Denúncias de intolerância religiosa desmentem 'cristofobia' de Bolsonaro
Diferentemente do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro em discurso na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), na terça-feira (22), existe um tipo de fobia religiosa no Brasil, mas não é contra cristãos. Segundo historiadores, sociólogos, pais de santo e até mesmo padres e pastores evangélicos ouvidos pelo UOL, os alvos são religiões de matrizes africanas.
Além disso, pesquisadores afirmam que a hegemonia cristã está mudando de mãos. Católicos, que segundo o Censo de 2010 representavam 64,4% da população, perdem espaço para os evangélicos.
Segundo projeção do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), a transição religiosa será consolidada em 2028, quando evangélicos serão maioria, com 37,2% da população, contra 36,4% de católicos.
Atualmente, segundo pesquisa Datafolha de dezembro do ano passado, os católicos são 50% da população brasileira. Os evangélicos, 31%, e os adeptos de religiões de matriz africana, 2%.
Já os dados mais recentes do Ministério dos Direitos Humanos através do Disque 100, entre 2015 e 2017, mostram que católicos e protestantes são vítimas de 1,8% e 3,8% das denúncias de intolerância religiosa, respectivamente. As denúncias relativas a fiéis do candomblé e da umbanda somam 25% do total.
Cristofobia x Cristocracia
Historicamente, religião e política caminharam tão juntas no Brasil que o catolicismo foi religião oficial no período colonial e monárquico, aponta o historiador Antonio Cosme Lima da Silva, 59.
O catolicismo foi violento quando hegemônico, impediu as manifestações religiosas dos índios e dos negros. Mais recentemente, os evangélicos neopentecostais promovem campanha agressiva que não só é inconstitucional como beira a histeria. A recorrência à expressão cristofobia é uma tentativa de desviar o foco dessa intolerância praticada pelos aliados do presidente
Valdélio Santos Silva, professor de antropologia da UNEB (Universidade do Estado da Bahia)
O estado laico só foi decretado na Constituição de 1890, após a Proclamação da República. Ainda assim, a intolerância religiosa só virou crime no Brasil em 1940. Mesmo assim, até 1976 os terreiros de candomblé da Bahia só podiam funcionar se autorizados pela Delegacia de Jogos e costumes.
Para o Pastor Joel Zeferino, 48, da Igreja Batista Nazareth, em Salvador, não há que se falar em cristofobia em um país cuja estrutura da sociedade está nas mãos de cristãos, não apenas numericamente, mas do ponto de vista das instituições.
"O presidente, os ministros, pessoas que detêm o poder são cristãs; não há histórico de invasão de igrejas e vilipendiamento de espaços sagrados cristãos. É inconcebível um dirigente de uma nação se pronunciar de maneira tão mal informada ou mal-intencionada", declarou.
Padre Lázaro da Silva Muniz, 54, da Paróquia Santa Cruz, do Engenho Velho da Federação, também na capital baiana, vai na mesma linha. "Não chego a perceber uma reação a Cristo, Talvez haja uma reação ao cristianismo, legítima no sentido de que a igreja católica e os evangélicos foram os que mais perseguiram outras formas de religião."
Desconheço qualquer estudo ou pesquisa que demonstre que cristãos foram sistematicamente perseguidos em algum momento da nossa história. O que ocorreu é justamente o contrário: segmentos transformando o Brasil numa monocultura religiosa, atuando em bloco para tomar o poder e fazer do país uma 'cristocracia'"
Antonio Cosme Lima da Silva, historiador.
Cristãos contra cristãos
Estudo publicado pelo CCIR aponta que dos 1.014 atendimentos realizados pelo Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (CEPLIR) no Rio de Janeiro entre abril de 2012 e agosto de 2015:
- 71% das denúncias de intolerância religiosa foram feitas por candomblecistas e umbandistas,
- 8% por evangélicos e
- 4% por católicos.
Santos garante que, ainda assim, os cristãos só são vítimas da intolerância religiosa praticada por outros cristãos. Foi este o caso de um registro coletado pelo Centro de Referência de Combate à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, ligada à Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi), do Governo do Estado da Bahia.
A depredação de uma réplica do Cristo Redentor, no município de Tanquinho, a 130 km de Salvador, foi justificada pelo seu autor, um evangélico de 40 anos, desta forma: "Não se deve adorar imagens". Ele foi preso e depois liberado.
Segundo o centro, o episódio em Tanquinho foi um dos três únicos registrados por cristãos desde que o órgão foi criado, em 2013. Durante estes sete anos, todos os outros 212 casos foram ataques a terreiros do candomblé.
Para o sociólogo Aiton Ferreira, racismo religioso é a expressão que melhor define casos de intolerância. O ex-secretário de Reparação Racial de Salvador lembra da luta para tirar do ar, em 2004, um programa de televisão que chamava terreiros de "chiqueiro" e orixás de "satanás".
O debate hoje não é sobre a cristofobia, mas sobre a presença exagerada de Cristo. Virou prática comum aderir à cristandade para obter aprovação imediata. Usa-se o fato de ser evangélico como referência para arrumar emprego e até para conseguir votos. Usa-se a bíblia como blindagem para não levar tiro de traficante na periferia nem pertencer a uma facção na cadeia
Aiton Ferreira, sociólogo
Para ele, a saída é buscar representatividade política. Ele cita o caso de Pai Anderson de Oxalá, babalorixá de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, que foi obrigado pelo poder público a encerrar uma atividade religiosa após denúncia de poluição sonora. "É difícil entrar numa disputa política numa cidade em que 12 dos 17 vereadores são evangélicos", afirma.
Já no Rio de Janeiro, alguns evangélicos recém-convertidos permanecem no tráfico de drogas e usam seu poder de intimidação para cercear a liberdade religiosa, segundo Marcelo Dias, criador da Agen-Afro, agência de notícias dos eventos relativos à religião e cultura afro-brasileira.
"Alguns intrusos se aproveitaram do momento para se associar a traficantes e intimidar gente de sair de casa de branco ou de cabeça raspada. A situação vai de intolerância a etnocídio religioso", critica.
A violência gerada pela intolerância religiosa resultou no fechamento de 176 terreiros entre janeiro e setembro de 2019, apontam dados da CCIR.
O Procurador da República Júlio Araújo acompanha desde o ano passado as denúncias de ataques a terreiros promovidos pelos "Traficantes de Jesus". São bandidos que usam linguajar ou signos típicos de grupos neopentecostais, como a bandeira do estado de Israel, e são mais comuns na Baixada Fluminense, especialmente em Duque de Caxias e Nova Iguaçu.
O procurador diz ter recebido uma só denúncia contra adeptos de religiões de matriz africana. Um estudante do Instituto Federal Fluminense se sentiu incomodado porque queria que um núcleo de estudos afro-brasileiros promovesse estudos bíblicos: "Arquivei a denúncia, não se enquadra, não havia ataque a outra religião. O episódio mostrou que existe um sufocamento das minorias no Brasil".
Hegemonia cristã
Para o historiador Cosme, a ascensão evangélica, sobretudo a dos neopentecostais, marca um novo momento na história da intolerância religiosa no Brasil.
Ele cita os desdobramentos do ataque feito contra Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda, pelo jornal Folha Universal, da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), que estampou na capa uma foto dela acompanhada dos dizeres "macumbeira charlatã". "Foi a primeira vez que uma igreja foi condenada por atingir a honra de uma mãe de santo", diz.
O episódio inspirou o decreto que instituiu o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007. Dois anos depois, a IURD foi condenada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a pagar indenização de R$ 260 mil aos filhos e marido da ialorixá.
Para Ivanir dos Santos, presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), o discurso de Bolsonaro é um aceno à IURD. "Essa fala foi dirigida ao seu maior aliado político, por conta das acusações criminais imputadas aos pastores brasileiros em Angola", opina.
No último dia 24 de junho, o governo angolano ratificou a decisão que dissolveu a diretoria e destituiu o bispo brasileiro Honorilton Gonçalves da cúpula da IURD no país, agora denominada Igreja Universal de Angola. Pastores e bispos brasileiros foram depostos por "discriminação racial" e obrigarem "castração ou vasectomia aos pastores angolanos".
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