'Me envergonho da Justiça': mãe espera há 6 anos júri de PM que matou filho
A sensação de Márcia Machado Guimarães Dingo ao ver chegar mais um Dia das Mães é de revolta. Há mais de seis anos, a dona de casa aguarda uma resposta da Justiça sobre o assassinato de seu filho. Mas a morosidade do Judiciário resulta até o momento em impunidade em um dos casos mais chocantes de violência policial no Rio de Janeiro.
Em outubro de 2015, o filho de Márcia —Thiago Guimarães Dingo, então com 21 anos— foi morto ao lado do amigo Jorge Lucas de Jesus Martins Paes, 17, com um tiro de fuzil pelas costas. Thiago conduzia sua moto por uma rua da Pavuna, zona norte do Rio, enquanto Jorge, na garupa, carregava um macaco hidráulico.
Mesmo alertado por colegas de guarnição sobre o erro iminente que iria cometer, o sargento da PM Carlos Fernando Dias Chaves, então lotado no 41º BPM (Irajá), não hesitou em puxar o gatilho: o tiro transpassou pelas costas os dois jovens, que caíram da moto já mortos. Na gravação em vídeo dentro da viatura, é possível ouvir os outros PMs afirmarem: "Não é arma, não. É macaco, maluco".
Thiago trabalhava como mototaxista e, naquela tarde, tentava reforçar os ganhos por um motivo nobre: havia combinado com a noiva, grávida de sete meses, de ir ao comércio após o trabalho para comprarem o enxoval de sua primeira filha.
O jovem sonhava em ser pai, como revela o adesivo com o nome da filha que havia colocado na frente de sua moto. Mas ele nunca chegou a conhecer Alice, que nasceu dois meses depois de sua morte.
Chaves se tornou réu pelo duplo homicídio em 2016. Em dezembro de 2019, houve a decisão de que ele será julgado por um júri popular. No entanto, desde então praticamente não houve movimentação no processo.
Eu acho a nossa Justiça falha demais. Me envergonho dessa Justiça. Porque se verdadeiramente esse cara matou tanta gente, já era até para estar afastado da polícia."
Márcia Dingo, mãe de Thiago
O próprio policial afirmou em depoimento à Justiça que isso não esteve nem perto de acontecer. Ele relatou não ter sequer respondido administrativamente pelas duas mortes.
O aposentado Gilberto Lacerda Dingo, pai de Thiago e marido de Márcia, tem 76 anos e passou a sofrer de problemas cardíacos após a tragédia. Ele diz temer não estar vivo para ver o responsável pela morte ser condenado e preso.
"Eu quero ver ele ser condenado, expulso [da PM] e preso. Esse é o maior sonho que eu tenho. Inclusive no velório do meu filho estava saindo da capela, dei um beijo no meu filho e falei assim: 'Deus me dando vida e saúde, vou lutar para que isso não fique dessa maneira'", relembra.
A única coisa que eu peço é que Deus me dê muita saúde para eu chegar a esse ponto. Chegou ao ponto que ele foi condenado e está preso, vou fazer uma oração: 'Meu Deus, pode me puxar porque eu consegui tudo'."
Gilberto Lacerda Dingo, pai de Thiago
Procurado, o TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) negou que haja morosidade no julgamento do caso.
"Em razão da pandemia, o Tribunal de Justiça suspendeu as audiências e julgamentos, em consonância com as medidas de prevenção sanitárias, mas se verifica que houve despachos do juízo no processo", diz, em nota.
Durante a pandemia de covid-19, os tribunais de júri se debruçaram sobre casos mais recentes, de grande repercussão. O processo em que o ex-vereador Dr. Jairinho (sem partido) responde pela morte do menino Henry Borel teve diversas audiências durante a crise sanitária. O mesmo ocorreu com o caso do assassinato do pastor Anderson do Carmo, marido da ex-deputada federal Flordelis.
"Nesse meio tempo, vimos um monte de casos que aconteceram depois [da morte de Thiago] serem julgados. Será que o nosso foi esquecido?", questiona Gilberto.
'Meu filho não podia estar aqui?'
Márcia e Gilberto dizem que os anos não aplacaram a dor causada pela ausência do filho, sobretudo em datas comemorativas. Por isso, na última quarta-feira (4) ela já se preparava para o sofrimento do Dia das Mães.
"Dia das Mães vem aí e eu não coloco só eu, acredito que existem muitas mães que perderam seus filhos. Não falo só sobre o que eu sinto. Coloco cada uma dessas mães no meu lugar porque é muito ruim. O tempo pode passar, oito anos, dez anos, 20, 30, mas o sentimento é muito ruim. Para mim, não existem mais essas datas especiais", diz ela, aos prantos.
Gilberto também revela que esses dias são os piores para lidar com o luto.
"Ele [o PM] está curtindo a vida dele. As festas comemorativas estão chegando, ele reúne a família. E eu sem o meu filho? É uma queda enorme. Natal, Ano Novo, aniversário da minha esposa, o meu. Agora vem o Dia das Mães. Todas essas datas batem na gente. No Dia dos Pais eu penso: 'Meu filho não podia estar aqui?'."
Histórico de mortes
Policial do Bope (Batalhão de Operações Especiais) por sete anos, Chaves —que hoje é segundo sargento da PM, com duas décadas de serviço— tornou-se, ao longo da carreira, um dos policiais mais letais do Rio.
Chaves se envolveu diretamente em 28 mortes entre 2010 e 2015 —o segundo maior número registrado entre todos os policiais do estado no período, segundo revela cruzamento de dados da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos Autos de Resistência, feita pela Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), do ISP (Instituto de Segurança Pública) e da Polícia Civil
Gilberto guarda consigo um levantamento feito na ficha funcional de Chaves, que relaciona mais de uma dezena desses homicídios —classificados oficialmente como mortes por intervenção de agente do Estado, quando um suspeito é morto ao supostamente trocar tiros com policiais.
Segundo ele, aquela é a maior prova da má conduta do policial.
"Isso aqui é tudo ocorrência que ele faz, aquela famosa auto de resistência. E ainda tem mais ainda", diz ele, exibindo a folha. "Ele mata, faz o que tem que fazer, vai na delegacia e faz o boletim de ocorrência. É totalmente covarde e assassino."
Após matar Thiago e Jorge Lucas, Chaves se envolveu em novo crime: em agosto de 2016, participou de uma operação no Complexo do Chapadão, também na Pavuna, e matou o jovem Marco Antonio Pinheiro Junior.
Segundo o MP, "o crime foi cometido por motivo torpe, qual seja, justiçamento abjeto". O laudo de necropsia do corpo do homem revelou que os quatro disparos feitos por Chaves deixaram marcas de tiros à queima-roupa. Ele também é réu por esse homicídio.
A Justiça determinou que o policial passasse a fazer exclusivamente trabalho interno, perdesse o porte de armas e não fosse mais ao bairro da Pavuna, mas permitiu que ele seguisse trabalhando na PM e respondesse ao processo em liberdade.
Durante todo esse tempo, o policial recebeu normalmente seu salário —hoje de R$ 6.700.
Outro lado
A reportagem entrou em contato com o advogado de Chaves e pediu um posicionamento sobre os três homicídios pelos quais ele responde, bem como pelo envolvimento em dezenas de mortes ao longo de sua carreira, mas ele não respondeu.
No processo, a defesa do policial alegou que ele agiu em legítima defesa ao atirar contra Thiago e Jorge e "equivocou-se em relação a um elemento objetivo da legítima defesa 'real', qual seja a presença de uma agressão injusta iminente". Sustenta que, por isso, ele seja absolvido.
O UOL também perguntou à Polícia Militar se a Corregedoria Interna da corporação havia investigado as três mortes pelas quais Chaves responde na Justiça, mas não houve resposta.
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