Topo

Artigo: O transporte coletivo deve operar normalmente na calamidade

A manutenção do funcionamento dos serviços de transporte coletivo é essencial, a começar para quem busca atendimento médico - Divulgação/Assessoria Sindicato dos Motoristas
A manutenção do funcionamento dos serviços de transporte coletivo é essencial, a começar para quem busca atendimento médico Imagem: Divulgação/Assessoria Sindicato dos Motoristas

Thiago Guimarães*

Especial para o UOL

24/03/2020 16h42

Resumo da notícia

  • Entre as medidas para conter a expansão do novo coronavírus, destacam-se as que limitam a movimentação de pessoas.
  • Entretanto, é controversa a adoção de limites à circulação de pessoas no interior de países e de centros urbanos
  • Seria um equívoco suspender serviços de transporte sem oferecer à população alternativas que preservem seu acesso a postos de saúde e hospitais
  • O que se tem de fazer urgentemente é introduzir mecanismos para limitar a ocupação dos veículos e coibir aglomerações

Entre as diversas medidas implementadas para conter a expansão do novo coronavírus (covid-19), destacam-se por sua eficácia aquelas que limitam a movimentação de pessoas. Enquanto o fechamento de fronteiras terrestres com países vizinhos e a interrupção do tráfego aéreo de passageiros tendem a ser politicamente consensuais e socialmente palatáveis, é controversa a adoção de limites à circulação de pessoas no interior de países e de centros urbanos.

Na região metropolitana de São Paulo, prefeitos de sete municípios que integram o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC decidiram na semana passada suspender gradativamente os serviços municipais de transporte por ônibus até sua completa interrupção, programada para o próximo dia 29. Hoje eles voltaram atrás na decisão de paralisar 100% dos transportes coletivos municipais.

A medida não foi coordenada com as autoridades estaduais, que devem continuar operando o transporte nesses municípios. Conforme recentes reportagens, o governo estadual estaria hesitante em aplicar um plano emergencial, o que poderia acarretar a paralisação de metrôs, trens e ônibus metropolitanos. Tampouco foi interrompida até agora a circulação de ônibus em outros municípios da região. A situação ilustra a ausência de uma visão para os transportes compartilhada entre os gestores públicos.

A interrupção do transporte seria, em tese, consistente com as recomendações das autoridades sanitárias, segundo as quais todos devem permanecer em suas residências o máximo possível. Se os principais locais de atividade — estabelecimentos comerciais, escolas, parques, shopping centers e diversos serviços não essenciais — encontram-se fechados, para que transporte?

Também se argumenta que a utilização de ônibus e trens pode representar em si um risco para a saúde. Embora não haja evidências específicas para o novo coronavírus, estudos científicos mostraram que o risco de contaminação de certas doenças respiratórias é mais elevado entre usuários de transporte coletivo.

Em que pesem esses argumentos, a manutenção do funcionamento dos serviços de transporte coletivo é absolutamente essencial para a metrópole, a começar para aqueles em busca de atendimento médico. Mais da metade das viagens por motivo de saúde no município de São Paulo é viabilizada por metrôs, trens e principalmente ônibus. Especialmente os segmentos sociais mais vulneráveis — os mais pobres, os com menor grau de instrução e os residentes de bairros mais afastados — dependem do transporte coletivo para ir a serviços de saúde. Seria um grave e perigoso equívoco suspender serviços de transporte sem oferecer à população alternativas que preservem seu acesso a postos de saúde e hospitais.

Além disso, parte da população paulistana tem se queixado da dificuldade de comprar artigos básicos, como alimentos e remédios por causa do surto do coronavírus. Embora não se fale em crise de desabastecimento, nas atuais circunstâncias pode ser necessário se deslocar a lugares mais distantes (e, portanto, menos acessíveis a pé) para encontrar itens de necessidade básica.

Também não se pode esquecer da rotina de profissionais atuantes em diversos setores considerados essenciais, que não devem parar nas próximas semanas. Aqui estão incluídos os profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros, de cuja atuação dependerão muitas vidas nas próximas semanas.

Para reduzir as chances de contaminação, operadores já intensificaram as ações de limpeza e higienização de trens e ônibus. O que se tem de fazer urgentemente é introduzir mecanismos para limitar a ocupação dos veículos e coibir aglomerações em plataformas, paradas e terminais. Situações de superlotação no transporte coletivo, infelizmente comuns na metrópole que tem uma rede relativamente restrita de transporte estrutural em relação à ordem de grandeza de sua população e de sua extensão territorial, são no presente contexto intoleráveis.

A manutenção de transporte público em funcionamento não deve ser entendida como um sinal oposto à recomendação de isolamento social e nem como um incentivo para que pessoas saiam de suas casas. Também não pode ser utilizada como argumento para que trabalhadores de serviços não essenciais se desloquem a seus usuais locais de trabalho.

Reduzir a oferta de transporte, por meio da suspensão de linhas de ônibus ou da diminuição do número de veículos em circulação, significa retirar a oportunidades de acesso e usufruto de serviços essenciais, além de agravar o problema da superlotação ao invés de mitigá-lo. Repensar a política de mobilidade urbana neste momento pode estar atrelada a uma questão de vida ou morte.

*Thiago Guimarães é doutor em mobilidade urbana pela Universidade de Leeds (Inglaterra), especializado em transporte e acesso a equipamentos de saúde.