Juízes militares questionam benefício a ex-PM condenado por matar travestis
Condenado por assassinar travestis, o ex-soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) Cirineu Carlos Letang Silva cumpre pena em regime semiaberto em um presídio para policiais militares, em desacordo com uma norma recente da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça Militar (TJM).
A permanência de Letang na unidade penitenciária é questionada por juízes militares. A nova regra determina que o Presídio Militar Romão Gomes, localizado na zona norte de São Paulo, abrigue apenas PMs da ativa e da reserva (aposentados) e que membros expulsos e demitidos da corporação cumpram pena em prisões comuns. Dados da própria corporação mostram que 17% dos atuais 205 detentos do local são ex-policiais militares.
Letang foi demitido da PM e deixou de ser soldado em 2008, após ser condenado em 2003 a 44 anos por matar três travestis na madrugada de 13 de março de 1993 na Água Branca, zona oeste. Naquela data, foram mortas as irmãs Vilma e Viena, como eram chamadas Jaime Félix da Silva e Reginaldo Félix da Silva, respectivamente. A poucos metros de onde as irmãs foram mortas, uma nova vítima: Valéria, nome social de José Wilson da Silva. Ele já havia sido condenado pelos assassinatos de outras duas travestis, uma em 27 de dezembro de 1992 e outra em janeiro de 1993.
Desde então, ele passou temporadas no Romão Gomes e depois na Penitenciária II de Tremembé, no Vale do Paraíba, interior do estado.
Após 18 anos preso, entre o regime fechado e o semiaberto, Letang ganhou o benefício do regime aberto em 2011. No entanto, 71 dias após ser solto, ele voltou a matar, em crime na região da Barra Funda, zona oeste da capital paulista. A vítima foi a travesti Camila Close, nome social de Alisson Pereira Cabral dos Anjos.
Com isso, foi encarcerado novamente no interior paulista, mas, em 2014, retornou à unidade militar. Pelo crime, recebeu condenação de 21 anos de prisão. Em todos os homicídios, Letang usou o mesmo método: tiros na cabeça das vítimas.
Na decisão que tirou Letang da corporação, o juiz Avivaldi Nogueira Junior, do TJM, afirmou que ele "nutria ódio e desprezo por travestis". Para o magistrado, o ex-PM cometeu os assassinatos de março de 1993 porque "não admitia que eles, na qualidade de homossexuais-travestis, ostentassem publicamente esta condição e buscassem, mediante pagamento, parceiros em via pública para a prática de atos sexuais".
Somente no ano passado, 175 travestis e mulheres trans foram assassinadas, conforme dados do Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Dentre as vítimas, 56% tinham entre 15 e 29 anos. Dos assassinatos, 65% foram direcionados às profissionais do sexo e 71% aconteceu em locais públicos. Quase oito a cada dez vítimas eram pessoas negras (pretas e pardas). Outro ponto é que 47% dos assassinatos foram cometidos por armas de fogo, mesmo método utilizado por Silva, segundo apontou a investigação sobre seus crimes.
'Estranheza'
Em 2019, Letang progrediu novamente para o regime semiaberto. Em maio daquele ano, ao analisar e negar um pedido do ex-PM para frequentar locais comuns durante seu horário de almoço no trabalho fora da cadeia, o juiz militar Fernando Pereira pontuou seu espanto com a situação do preso:
Necessário consignar a estranheza deste relator com o fato desse sentenciado estar cumprindo pena no Presídio da Polícia Militar Romão Gomes, uma vez que quando da prática do crime de homicídio que resultou na sua condenação há muito tempo já não integrava as fileiras da Polícia Militar.
Além de ter sido condenado por matar travestis, Letang tem no currículo a invasão ao Pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção, em 2 de outubro de 1992. Ao agir para controlar uma rebelião, a PM matou 111 homens, evento conhecido como Massacre do Carandiru.
O ex-PM, porém, foi o único dos envolvidos a ser julgado em separado, porque estava preso pelas mortes das travestis e aguardava um laudo de sanidade mental. Por sua ação no Carandiru, ele foi condenado a 624 anos de prisão, mas, assim como os outros policiais, teve pena anulada. Agora, aguarda um novo julgamento do caso.
Ao UOL, a advogada Ieda Ribeiro de Souza, que atua na defesa de Letang, afirmou que partiu dela o pedido para seu cliente ser mantido na unidade militar. Quando esteve detido em Tremembé, diz, ele foi ameaçado por outros detentos.
Ele faz parte do caso Carandiru. Se coloco ele dentro de um presídio comum com essa acusação, é traçar a trajetória de morte dele.
Ieda Ribeiro de Souza, advogada
Publicada em 30 de novembro de 2020, a normativa assinada pelo juiz Avivaldi Nogueira Junior, corregedoria Geral do TJM, estabelece que ex-policiais sejam transferidos para cadeias comuns.
O Presídio Militar Romão Gomes, por expressa disposição legal, destina-se a presos que ostentem a condição de militar, seja da ativa, da reserva remunerada ou não-remunerada, ou reformado.
Avivaldi Nogueira Junior, corregedor do TJM
Demitido há 12 anos da corporação, Letang não teria direito ao benefício. A normativa estabelece, porém, que ex-policiais sejam mantidos na unidade militar "por questão humanitária ou outra circunstância que encontre respaldo legal". É com essa prerrogativa que a advogada sustenta a permanência de Letang no Romão Gomes.
Atualmente, diz ela, ele trabalha e cursa a faculdade de direito. Durante o tempo em que esteve preso, ele se formou em teologia e sociologia. Sobre a possibilidade de Letang se tornar um advogado, Ieda pontua que ele escolheu o curso "na esperança de entender o que está acontecendo com ele".
Outros ex-PMs
De acordo com a PM, o Romão Gomes comporta 310 presos. Em resposta enviada à reportagem no último dia 13, a corporação informou que o local estava com 205 detentos sendo 35 ex-policiais militares (cerca de 17%).
A corporação também informou que "a transferência dos ex-policiais, de acordo com a instrução normativa do Tribunal de Justiça Militar, é de competência exclusiva do tribunal, devendo os questionamentos relacionados ao assunto serem direcionados àquele órgão".
Diferente de Letang, os ex-PMs Victor Cristilder Silva Santos e Tiago Henklain foram encaminhados para o CDP Pinheiros III. Ambos são acusados pela morte de 17 pessoas em agosto de 2015, no que ficou conhecido como Chacina de Osasco e é a maior da história de São Paulo.
Desde novembro do ano passado, seis ex-policiais foram deslocados do Romão Gomes para prisões comuns, informa a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária).
A advogada Ieda Ribeiro de Souza, responsável pela defesa de boa parte dos PMs denunciados pelas mortes no Massacre do Carandiru, demonstra contrariedade à decisão do tribunal.
Eu não posso submeter [os ex-PMs] a locais onde eles possam cruzar a qualquer momento com pessoas que prenderam. Se tiver uma rebelião, eles serão os primeiros atingidos.
Ieda Ribeiro de Souza, advogada
Questionado sobre o caso de Letang, o TJM não respondeu até a publicação desta reportagem.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.