Vítima inocenta suspeito, mas Justiça ignora e mantém jovem preso sem prova
Resumo da notícia
- Motorista de aplicativo teve carro roubado em SP e apontou criminosos
- Jovem foi preso, porém a própria vítima do roubo afirma ter se equivocado
- Procurada, polícia não ouviu vítima; ciente do engano, Justiça mantém prisão
O engano que levou à prisão o vendedor Heverton Enrique Siqueira, 20 anos, durou apenas um dia. Porém a Justiça continua a mantê-lo preso, sem provas, há quase um mês.
O jovem negro foi detido pela PM (Polícia Militar) em 10 de outubro, pelo roubo de um carro em Sapopemba, zona leste da cidade de São Paulo, baseado em um reconhecimento pela vítima do crime feito na 69º DP (Teotônio Vilela).
A própria vítima, um motorista de aplicativo, conta que no dia seguinte viu os ladrões que o haviam assaltado na rua e percebeu que tinha identificado a pessoa errada. Tentou duas vezes mudar seu depoimento na delegacia, mas os policiais civis se recusaram a ouvi-lo.
O motorista, então, escreveu em uma carta reconhecendo a inocência de Heverton, que foi anexada ao processo e ignorada tanto pelo MP (Ministério Público) quanto pela Justiça.
Juíza não viu alteração nos fatos
A juíza Teresa de Almeida Ribeiro Magalhães recusou um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa para libertar Heverton, alegando que a mudança de posicionamento da principal testemunha do crime não trouxe qualquer "alteração fática ou jurídica".
Mantendo o trâmite esperado, a vítima do roubo só será formalmente ouvida em audiência marcada para o próximo dia 18, quando Heverton completará 39 dias preso.
A Ponte procurou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo para saber por que a vítima do roubo não foi atendida ao tentar mudar seu depoimento. No entanto, a pasta ignorou essas perguntas, se limitando a emitir a seguinte nota:
"Policiais militares prenderam dois suspeitos em flagrante e os conduziram ao 69°DP. A vítima reconheceu os dois autores e, inclusive, descreveu as roupas usadas no momento do crime. Posteriormente, ela retornou à delegacia e pediu para conversar com o delegado responsável pelo caso, mas ele não estava naquele dia. Ela foi orientada a retornar nos próximos dias e não compareceu até o momento. O inquérito foi relatado em razão do prazo e os suspeitos encaminhados para audiência de custódia", assim se posiciona a SSP.
A reportagem ainda questionou o MP (Ministério Público) e o TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) sobre a denúncia e a negativa ao habeas corpus pedido pela defesa de Heverton, respectivamente.
O MP se limitou a informar que "a audiência de instrução está marcada para o dia 18/11, quando os fatos serão melhor esclarecidos". O TJ confirmou a mesma data e apontou que juízes não podem dar entrevistas para comentar decisões de caso em andamento.
Heverton afirma que estava em casa
O motorista de aplicativo estava na rua Manoel França dos Santos, em Sapopemba, quando seu carro, modelo Renault Logan, e três celulares foram levados por dois homens. Após a Polícia Militar apresentar Heverton e um jovem de 17 anos, V., como suspeitos, ele os reconheceu.
Na hora do assalto, Heverton afirma que estava em sua casa, na rua Manuel do Patrocínio, que fica a 1,6 quilômetro da rua onde a vítima foi roubada.
Eram 8h10 da manhã quando conversava com a namorada por telefone, após passar por uma crise de asma durante a noite. Uma de suas irmãs participou da conversa.
Em seguida, ela foi lavar roupa e ele saiu para fumar em uma praça próxima, onde estava com um amigo. Os dois foram abordados pela PM e levados.
Há prints de celular que comprovam a conversa em vídeo feita pelo jovem com sua namorada, além de o local ficar distante 24 minutos andando de onde o carro foi roubado, conforme informações do Google Maps.
Vítima escreveu carta para inocentar jovem
"A ligação em vídeo foi feita às 8h09, conversamos com ela até 8h19 e ele desligou", relembra Leyliane Santos, 24 anos, irmã de Heverton, que meia hora depois veria o irmão sendo preso. "Disseram que o menino era acusado de um roubo e levariam meu irmão para averiguação. Ele não estava com nada, nem celular. Na delegacia, o policial disse que a vítima tinha reconhecido", conta.
Mais importante do que os registros e a memória dos parentes é a fala da vítima, que garante ter visto na mesma região os verdadeiros criminosos no dia seguinte ao roubo. O motorista foi à delegacia para mudar seu depoimento, em 11 de outubro, mas lá os policiais civis disseram que o delegado Daniel Bruno Colombino, responsável pelo inquérito, não estava e ninguém poderia atendê-lo.
Sem sucesso com a Polícia Civil, o homem escreveu uma carta de próprio punho, reconheceu firma em cartório e entregou para a família buscar justiça.
Até agora, algo que não conseguiu. "Confesso que, como foi tudo muito rápido entre o roubo e a elucidação do caso, coisa de uns 30 a 40 minutos, eu ainda me encontrava muito abalado e muito nervoso. Tendo em vista que os reconheci sem saber ao certo o que eu estava fazendo", escreveu na carta.
Um mês depois, delegado não estava. De novo
Passado quase um mês, a vítima voltou a procurar o representante da Polícia Civil no 69º DP. Dessa vez, o motorista de aplicativo estava junto do advogado de Heverton, Ricardo André de Souza, mas a resposta foi a mesma: "A explicação foi somente que o delegado não estava", conta o defensor.
A defesa promete entrar com novo pedido de habeas corpus, dessa vez argumentando que a Polícia Civil não cumpriu sua função de colher a prova que pode inocentar o jovem.
A falta dessa prova no processo fez com que o MPE (Ministério Público Estadual) denunciasse Heverton por roubo e corrupção de menores. A Justiça determinou sua prisão preventiva e o adolescente V. foi apreendido e levado à Fundação Casa.
Heverton revendia roupas no bairro
O jovem tinha acabado de começar um trabalho autônomo. Amigos compraram roupas na rua 25 de Março e ele revendia na região de Sapopemba.
Ele ainda previa começar um serviço em um supermercado próximo de casa, ocupação que considerava boa para quem está prestes a concluir o 3º ano do ensino médio.
Era pouco, mas um começo para quem não queria sair de casa e estava diagnosticado com depressão. Heverton mora com a irmã do meio e foi criado por familiares pelo fato da mãe sofrer com dependência química.
O temor da família é que a prisão retome o momento crítico da doença, quando ele não se animava com as coisas e ficava apenas no seu canto. A mãe do jovem, Jorgia Cristine Siqueira, se emociona ao falar do filho. Ela conta que Heverton é quem mais a dava suporte nas fases difíceis que passou com o vício em crack. "Fiz tanta coisa errada e não passei por isso. Meu filho, que nunca fez nada, está passando? Parece que estou vendo um filme", diz.
Ela garante que a gravidez do jovem a fez largar o crack. "O Heverton sempre esteve do meu lado, quando tive crises de pânico, me ajudava. Quando chega de noite eu choro muito, era a hora que eu falava com ele. Dói muito. Eu mudei por ele, ele me tirou das drogas. Quando eu soube que estava grávida, eu parei de traficar, de roubar", explica a mãe.
'Liberdade de pretos tem pouco valor no Brasil'
As prisões de Heverton e V. são vistas como um absurdo pelo advogado Cristiano Maronna, ex-presidente e hoje conselheiro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Para ele, a carta da vítima por si só é capaz de garantir a liberdade de ambos.
"Se a própria vítima reconhece que errou, teria que ser libertado imediatamente. Esperar até 18 de novembro para algo que já pode ser identificado agora?! É a prova maior de que a liberdade, especialmente dos pretos, tem muito pouco valor no Brasil. É mais um elemento que destaca o racismo institucional existe no Judiciário", critica.
Para o advogado criminalista, este caso evidencia um abuso cometido de forma recorrente pela Justiça brasileira. "Olhando de maneira mais geral, infelizmente temos um sistema de Justiça que, no lugar de garantir direitos, trabalha para que direitos sejam violados, principalmente da população mais vulnerável. Esse rapaz é negro, então temos uma questão racial", analisa Maronna.
"Até um tempo atrás uma juíza escreveu em sentença que o réu não tinha perfil de bandido por ser loiro e ter olhos claros. Temos juízes brancos que julgam réus negros", prossegue.
Na avaliação de Maronna, o reconhecimento pessoal apresenta falhas, o que fica nítido nesse caso. "A pessoa que sofre a violência, um crime como roubo, pode confundir porque nessa hora está nervosa, pode eventualmente não identificar as características corretas das pessoas. Por isso tem regras no CP: tem que ser cinco pessoas de características físicas próximas", detalha, citando um procedimento previsto no Código de Processo Penal que não é seguido pelas polícias em reconhecimentos. "É comum o falso reconhecimento, há inúmeros casos baseados em falsos reconhecimentos no país".
O balanço feito pelo ex-presidente do IBCCRIM é de que um habeas corpus seria suficiente para a soltura de Heverton e V.. E vai além: "O rapaz tem direito de indenização do Estado".
Leia a reportagem original da Ponte aqui.
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