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Militar tenta provar na Justiça que não é branco para cursar medicina no AP

Juciley Barros foi barrado por comissão que analisou uma única foto, a da carteira de identidade militar, em que consta como pardo - Acervo Pessoal
Juciley Barros foi barrado por comissão que analisou uma única foto, a da carteira de identidade militar, em que consta como pardo Imagem: Acervo Pessoal

Abinoan Santiago

Colaboração para o UOL

11/07/2021 04h00

Filho de uma descendente indígena e de um homem negro, o bombeiro militar Juciley Barros, de 34 anos, tenta provar na Justiça que não é branco e, com isso, realizar o sonho de cursar medicina na UNIFAP (Universidade Federal do Amapá).

Autodeclarado pardo, o bombeiro passou em dezembro de 2020 na modalidade de cota racial destinada para pretos, pardos e indígenas, mas se viu desclassificado pela comissão que valida o fenótipo do candidato, três anos após ser aprovado para cursar direito usando a mesma cota na UNIFAP.

A reprovação ocorreu em 23 de junho e gerou indignação em Juciley. Ele diz que, além de não ser filho de brancos, já foi aprovado na mesma cota em outro curso na UNIFAP . Além disso, relata, a única foto encaminhada é a que consta na carteira de identidade militar, documento em que consta como pardo.

Estão lidando com sonhos. Isso é tão absurdo que quando eu conto para os outros, pensam até que é brincadeira minha por causa da cor de pele. Tornou-se uma situação vexatória."
Juciley Barros

Questionada pelo UOL sobre o motivo de ter aprovado o candidato em 2018 e vetado neste ano, a UNIFAP informou que, no processo seletivo anterior, "bastava a autodeclaração do candidato" como negro ou pardo para usufruir da modalidade de disputa. Não existia banca para validar o fenótipo.

"A partir de 2020, a UNIFAP começou a adotar a Comissão de Heteroidentificação para análise de candidatos pretos, pardos e indígenas com procedimentos amparados pela legislação, além da autodeclaração do candidato", explicou a pró-reitora de Graduação, Elda Araújo.

Em despacho de quinta-feira (8), o juiz Hilton Sávio Pires pediu explicações à UNIFAP sobre se a comissão que desclassificou o militar é a mesma que o validou em 2018. Além disso, solicitou "a reserva de vaga" em medicina ao candidato enquanto o caso é analisado, sem prejuízo para quem já a ocupou.

Juciley posa ao lado da mãe, descendente de indígenas - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Juciley posa ao lado da mãe, descendente de indígenas
Imagem: Acervo Pessoal

Não é a primeira vez que Juciley e a UNIFAP brigam na Justiça. Aprovado para a vaga no final de 2020 por meio de chamada pública, o militar diz ter sido impedido de se matricular por não possuir carteira de reservista das Forças Armadas. A UNIFAP confirma o impedimento.

O edital, consultado pelo UOL, não menciona o tipo de documento que o candidato deve apresentar, apenas exige a "prova de que está em dia com suas obrigações militares". O caso também foi parar na Justiça.

"Quando se é aprovado em uma força auxiliar às Forças Armadas, o certificado de reservista é recolhido pois a pessoa não está mais na reserva, e sim na ativa", explicou o advogado Errinelson Vieira, que defende Juciley.

O argumento foi aceito em 17 de março de 2021 pelo juiz João Bosco Soares, da 2ª Vara Federal do Amapá. O magistrado considerou que não era necessária a apresentação da dispensa de alistamento porque a "Carteira de Identidade Militar de Bombeiro também é documento com aptidão para comprovar a regularidade da situação militar".

Ao UOL, a UNIFAP informou que o candidato poderia pedir uma cópia aos bombeiros, mas que mesmo assim não recorreu da decisão, pois o problema seria corrigido nos próximos processos seletivos.

Sonho frustrado

Depois de conseguir o direito de continuar na disputa, Juciley se surpreendeu ao ser avisado pela UNIFAP, por e-mail que havia sido desclassificado pela banca de heteroidentificação, que valida se o candidato é negro, pardo ou indígena conforme a cota racial a que pleiteia.

A reunião da comissão, formada por cinco pessoas negras, ocorreu por videoconferência em razão da pandemia e sem a presença do militar — ao contrário do que previa o edital, segundo o qual a presença física do candidato era exigida somente "após retorno das atividades acadêmicas e administrativas".

No parecer, obtido pelo UOL, o colegiado "concluiu que, diante da análise de heteroidentificação, não encontrou marcadores de negritude (preta e parda), configurando as características de pessoa não negra". O documento não menciona quais eram as características negras que a comissão pretendia encontrar no candidato.

"Quando superei o problema do documento, fiquei despreocupado porque em 2018 fui aprovado em direito na mesma cota", recorda Juciley.

A gente pensa muita coisa sobre que pode ter acontecido e fica parecendo uma retaliação do processo que movi anteriormente. Eu ficaria conformado se o parecer justificasse o que fez eu ser eliminado, mas me sinto injustiçado. Parece que sou ariano ou nórdico."
Juciley Barros

Ao UOL, a pró-reitora da universidade reiterou que a comissão desclassificou Juciley porque "não apresenta em seu fenótipo traços de negritude, exigidos para os cotistas". Até o fechamento desta edição, porém, não esclareceu quais as características que a comissão pretendia encontrar no militar e o que foi levado em consideração para a decisão, já que o candidato alega não ter participado da banca. Se enviado um posicionamento, ele será publicado.

Seis anos de tentativas

A vaga conquistada por Juciley já está ocupada por outro candidato, mas o militar ainda mantém a esperança de estudar medicina, seu foco nos últimos seis anos de processo seletivo.

Em meio às escalas de serviço como bombeiro e os cuidados dos filhos de 2, 7 e 10 anos, Juciley dedicava cinco horas diárias aos estudos para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

"Fica até difícil sentar em uma cadeira para estudar novamente porque só eu sei o que passei para ser aprovado. Tenho que trabalhar como bombeiro e três crianças para ajudar a cuidar", afirmou.

Natural de Portel, no Pará, e há 13 anos atuando como bombeiro no Amapá, Juciley pretendia deixar a farda após virar médico e dar uma vida melhor aos filhos, esposa, mãe e os quatro irmãos. O pai morreu de covid-19 neste ano.

"É um sonho que não é só meu, mas de toda a minha família. O curso de medicina foi uma oportunidade que vi para mudar de vida", frisa.