Jacarezinho: Laudos de cena mais letal indicam mortes sem chance de defesa
Documentos relacionados à investigação das mortes durante a Operação Excepios — na qual agentes da Polícia Civil do Rio mataram 27 civis na favela do Jacarezinho em maio — mostram indícios de execução e desfazimento da cena do crime no local onde ocorreram mais mortes.
O termo execução é um jargão policial usado quando há envolvimento de agente público em mortes em que a vítima está rendida ou não apresenta possibilidade de reação.
O UOL analisou exames de necropsia, o laudo de perícia de local e mais de uma dezenas de depoimentos sobre as sete mortes que ocorreram em um prédio próximo à rua do Areal, no interior do Jacarezinho, logo no começo da operação.
Após a ação policial, moradores e parentes de vítimas denunciaram à Defensoria Pública e à OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil) a ocorrência de execuções. Presos na ação disseram que foram torturados e obrigados a carregar corpos, o que é ilegal. A Polícia Civil foi questionada sobre os elementos apontados pelos peritos e sobre diversos pontos referentes às investigações, mas não respondeu a nenhuma das perguntas feitas pela reportagem.
Participaram da ocorrência oito policiais civis da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) — grupo de elite da Polícia Civil do Rio. Homens dessa unidade estiveram envolvidos em 22 das 27 mortes no Jacarezinho. Desde 2007, operações da Core resultaram em 304 homicídios na Região Metropolitana.
A corporação se limitou a enviar uma nota afirmando que "os laudos são compatíveis com o que ocorre em casos de conflito armado em ambientes confinados. Só é possível uma análise técnica após o confronto de todas as provas produzidas, assim evitando conclusões precipitadas. Todos os atos são submetidos ao Ministério Público, que possui uma apuração autônoma em paralelo".
Seis dos sete mortos eram negros
Entre os sete mortos no interior do imóvel, seis eram homens negros. A proporção repete um padrão sistêmico de atuação da polícia no Rio.
Dados compilados pela Rede de Observatórios de Segurança mostram que mais de 78% das pessoas mortas pelas forças policiais no Rio de Janeiro em 2019 eram negras — pelo menos 1.423 das 1.814 vítimas. O número pode ser ainda maior, tendo em vista que não há informações sobre a raça de outros 159 mortos.
O dado indica que pessoas negras são vitimadas de forma desproporcional pelas forças de segurança, já que apenas 51,7% dos fluminenses são negros. Em contrapartida, os brancos representam 47,4% da população, mas só foram vítimas de 12,7% das mortes cometidas por policiais em 2019.
Para Pablo Nunes, coordenador-adjunto do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), da Universidade Cândido Mendes, a operação pode ser classificada como um "massacre". Ele ressalta que o fato de pessoas negras serem um alvo preferencial da polícia repete um padrão histórico na segurança pública do Rio.
"Essa máquina de mortes que se atualiza todos os anos acaba sendo um fator para a normalização dessas mortes. É como na pandemia do coronavírus: são tantos dias seguidos com a morte de 2.000 pessoas que ninguém se importa mais. E a morte das pessoas negras se dá nesse sentido. Há uma banalização muito grande. Não é dada importância para essas mortes porque os alvos são aqueles outros que ameaçam a sociedade de alguma forma", critica.
Ação ocorreu após morte de policial
Segundo depoimentos dos moradores, tudo ocorreu pouco depois das 6h — momento em que a operação foi iniciada e o policial civil André Frias foi morto por criminosos.
De acordo com os depoimentos dos policiais e de moradores do prédio, um grupo de traficantes fugiu pelas lajes de casas na área e invadiu o imóvel pelo andar superior. Os policiais foram informados que o deslocamento havia sido flagrado por um helicóptero de TV e seguiram para o local. Os traficantes tentaram fazer os moradores de reféns para se proteger.
Tanto os agentes quanto os moradores sustentam que houve troca de tiros no interior do imóvel. No total, cinco homens foram baleados no 3º andar, e outros dois no 2º pavimento. Nenhum policial ficou ferido.
O laudo de perícia de local encontrou elementos que indicam um confronto no 2º andar, mas não foi conclusivo nesse sentido em relação ao 3º andar. Segundo os peritos, o fato de os corpos terem sido removidos pelos policiais e de a cena do crime não ter sido preservada prejudicaram a perícia.
Disparos podem indicar mortes sem chance de defesa
A pedido do UOL, dois peritos criminais analisaram os laudos cadavéricos dos sete mortos durante a incursão. Em ao menos três deles a dinâmica dos ferimentos pode sugerir que as vítimas morreram sem chance de defesa.
O caso mais emblemático é o de John Jefferson Mendes Rufino da Silva, 30 anos. Ele foi atingido por um tiro de fuzil à curta distância em uma região próxima ao coração. O disparo deixou o que peritos chamam de orla de tatuagem — quando a vítima está próxima o bastante da arma para que a pólvora usada para efetuar o disparo provoque marcas em sua pele ou roupas.
Ambos os peritos ressaltam que não é possível afirmar que houve uma "execução", no jargão policial, apenas com a análise do laudo cadavérico.
Só será possível chegar a uma conclusão na reconstituição do crime para confrontar o laudo do IML com a versão das testemunhas, dos policiais e fotos."
Leandro Cerqueira Lima, presidente da Associação Brasileira de Criminalística
Contudo, Cassio Rosa — perito aposentado da Polícia Civil do Distrito Federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — aponta que o ferimento é compatível com esse tipo de prática.
É um elemento sugestivo de ações de execução."
Cassio Rosa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Já Wagner Luiz de Magalhães Fagundes, 38 anos, foi atingido por dois tiros nas costas: um com trajetória da direita para a esquerda, e outro da esquerda para a direita. Ele ainda foi atingido por um terceiro disparo, que atravessou seu braço direito e transpassou todo o tronco da direita para a esquerda. Para Cassio Rosa, essa dinâmica indica que a vítima foi submetida a múltiplas linhas de tiro com sentidos diferentes.
"É sugestivo que estava submetida a duas linhas de tiro opostas, com elementos que têm que ser contextualizados no local onde aconteceu [o confronto]. Eles servem, no mínimo, para trazer um alerta", avalia.
Já Diogo Barbosa Gomes, 38 anos, foi atingido por um tiro no lado direito do peito, pouco abaixo do osso externo. O projétil saiu na região da lombar, indicando que o disparo foi dado de cima para baixo.
"Isso sugere a hipótese de que o atirador encontrava-se em um plano elevado em relação à vítima", explica Rosa.
Leandro Cerqueira Lima não descarta a possibilidade de fraude processual na ocorrência. Isso porque os policiais afirmaram terem removido os corpos porque socorreram os baleados ainda com vida — eles foram levados no interior de um blindado para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro, a mais de 11 km do Jacarezinho.
Porém, todos os sete mortos tinham sofrido graves ferimentos provocados por tiros de fuzil no tronco e tinham danos no coração ou no pulmão. Em vários casos, também foram atingidos órgãos como o fígado e o intestino.
Lima cita como exemplo o caso de Pablo Araújo de Mello, 26 anos. Atingido no peito, próximo ao diafragma, ele teve danos graves no coração, pulmão esquerdo e no fígado.
Ele tem uma lesão importante no coração, como mostra uma foto anexada ao laudo. Com esse tipo de ferimento por um tiro de fuzil bem no meio do peito, provavelmente a pessoa teria poucos minutos de vida. Mas é difícil afirmar se houve ali uma intenção de desfazer a cena ou de socorrer a vítima [apenas com base nos laudos]."
Leandro Cerqueira Lima, presidente da Associação Brasileira de Criminalística
Depoimentos idênticos
Chama a atenção também a similaridade dos depoimentos prestados pelos oito policiais civis envolvidos nas mortes à DH (Delegacia de Homicídios da Capital) — unidade responsável por apurar se as mortes foram cometidas em legítima defesa ou se os agentes cometeram crimes durante a ocorrência.
Todos os oito depoimentos foram tomados no dia da operação pela mesma escrivã e registrados no sistema da Polícia Civil entre 19h44 e 20h38 — em alguns casos, o intervalo entre os depoimentos foi de menos de 5 minutos.
O teor dos depoimentos é praticamente idêntico: cruzamento dos arquivos feito pelo UOL no software Copyleaks constatou que a equivalência no conteúdo dos documentos é superior a 90% — o sistema é utilizado para, entre outras coisas, flagrar a ocorrência de plágios em trabalhos acadêmicos. Questionada sobre isso, a Polícia Civil não retornou ao pedido da reportagem até a publicação deste texto.
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