Terreno da Havan tinha 20 peças de cerâmica indígena e louças do século 19
Vinte achados arqueológicos foram encontrados no terreno onde foi construída a Havan, em Rio Grande (RS), a 317 km de Porto Alegre. Entre eles estão cerâmicas pré-coloniais de dois tipos diferentes - uma delas de indígenas tupi-guaranis - e pedaços de louças fabricadas no final do século 19. Hoje o material está guardado na Furg (Universidade Federal do Rio Grande).
Na última semana, a obra esteve no centro de uma polêmica após o presidente Jair Bolsonaro (PL) admitir que fez trocas na direção do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ao receber reclamações de Luciano Hang, dono da rede de lojas de departamentos e apoiador ferrenho do político. A loja foi inaugurada em julho deste ano.
"Tomei conhecimento que uma obra... Uma pessoa conhecida, Luciano Hang, estava fazendo mais uma loja [da Havan] e apareceu um pedaço de azulejo durante as escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra. Liguei para o ministro da pasta, né? 'Que trem é esse?', porque eu não sou tão inteligente quanto meus ministros. 'O que é Iphan?', com 'ph'. Explicaram para mim, tomei conhecimento e ripei todo mundo do Iphan", disse Bolsonaro durante evento na Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
Botei outro cara lá. O Iphan não dá mais dor de cabeça para a gente."
Jair Bolsonaro, a empresários
As declarações acabaram resultando na apresentação na última quinta-feira (16) de uma notícia-crime contra o presidente no STF (Supremo Tribunal Federal), apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O parlamentar pede que Bolsonaro seja investigado por prevaricação e advocacia administrativa. Indicado por Bolsonaro e recém-empossado ministro do Supremo, André Mendonça foi sorteado como relator da ação.
UOL entrou em contato com a assessoria da Havan, realizada pela empresa New Age Comunicação, mas não obteve retorno.
A reportagem também procurou o MPF (Ministério Público Federal), que instaurou um inquérito civil público relacionado aos achados arqueológicos no terreno da loja de departamento. Porém, o órgão se limitou a dizer que a investigação é sigilosa e está "em curso". A assessoria do órgão salientou ainda que a procuradora da República de Rio Grande, Anelise Becker, "não pretende falar com a imprensa", em nota enviada ao UOL.
Cerâmicas foram os primeiros vestígios a ser encontrados
Os primeiros vestígios arqueológicos no terreno foram encontrados em 4 de julho de 2019 pela Archaeos Consultoria em Arqueologia, contratada pela Havan para fazer a análise da área. Na época, havia 152 sítios arqueológicos cadastrados no Iphan-RS apenas em Rio Grande.
Neste dia, foram localizados quatro fragmentos - três deles cerâmicos e um não identificado. No final da análise dos arqueólogos, que durou três meses, foram localizadas 20 peças: 11 de cerâmica, oito de louças e um não identificado.
Feitas por povos indígenas, essas cerâmicas encontradas ali são de dois tipos diferentes, da Tradição Vieira e da Tradição Tupi-Guarani. Uma das diferenças entre elas é o local onde os fragmentos são localizados. Na primeira, os sítios arqueológicos estão em áreas alagadiças, enquanto a outra é proveniente de sítios erodidos entre dunas. Há a possibilidade de serem encontradas no mesmo local, o que é mais difícil de ocorrer.
No canteiro de obras da Havan foram localizadas mais cerâmicas da tradição Vieira, que podem ter vindo de "alguma duna erodida no fundo do empreendimento, e sido espalhados por todo o terreno ao longo dos anos, seja pela ação humana ou ação natural", destacam os profissionais.
Os objetos podem ter entre 200 a 2 mil anos.
O nome Vieira se deve pelo local onde foram encontrados pela primeira vez os achados arqueológicos deste tipo em Rio Grande, em 1966. Segundo pesquisadores da área, essa cerâmica era utilizada por "grupos caçadores, coletores e pescadores encontrados no sul do Rio Grande do Sul e norte do Uruguai".
São recipientes simples, sem decoração. "Em suma, a tradição Vieira é conhecida por possuir vasilhas de base plana ou convexa, por terem tamanhos pequenos, com formas e contornos simples, coloração escura e geralmente sem decoração", observam os pesquisadores que assinam o relatório final.
Apenas um fragmento é de cerâmica Tupi-Guarani, que estava bastante desgastado, conforme descrição dos profissionais. "Mas parece ter a decoração corrugada, característica de vasilhas utilizadas como panelas", segundo trecho do documento.
Também foram encontrados fragmentos de uma "possível panela de barro" e três artefatos históricos de faiança fina, uma louça branca, associada a argilas mais plásticas. Porém, diferente dos outros achados, são de um período diferente. Uma delas, com decoração de faixas e friso coloridos na borda, parou de ser produzida nos últimos anos do século 19. Já outros dois tipos passaram a ser produzidos entre 1851 e 1860 e ainda hoje são fabricadas.
Na base de uma dessas peças é possível ler a palavra "Oxford", marca brasileira de louças criada em 1953.
Iphan recomendou bloqueio de parte da obra
Devido à identificação dos primeiros vestígios arqueológicos, a Archaeos observou ao Iphan ser necessário a realização de "prospecção intensiva no local e após a continuidade do monitoramento das obras", segundo projeto encaminhado ao instituto. Por conta disso, o instituto recomendou o bloqueio de parte da obra. Em parecer técnico, foi indicado a "interdição" de uma área de 0,3 hectares, podendo as obras seguir nos outros 30,52 hectares restantes.
O documento é assinado pelo arqueólogo Alexandre Cavalcanti Gomes Neto e pelo coordenador substituto de pesquisa e licenciamento Thiago Berlanga Trindade, da área técnica do CNA (Centro Nacional de Arqueologia), ligado ao Iphan, em Brasília. O documento é de 8 de agosto de 2019.
No dia seguinte, foi publicada portaria no DOU (Diário Oficial da União) permitindo a continuidade do projeto dos arqueólogos. A autorização é assinada pela diretora substituta do CNA, Danieli Helenco.
Passado três meses da publicação, em novembro de 2019, a diretora substituta do CNA cobrou a "apresentação imediata" do relatório final das atividades desenvolvidas "tendo em vista que expirou em 09/10/2019 o prazo de vigência da autorização de pesquisa arqueológica".
A exigência ocorreu três semanas após Luciano Hang ir até Rio Grande e inaugurar um "atrasômetro" no terreno, devido à demora para obter o alvará do estabelecimento. Na época, segundo o painel, a loja de departamentos aguardava há 150 dias o alvará de construção.
O relatório final foi apresentado ainda em novembro de 2019, no qual os profissionais observam que limpeza do terreno já estava sendo realizada pela escavadeira quando iniciou a atividade de monitoramento arqueológico, que consiste no acompanhamento da retirada da vegetação, da destocagem das raízes, da terraplanagem e do transporte de sedimentos.
Nesta etapa foram localizados mais vestígios arqueológicos, além dos primeiros encontrados.
Os profissionais também fizeram a prospecção arqueológica, com o uso de cavadeira e peneiramento do sedimento. Diferente do monitoramento arqueológico, que se estendeu por três meses, essa etapa foi realizada em quatro dias - de 12 a 15 de agosto. Na prospecção arqueológica foram feitos 96 poços-testes e três sondagens de 1m². Com isso, quatro áreas foram realizadas para a realização das escavações. "Conforme as escavações terminavam, estas áreas eram liberadas", destaca o documento.
Diferente do outro trabalho, na prospecção arqueológica não foram encontrados nenhum material arqueológico.
No final do documento, a arqueóloga Danielle Crescenti Dias reforça que as "áreas isoladas para a realizada desta etapa (de prospecção) foram inteiramente respeitadas pelo empreendedor, logo que realizada a prospecção estas áreas foram liberadas para as atividades da obra". Além dela, trabalharam no projeto os historiadores Cledir Oliveira San Martin e Charles da Silva de Miranda.
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