santa Cruz do Escalvado, Rio Doce e Ponte Nova.

Esses moradores utilizavam os recursos naturais do rio Doce em sua subsistência e até hoje, quatro anos depois do desastre, não são reconhecidos para indenizações pela fundação.

A Renova foi criada após acordo entre as mineradoras, a União e os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, por meio de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), para dar conta dos diversos danos, sobretudo humanos e ambientais, provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em novembro de 2015.

A tragédia deixou 19 mortos e um impacto generalizado na bacia do rio. Não é possível estabelecer ainda um tempo para a recuperação desses recursos naturais.

"Foi feito um trabalho técnico profundo, com metodologia, dessas comunidades, que foi apresentado à fundação. Mas a Renova insiste em não reconhecer os direitos dessas pessoas. Não tem cabimento a demora em reconhecer as comunidades tradicionais. Falta conhecimento antropológico à Renova", disse o coordenador de Inclusão e Mobilização Social do MPF, André Sperling Prado.

O promotor diz que as mineradoras controlam a fundação por indicar seis dos oito assentos no conselho da Renova, responsável pelo reconhecimento das vítimas de Mariana. Com isso, barram o reconhecimento dessas comunidades, que reúnem faiscadores, que garimpam ouro na areia do leito do rio, pescadores, produtores rurais e comerciantes.

É um absurdo que o criminoso possa apontar quem é a sua vítima e quem vai receber indenização
André Sperling Prado, promotor

Prado participou na semana passada de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais para tratar de denúncias contra a Renova.

O procurador regional dos Direitos do Cidadão e integrante da Força-Tarefa do Rio Doce do MPF, Helder Magno da Silva, disse no evento que a fundação busca descaracterizar as atividades dos garimpeiros faiscadores e pescadores artesanais, alegando que o garimpo é ilegal para não indenizá-los.

"Discutimos e mostramos que era uma atividade tradicional. [A Renova tem] uma estratégia de negação de direitos", afirmou o procurador.

Reconhecimento negado

Membro da Associação dos Atingidos do Rio Doce, que representa as comunidades tradicionais atingidas, Antônio Carlos Xavier, disse que a Renova faz um "crime continuado" ao não reconhecer os direitos dessas comunidades.

"Não foi só no dia [do rompimento da barragem], elas [as mineradoras] continuam no crime", disse Xavier.

Por meio de nota, a Renova informou que são considerados "elegíveis" para indenizações e auxílio financeiro emergencial "comunidades tradicionais diretamente atingidas que se enquadram na legislação e que exerçam atividades apenas no âmbito de seus costumes e tradições".

A fundação disse ainda que realiza "um estudo independente para mapeamento das comunidades tradicionais impactadas, com o apoio do estado de Minas Gerais, para a identificação e o reconhecimento das mesmas".

Na nota, a Renova ainda afirma que "os garimpeiros têm acesso a outras iniciativas, como o Programa de Recuperação e Diversificação da Economia Regional com Incentivo à Indústria, o Programa de Recuperação de Micro e Pequenos Negócios no Setor de Comércio, Serviços e Produtivo, o Programa de Estímulo à Contratação Local e o Programa de Turismo, Cultura, Esporte e Lazer, dentre outros".

Conheça algumas histórias dos afetados:

Djanira da Silva Rocha - Carlos Eduardo Cherem/UOL - Carlos Eduardo Cherem/UOL
Djanira da Silva Rocha, viúva de 76 anos, dependia do rio Doce
Imagem: Carlos Eduardo Cherem/UOL

Djanira da Silva Rocha, 76, viúva e mãe de oito filhos

"Sou viúva. Tive oito filhos, mas só três vivem comigo. Eles também dependem do rio. Eu pescava no rio desde os sete anos de idade. Aos 16, aprendi a garimpar com o meu avô e meu pai.

Minha casa fica distante 2 km do rio Doce. Foi toda construída com a areia do rio. As madeiras... tudo pegamos lá no rio.

Vi quando a lama estava chegando, foi lá chegando, foi descendo e acabou tudo. Eu vivia do garimpo, de vender lenha e de pescar.

Dava para tirar meio salário mínimo por mês, mais ou menos. Quando encontrava ouro, podia ganhar até um salário. Agora, não ganho nada. Um dia antes de a lama chegar, eu tinha feito uma prova de ouro. A prova de ouro é quando encontramos, no cascalho e areia, umas pedras de esmeril."

Marta Helena dos Santos Ferreira - Carlos Eduardo Cherem/UOL - Carlos Eduardo Cherem/UOL
Marta Helena dos Santos Ferreira garimpava à beira do rio Doce
Imagem: Carlos Eduardo Cherem/UOL

Marta Helena dos Santos Ferreira, 49, casada e mãe de cinco filhos

"Sempre vivi na beirada do rio. Nasci em Barra Longa (MG) e mudei para Rio Doce quando tinha uns 17 anos. Meu marido, agora, está encostado no INSS. Não sei direito quanto ele está recebendo, mas é muito pouco.

Eu vivia do garimpo, da pesca e da venda da lenha, que recolhia nas matas e brejos do rio. Isso acabou. Dava para tirar meio salário mínimo normalmente, mas, se encontrasse umas 12 gramas de ouro, podia tirar até uns R$ 1.000 e pouco."

Geraldo de Campos Orsini - Carlos Eduardo Cherem/UOL - Carlos Eduardo Cherem/UOL
Geraldo de Campos Orsini, ex-pecuarista
Imagem: Carlos Eduardo Cherem/UOL

Geraldo de Campos Orsini, 69, ex-pecuarista

"Sempre morei aqui [na comunidade do Jorge, em Rio Doce]. A área foi comprada pelo meu avó Vitório Orsini, imigrante italiano, em 1929.

Eu tinha 35 cabeças de gado e tirava uns 180 litros de leite por dia. Dava R$ 0,80 por litro. Como o sítio era pequeno, com 24 hectares, para essa quantidade de gado, eu trabalhava de meeiro em terras dos vizinhos, plantando milho e arroz.

Pescava também, para consumo e venda. Para ajudar no sustento, eu tirava areia no rio, de carro de boi. Mas agora não tem mais jeito. Virei ex-pecuarista,

Pescar e carregar areia também não tem mais jeito. Estou plantando hortaliças e vendendo para duas escolas. Mas dá muito pouco."

"Não é acidente, é chacina"; relatos de parentes em Brumadinho

UOL Notícias

Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do que informou o oitavo parágrafo, o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Helder Magno da Silva, é integrante da Força-Tarefa do Rio Doce do MPF, e não coordenador. O texto foi corrigido.
Diferentemente do informado no terceiro parágrafo, a Renova foi criada após acordo entre a Vale, a BHP Billiton, a União e os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, por meio de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta). O MPF (Ministério Federal) não participou do acordo. O texto foi corrigido