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80 tiros: Depoimentos de militares incriminam vítima e relatam tensão

Evaldo Rosa dos Santos morre após ter carro metralhado pelo Exército no RJ - Reprodução/Facebook/Remelexo da Cor
Evaldo Rosa dos Santos morre após ter carro metralhado pelo Exército no RJ Imagem: Reprodução/Facebook/Remelexo da Cor

Gabriel Sabóia

Do UOL, no Rio

16/12/2019 19h18

Seis militares que compunham a patrulha à qual é atribuída a morte do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo, afirmaram hoje em depoimento à Justiça Militar que os crimes aconteceram sob "forte tensão decorrente de confrontos prévios na região" e afirmaram que o fuzilamento ocorreu pelo fato de Macedo estava armado no momento em que foram realizados mais de 80 disparos em direção ao carro onde estava a família.

Todos os militares seguiram o relato dado pela manhã pelo tenente Ítalo Nunes, comandante da patrulha, e endossado pelo advogado do grupo, Paulo Henrique Pinto de Melo. "Está claro que os militares fizeram os disparos depois de reconhecer o Luciano Macedo, que havia participado de um assalto, minutos antes. Eles viram o homem atirando e revidaram", disse o advogado.

Os outros seis militares que participaram da ação que terminou em fuzilamento prestarão depoimento amanhã à Justiça Militar - nove deles respondem pelo duplo assassinato. Mais cedo, o tenente já havia incriminado o catador de materiais recicláveis. "O vi ao lado do Ford Ka [dirigido por Evaldo] atirando em nossa direção", disse Nunes, para justificar os tiros. Nenhuma arma foi, no entanto, encontrada com o catador durante a perícia criminal realizada na região.

Ao todo, foram feitos 257 tiros durante a ocorrência em Guadalupe, zona norte do Rio, dos quais 83 atingiram o veículo em que Evaldo e a família estavam. Luciano, que prestava socorro às vítimas, também foi atingido pelos disparos e morreu dias depois de internado.

Nos seis depoimentos, os militares afirmaram que estavam abalados naquele dia porque, horas antes do crime, haviam trocado tiros com traficantes da região. "Nosso comando informou que havia monitorado uma conversa de traficantes da favela do Muquiço, na qual diziam que queriam o nosso sangue", relatou osoldado do Exército Gabriel Honorato.

Catador tentou socorrer músico, diz sobrevivente

Em depoimento à Justiça Militar, em abril, Sérgio Gonçalves de Araújo, sogro do músico e também baleado no carro fuzilado pelos militares, relatou que o catador estava tentando socorrer Evaldo quando foi baleado pelos militares. De acordo com ele, que estava no banco do carona, os militares dispararam rajadas contra o carro da família em dois momentos. No primeiro, Evaldo desmaiou assim que foi baleado e caiu sobre seu ombro. O sogro, então, conseguiu conduzir o carro, que entrou em ponto morto, e pará-lo.

Vendo que os tiros tinham parado, os demais ocupantes —a mulher de Evaldo, o filho do casal de sete anos e a amiga Michele da Silva Leite Neves —deixaram o veículo e gritaram por ajuda. Nesse momento, Macedo foi socorrer Evaldo. O catador tentou abrir a porta do motorista, que estava trancada.

"Minha filha desesperada fora do carro começou a gritar. Nisso veio um rapaz que eu nem conheço [Macedo], morador dali mesmo. Só vi quando ele passou na frente do carro e veio na porta para ajudar", disse. "Na segunda sessão de tiros, eu estava tentando destravar a porta. Aí que começou", relembrou Araújo, que se escondeu entre o banco e o painel do carro na hora dos tiros, mas foi baleado nas costas e no glúteo.

Militares debocharam de socorro, relataram viúvas

Os depoimentos dos militares foram adiados por duas vezes —esta é a primeira vez que eles falam publicamente sobre o crime. Em agosto, o depoimento já havia sido adiado, após a constatação de que a Polícia Militar não enviou para prestar depoimento, conforme solicitado pela defesa dos réus, PMs que chegaram ao local logo depois dos disparos em uma viatura Ford Ranger. Em setembro, a Justiça Militar decidiu adiar de novo o depoimento dos 12 militares envolvidos nos crimes ocorridos em 7 de abril.

A estratégia da defesa dos militares em pedir o adiamento do interrogatório se baseou no fato de eles responderem em liberdade pelos assassinatos de Evaldo e Luciano. Em maio, por 11 votos a 3, os ministros do STM (Superior Tribunal Militar) decidiram conceder liberdade aos militares envolvidos na ação.

Eles haviam sido denunciados pelo MPM (Ministério Público Militar) na Justiça Militar. Os nove militares são réus pelos crimes de duplo homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado e por não terem prestado socorro às vítimas. Em depoimento à Justiça Militar, as viúvas de Evaldo e Macedo disseram que os militares envolvidos na ação que matou seus maridos "debocharam" dos pedidos de socorro.

O que já alegaram os militares

Evaldo dirigia um Ford Ka Sedan branco, rumo a um chá de bebê, e transportava a mulher, um filho, o sogro e uma adolescente. Ao passar por uma patrulha do Exército na Estrada do Camboatá, em Guadalupe, o veículo foi alvejado por militares —83 tiros atingiram o veículo. O motorista morreu no local.

O sogro ficou ferido, mas sobreviveu. O catador Luciano Macedo, que passava a pé pelo local, também foi atingido e morreu 11 dias depois de internado.

Inicialmente, o Comando Militar do Leste emitiu nota dizendo que a ação era resposta a um assalto e sugeriu que os militares haviam sido alvo de uma "agressão" por parte dos ocupantes do carro. A família contestou a versão e só então o Exército recuou e mandou prender dez dos 12 militares envolvidos na ação.

Um deles foi solto após alegar que não fez nenhum disparo. Os militares teriam confundido o carro do músico com o de criminosos que, minutos antes, havia praticado um assalto perto dali.

Foram presos o tenente Ítalo da Silva Nunes Romualdo, o sargento Fábio Henrique Souza Braz da Silva e soldados Gabriel Christian Honorato, Matheus Santanna Claudino, Marlon Conceição da Silva, João Lucas da Costa Gonçalo, Leonardo Oliveira de Souza, Gabriel da Silva de Barros Lins e Vítor Borges de Oliveira. Todos atuam no 1º Batalhão de Infantaria Motorizado, na Vila Militar, na zona oeste do Rio.