Topo

Ameaça, helicóptero, suspeito: o que se sabe do sumiço de dupla na Amazônia

16.nov.2019 - O jornalista Dom Phillips (c) conversa com indígenas da aldeia Maloca Papiú, no Roraima - JOAO LAET/AFP
16.nov.2019 - O jornalista Dom Phillips (c) conversa com indígenas da aldeia Maloca Papiú, no Roraima Imagem: JOAO LAET/AFP

Gabriel Dias

Colaboração para o UOL

08/06/2022 10h34Atualizada em 08/06/2022 14h14

As buscas pelo jornalista inglês Dom Phillips, 57, colaborador do jornal "The Guardian" e o indigenista Bruno Araújo Pereira, 41, servidor licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio), desaparecidos desde o último domingo (5), continuam na região do Vale do Javari, na Amazônia. Um suspeito foi preso e quatro testemunhas foram ouvidas.

Preso em flagrante por posse de drogas e munição de uso restrito, Amarildo da Costa de Oliveira, 41, conhecido como "Pelado", foi apontado por testemunhas como o dono de uma lancha verde que estava logo atrás da embarcação do indigenista e do jornalista.

Ele foi encontrado na comunidade de São Gabriel, no Rio Itacoaí, com a lancha citada pelas testemunhas, uma porção de substância entorpecente semelhante à cocaína, um cartucho calibre 16 deflagrado e munição intacta calibre 762, de uso restrito das Forças Armadas.

A equipe de busca e salvamento vasculha os rios Javari, Itaquaí e Ituí desde segunda-feira. Sete militares da Capitania Fluvial de Tabatinga (AM), duas lanchas, uma moto aquática e um helicóptero estão sendo usados nos trabalhos, segundo a Marinha. Um outro helicóptero teria sido enviado à região, mas ainda não há confirmação de que está sendo usado.

A Justiça Federal determinou hoje o envio imediato de mais helicópteros, embarcações e equipes de busca.

Para o defensor público da União Renan de Oliveira, que atua no Grupo de Trabalho dos Povos Indígenas, a resposta do Estado brasileiro ao caso é lenta. "Deveríamos ter aeronaves e muito mais pessoas envolvidas", disse à BBC Brasil. A Terra Indígena do Vale do Javari tem mais de 8 milhões de hectares, ou seja, é do tamanho de um país europeu, lembrou ele.

Mergulhadores estão no local, mas não chegaram a atuar nos rios, porque não foram encontrados vestígios da embarcação ou sinais de conflitos. "Eles mergulham quando a gente identifica um local e suspeita que possa ter algo lá", disse o subcomandante da Polícia Militar do Amazonas, coronel Agenor Teixeira Filho.

Onde o indigenista e o jornalista desapareceram - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Por onde eles passaram

Bruno e Dom foram vistos pela última vez por volta das 7h de domingo a bordo de um barco e sumiram no trajeto entre a comunidade ribeirinha São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte (AM), onde eram aguardados por duas pessoas ligadas à Univaja (Organização Representativa da terra indígena do Vale do Javari).

Segundo a Univaja, a dupla foi visitar uma equipe de vigilância indígena perto do lago do Jaburu, nas imediações da base da Funai no rio Ituí, para que o jornalista pudesse entrevistar indígenas que vivem no local. As entrevistas foram feitas na última sexta-feira (3) e, na volta, eles pararam em São Rafael, onde Bruno teria uma reunião com o líder comunitário "Churrasco" —ele teria se reunido com a mulher do líder comunitário, já que ele não estava.

De lá, os dois partiram em um barco de motor 40HP para Atalaia do Norte. Após um atraso de mais de duas horas na chegada da dupla, as buscas começaram.

"Não se usa esse tipo de embarcação", disse Yura Marubo, assessor jurídico da Univaja, disse em entrevista coletiva. "Os barcos da nossa instituição são de 200HP. É veloz, rápido e uma questão de segurança e de prioridade à vida dos nossos profissionais dessa área", observou.

Segundo Yura, no barco de 40HP o trajeto era previsto para durar cerca de duas horas. Em um de 200HP ou 300HP, a estimativa seria de meia hora. "Da forma como foi, está totalmente esquisito", acrescentou.

"Não podemos descartar alguma outra hipótese. Mas desconhecimento de área por alguma fatalidade, errou o caminho, coisa do tipo que sempre acontece, isso está descartado, porque o Bruno era um exímio conhecedor tanto da caminhada em mata quanto em caminhadas de barcos", disse Yura.

Os dois desaparecidos tinham 70 litros de gasolina e usavam equipamentos de comunicação via satélite.

Ameaças

Bruno trabalhava com ribeirinhos e indígenas da região, afetada pela ação de invasores. Segundo testemunhas, sofria ameaças constantes de garimpeiros, madeireiros e pescadores que atuavam em terras indígenas e, por isso, a falta de contato após um dos deslocamentos é vista com bastante preocupação.

Em carta reproduzida pelo jornal O Globo, pescadores prometeram "acertar contas" com o indigenista.

Segundi Yura, Bruno sofria ameaças desde quando foi coordenador da Funai em Atalaia do Norte. "Eram ameaças diretas, não mais veladas como acontecia outrora."

O MPF (Ministério Público Federal), que abriu investigação do caso, acionou Polícia Federal, Polícia Civil, Força Nacional e Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari.

Quem são os desaparecidos

Segundo a Univaja, Bruno é um "experiente e profundo conhecedor da região, pois foi coordenador regional da Funai de Atalaia do Norte por anos". A Funai confirmou que ele é servidor, mas tirou uma licença e não estava no local pela fundação. Ele ficou no cargo por mais de uma década e saiu em 2016.

Foi substituído por Ricardo Lopes Dias, nomeado pelo governo Bolsonaro. Dias é pastor, antropólogo e ex-missionário, conhecido por seu interesse na evangelização dos indígenas isolados.

Bruno tem três filhos, dois deles com a antropóloga Beatriz de Almeida Matos, sua companheira. "Eu conheço bem a região, sei que podem acontecer vários acidentes. Mas estou apreensiva por causa das ameaças que ele sofria", disse ela à Folha de S.Paulo.

Dom mora em Salvador (BA) e produz reportagens sobre o Brasil há mais de 15 anos para veículos como "Washington Post", "New York Times" e "Financial Times", além do "Guardian". Atualmente ele está trabalhando num livro sobre preservação da Amazônia, com apoio da Fundação Alicia Patterson, que lhe concedeu uma bolsa de um ano para reportagens ambientais, que durou até janeiro.

Dom e Bruno já haviam percorrido a região em 2018, quando o repórter inglês escreveu sobre as indígenas da Amazônia para o The Guardian.

Onde o indigenista e o jornalista desapareceram - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Violência no Vale do Javari

O Vale do Javari tem a maior concentração de povos isolados no mundo e sofre há anos com ataques armados a postos de controle da Funai e invasões de caçadores ilegais. O local fica na fronteira com o Peru e a Colômbia, com acesso restrito por vias fluviais e aéreas.

A região é palco de conflitos decorrentes da invasão às terras indígenas. "Tem questões envolvendo o narcotráfico, a atividade de madeireira, de pesca ilegal e garimpo, e a organização indígena está nesse enfrentamento contra a invasão das terras", relatou Fabio Ribeiro, coordenador-executivo do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato).

Outro indigenista da Funai que atuava na área, Maxciel Pereira dos Santos, foi assassinado em 2019 em Tabatinga (AM) e um posto da Funai que busca controlar o acesso ao território foi alvo de oito ataques armados, em 2018.

Maxciel fazia o mesmo trabalho que o Bruno faz, ressaltou Yura: "Apreensão, detenção, apresentação, queimar equipamentos, prender material de pesca e caça. Ou seja, não é um trabalho dessas instituições porque é um trabalho de polícia, e por conta disso criou-se ódio e muitos inimigos."

A Terra Indígena Vale do Javari é a segunda maior do Brasil com 8,5 milhões de hectares demarcados. Ali estão os povos Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo. Há ainda outros dez subgrupos isolados confirmados e mais quatro em estudo.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o desaparecimento "expõe a fragilidade das ações de fiscalização e segurança" numa região que viveu um crescimento de 9,2% na violência letal entre 2018 e 2020 decorrente da disputa entre facções criminosas somada aos crimes ambientais.

Repercussão

A irmã do jornalista Dom Phillips fez um apelo para que autoridades brasileiras façam "todo o possível" para achar o irmão e o indigenista Bruno Pereira. "Ele ama o país e se importa profundamente com a Floresta Amazônica e seu povo. Sabíamos que era um lugar perigoso, mas Dom realmente acreditava que é possível proteger a natureza e a vida dos indígenas", afirmou Sian Phillips.

O apelo foi reforçado por Maria Laura Canineu, diretora do escritório da Human Rights Watch no Brasil. "É extremamente importante que as autoridades brasileiras dediquem todos os recursos disponíveis e necessários para a realização imediata das buscas, a fim de garantir, o quanto antes, a segurança dos dois."

"A expectativa dos amigos dele é que as autoridades cumpram o papel delas, para realmente montar uma busca séria na região. A gente entende que é uma região remota, com desafios grandes, em uma área imensa e com pouco acesso. Mas quem tem capacidade de fazer essa busca são as autoridades", comentou Tom Hennigan, correspondente do Irish Times e amigo de Dom Philips, ao UOL News.

"Falando com organizações indígenas da região, eles falaram que, se eles estão nas mãos de pistoleiros ou garimpeiros, realmente uma pressão do estado, mostrando que isso não pode acontecer, é a melhor maneira de conseguir o retorno deles", completou.

Já o presidente Jair Bolsonaro (PL) disse considerar uma "aventura não recomendável" a viagem pela região amazônica de Dom e Bruno.

(Com agências internacionais e Estadão Conteúdo)