STJ julga se quilombola pode virar diplomata por meio de cotas para negros
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou nesta quarta-feira (23) o julgamento de um recurso de uma descendente de quilombolas que foi rejeitada como candidata cotista negra num concurso do Itamaraty. Rebeca Silva Mello já conseguiu ser admitida como analista do Ministério Público do Distrito Federal graças a uma decisão judicial, após ter tido seu ingresso inicialmente negado porque é negra e "bonita".
Agora, a candidata tenta reverter uma decisão do Itamaraty em 2017, quando foi aprovada no concurso e rejeitada dias depois por ser considerada branca.
O recurso dela será analisado pela 1ª Seção do STJ de maneira virtual até a próxima terça-feira (29). A relatora é a ministra Assusete Magalhães. Procurado pelo UOL, o Ministério das Relações Exteriores ainda não prestou esclarecimentos. Eles serão publicados se forem recebidos.
Descendente de quilombolas, Rebeca Mello foi admitida nesta semana como "integrante" da comunidade Kalunga, "com todos os direitos decorrentes desta condição".
Ela é economista, estudante de direito, tem 28 anos e mora em Brasília. Foi aprovada como analista judiciária do Ministério Público do Distrito Federal e aguarda a nomeação --a validade do concurso foi suspensa. Passou em provas iniciais para agente da Polícia Federal e tem notas para ser aprovada mesmo sem o sistema de cotas.
Eu sou negra, não só por causa da minha aparência física, mas por causa da minha história e ascendência. Eu vou ser diplomata. A nossa comunidade não vai ficar sem voz"
Rebeca Mello, economista
Estudante tenta ser diplomata há cinco anos
Em 2016, ela ganhou uma bolsa de estudos de R$ 25 mil que o Itamaraty paga para negros para que eles façam cursos preparatórios para a prova do Instituto Rio Branco. No ano seguinte, preparada, Rebeca participou da disputa para o Itamaraty como negra. Ficou em segundo lugar entre os cotistas. Passou na comissão de verificação de raça. Portanto, foi aprovada como candidata parda.
Mas, depois, o Itamaraty reverteu a decisão e fez outra comissão de verificação. Dessa vez, ela e outros três candidatos, antes aprovados, foram considerados brancos. O Ministério Público ainda entrou na Justiça contra os candidatos.
Agora, o STJ vai analisar um mandado de segurança dos advogados de Rebeca Mello. Eles pedem que ela volte para a lista de aprovados e seja nomeada como Terceira Secretária da carreira de diplomata no Itamaraty.
Avó deixou quilombo para ser doméstica
Uma das ancestrais de Rebeca foi sua tia-avó Joana Cesário Torres. Ela viveu na comunidade dos Kalunga, na zona rural de Cavalcante (GO), cerca de 300 quilômetros ao norte de Brasília, até os 109 anos. A idosa foi "um dos maiores ícones da nossa comunidade", afirmou o presidente da Associação Quilombola Kalunga, Jorge Moreira de Oliveira, em uma declaração entregue à economista nesta terça-feira (23).
Dona Joana era irmã de Gina Cesário de Torres, avó de Rebeca. "Também era quilombola", contou a economista ao UOL. "Minha avó saiu do quilombo criança para trabalhar como doméstica. Minha mãe é kalunga por descendência, mas viveu a vida toda já fora do quilombo". A mãe ficou infância e adolescência em Cavalcante e veio para Brasília depois.
A advogada da economista reitera esse fato na ação no Superior Tribunal de Justiça. "A agravante [Rebeca] é descendente de um quilombo, especificamente o Kalunga, e já havia sido aprovada em diversos concursos públicos na condição de negra, inclusive tendo aferido bolsa de estudos no âmbito do próprio Ministério Das Relações Exteriores", afirmou a defesa, em memoriais entregues depois de obterem o documento da Associação Quilombola Kalunga.
Kalungas atestam que economista é negra
Em 16 de fevereiro de 2018, a Associação Kalunga reconheceu Rebeca como "legítima descendente da comunidade". Na terça-feira (23), a economista foi a Cavalcante (GO) e, lá, obteve uma declaração em que confirma a certidão anterior que afirma que Rebeca "integra a comunidade Kalunga, com todos os direitos decorrentes desta condição".
A certidão, decorrente de procedimentos estabelecidos com muito rigor, deveria tornar incontestável sua condição de pessoa negra, porque não é deferida a quem não observe este requisito"
Jorge Moreira, presidente da Associação Quilombola Kalunga
Rebeca disse que se considera uma quilombola porque tem os mesmos direitos que os moradores do local. Um deles é o de se mudar para lá e conseguir um pedaço de terra para viver. O ex-presidente da associação, Vilmar Costa, hoje é prefeito de Cavalcante. Ele confirmou o entendimento:
Ela é quilombola. Ela não mora no quilombo, mas é quilombola. Onde ela estiver ela é quilombola"
Vilmar Costa, quilombola e ex-presidente da associação
Lei prevê cotas até 2024
De acordo com o Estatuto da Igualdade Racial, a população negra é formada por pessoas que se declaram pretas ou pardas, os critérios definidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Já a lei 12.990 reserva aos negros 20% das vagas dos concursos públicos realizados entre 2014 e 2024, depois do fim do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ou no segundo mandato dele, em caso de reeleição.
Essa regra afirma que "poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público", conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE.
Mas, em 2018, a portaria 4 do Ministério do Planejamento (hoje, da Economia) criou comissões de "heteroidentificação" para confirmar as a declarações dos candidatos. A regra diz que essa avaliação "utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato". Isso significa observar a aparência do candidato.
Ainda assim, a autodeclaração tem "presunção relativa de veracidade" e deve prevalecer "em caso de dúvida razoável a respeito de seu fenótipo [dos candidatos"]. Por isso, o Supremo Tribunal Federal tem considerado que o histórico familiar e fotografias podem ser usados para comprovar que uma pessoa é negra.
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