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Bolsonaro distorce fatos em discurso na ONU

Jair Bolsonaro (sem partido) em gravação de discurso para a 75ª Assembleia Geral da ONU - Marcos Corrêa/PR
Jair Bolsonaro (sem partido) em gravação de discurso para a 75ª Assembleia Geral da ONU Imagem: Marcos Corrêa/PR

Ana Carla Bermúdez e Nathan Lopes

Do UOL, em São Paulo

22/09/2020 13h08Atualizada em 25/09/2020 20h38

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) distorceu fatos e mentiu em seu discurso na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) exibido hoje.

Na fala, que durou 14 minutos, Bolsonaro elevou o valor do auxílio emergencial para 1.000 dólares a 65 milhões de brasileiros, afirmou que índios e caboclos são responsáveis por incêndios na Amazônia e disse que as queimadas no Pantanal acontecem em decorrência das altas temperaturas na região.

O UOL Confere avalia trechos do discurso do presidente. Em itálico, as declarações de Bolsonaro. Em seguida, as análises das falas:

Combate à pandemia do novo coronavírus

Desde o princípio, alertei, em meu país, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade."

Logo no início do discurso, Bolsonaro falou sobre o combate à pandemia do novo coronavírus.

O presidente, de fato, sempre alertou para os problemas econômicos decorrentes da pandemia. Mas é mentira que ele deu a mesma importância para a questão da saúde pública.

Apenas no mês março, ele se referiu ao novo coronavírus como um "vírus superdimensionado", disse que "não podemos entrar numa neurose", e classificou a doença como "uma gripezinha".

Em 28 de abril, quando o Brasil chegou à marca de 5.017 mortes por causa da covid-19 e ultrapassou a China (que somava, à época, 4.643 vítimas), Bolsonaro foi questionado sobre os dados e respondeu: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre".

Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da federação. Ao presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o país."

Ainda sobre as medidas de combate à pandemia, Bolsonaro fez referência a uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que deu autonomia para governadores e prefeitos decidirem sobre ações locais e quais atividades essenciais poderiam operar.

A fala de Bolsonaro é imprecisa, pois não considera que a decisão do STF manteve a capacidade do governo federal de indicar medidas de isolamento, como a respeito do fechamento de fronteiras. Estados, por exemplo, não podem fechar rodovias. Para o STF, cabe ao governo coordenar as diretrizes de isolamento a serem seguidas em todo o país.

Esta decisão do Supremo saiu em abril, no momento em que a pandemia começava a se acelerar no Brasil e Bolsonaro desejava editar um decreto para reabrir todo o comércio.

Auxílio emergencial de 1.000 dólares

Nosso governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior. Concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1.000 dólares para 65 milhões de pessoas, o maior programa de assistência aos mais pobres no Brasil e talvez um dos maiores do mundo."

Em um dos trechos mais polêmicos do discurso, Bolsonaro mentiu ao dizer que o governo concedeu cerca de 1.000 dólares como auxílio emergencial para 65 milhões de pessoas.

Pela cotação atual, de R$ 5,42 para cada dólar, o presidente afirma que o governo destinou cerca de R$ 5.400 para cada brasileiro atendido pelo governo.

Na verdade, o auxílio deverá ser de, no máximo, R$ 4.200 à maioria dos beneficiários. São cinco parcelas de R$ 600 e mais quatro de R$ 300. Na moeda americana, seriam cerca de US$ 775.

E nem todos os favorecidos devem receber R$ 4.200. Ao prorrogar o benefício, o governo endureceu regras, alterou critérios e reduziu o número de parcelas em alguns casos.

Existe um grupo de beneficiários que pode passar dos 1.000 dólares —as mães que são chefes de família receberam parcelas de R$ 1.200. Com o novo formato do programa, elas passaram a receber R$ 600. Se uma mãe chefe de família tiver todas as parcelas cheias até dezembro, ela pode ganhar R$ 8,4 mil —algo em torno de US$ 1.549.

Até agora, segundo o Ministério da Cidadania, cerca de 10 milhões de pessoas receberam, por mês, o auxílio no valor de R$ 1.200. Na primeira parcela do auxílio, mais de 10,7 milhões receberam o benefício neste valor; na quinta, o número caiu para 9,2 milhões.

Não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de covid."

Bolsonaro também mentiu ao afirmar que os hospitais não tiveram problemas para tratar os pacientes de covid-19. Em abril e maio, alguns estados tiveram colapso no sistema de saúde, como Amazonas, Pernambuco, Ceará e Maranhão.

Especialistas chegaram a reclamar da falta de coordenação do governo federal para distribuir pacientes para estados com maior quantidade de leitos vagos durante a pandemia.

No fim de maio, o painel de leitos do Ministério da Saúde apontava que o Brasil tinha 34 mil leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para pacientes infectados com o novo coronavírus. Entretanto, havia diferenças regionais gritantes no uso desses leitos: enquanto capitais já tinham passado de 90% de ocupação desses leitos, outras não chegavam perto dos 50%.

Queimadas na Amazônia e no Pantanal

Nossa floresta [amazônica] é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas."

Bolsonaro disse que o Brasil é vítima de "uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal", mas distorceu os fatos ao falar sobre os incêndios que atingem essas regiões.

Ao contrário do que afirmou o presidente no discurso, não há evidências de que os incêndios na Amazônia tenham acontecido por iniciativa de caboclos e indígenas.

Em setembro deste ano, pesquisadores do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da Universidade de Estocolmo publicaram uma carta na revista Science em que afirmam que boa parte das queimadas e do desmatamento na Amazônia, entre 2019 e 2020, está relacionada a "apropriação e desmatamento em larga escala" realizadas por médios e grandes fazendeiros.

Uma investigação da Polícia Federal sobre o "Dia do Fogo", quando os focos de incêndio triplicaram no estado do Pará, em 2019, considerou inicialmente a hipótese de que os principais suspeitos pela organização desses atos são fazendeiros, madeireiros e empresários.

Segundo as investigações, o episódio foi organizado em um grupo de WhatsApp e contou com uma "vaquinha" para comprar combustível e contratar motoqueiros para espalhar as chamas, conforme mostrou a Repórter Brasil. Mesmo assim, um ano após o ocorrido, ninguém foi preso ou indiciado.

Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação. Mantenho minha política de tolerância zero com o crime ambiental. Juntamente com o Congresso Nacional, buscamos a regularização fundiária, visando identificar os autores desses crimes."

Ao falar sobre o combate aos incêndios, Bolsonaro ignorou que, em seu governo, houve desmonte da política ambiental e de órgãos que tradicionalmente atuam na fiscalização de crimes ambientais, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Apesar do aumento no desmatamento no país, as sanções impostas pelo Ibama caíram 60% nos seis primeiros meses deste ano, na comparação com o mesmo período do ano passado.

Além disso, segundo o MPF (Ministério Público Federal), o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, interferiu nas estruturas de fiscalização do Ibama após Bolsonaro pressionar sua equipe devido à destruição de maquinário usado por grileiros na Amazônia.

O nosso Pantanal, com área maior que muitos países europeus, assim como a Califórnia, sofre dos mesmos problemas. As grandes queimadas são consequências inevitáveis da alta temperatura local, somada ao acúmulo de massa orgânica em decomposição."

O presidente não levou em consideração as investigações sobre as queimadas no Pantanal ao atribuir o problema à alta temperatura e ao acúmulo de massa orgânica em decomposição. A Polícia Federal suspeita de atos criminosos.

O delegado Daniel Rocha já afirmou que focos de incêndio identificados em junho e julho tiveram início em regiões pouco habitadas e distantes de Corumbá (MS) e dentro de propriedades rurais. De acordo com ele, "não tem como não terem sido ocasionados por ação humana".

Na reserva particular do Patrimônio Natural Sesc Pantanal, na região de Barão do Melgaço, em Mato Grosso, peritos apontaram que o incêndio aconteceu por queima intencional de vegetação desmatada para criação de área de pasto para gado.

Manchas de óleo no litoral do Nordeste

Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle, acarretando severos danos ao meio ambiente e sérios prejuízos nas atividades de pesca e turismo."

Outro assunto citado por Bolsonaro, sem provas ou mais detalhes, foi o derramamento de óleo que resultou no aparecimento de manchas escuras no litoral de nove estados do Nordeste e dois do Sudeste, no ano passado.

Em agosto, a Marinha brasileira encaminhou um relatório à Polícia Federal sem apontar os responsáveis pelo vazamento e sem confirmar que a ação foi criminosa. As investigações continuam.

Desde o episódio, autoridades brasileiras vinham afirmando que o óleo seria de origem venezuelana. Em fevereiro deste ano, no entanto, 25 cientistas de instituições de países como Brasil, Espanha e Itália publicaram um artigo na revista Marine Policy em que questionam afirmações de que a origem do óleo seria venezuelana.

De acordo com o texto "Derramamento de óleo no Atlântico Sul (Brasil): desastre ambiental e governamental", faltou transparência ao governo brasileiro com a comunidade científica para mostrar a forma como a hipótese foi confirmada. Por conta disso, eles dizem que não podem descartar qualquer possibilidade da origem de óleo.

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