Pescador armado ameaçou indígenas Kayapó na semana do sumiço de Bruno e Dom
Assim que repercutiram as notícias sobre as ameaças sofridas por indígenas na véspera do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, no Vale do Javari (AM), um pescador armado decidiu fazer o mesmo contra os Kayapó que atuam na proteção das TI (Terras Indígenas) Menkragnoti e Badjonkore, no sul do Pará.
Há duas semanas, vigilantes indígenas patrulhavam o rio Xingu, que faz fronteira com as áreas demarcadas, quando se aproximaram de seis embarcações para repassar orientações a fim de impedir a pesca predatória, comum na região. Um dos cerca de 15 pescadores abordados, "alterado", interrompeu os indígenas para tirar satisfações e, em tom de ameaça, exibiu uma "escopeta calibre 12 de repetição", segundo relatos da equipe de monitoramento recebidos pela Repórter Brasil.
Um dos integrantes do grupo de proteção, cuja identidade será mantida sob sigilo, disse que o pescador usou declarações semelhantes às relatadas no caso de Bruno e Dom —que a área não é dos indígenas, que eles tinham o direito de pescar ali e que o acesso deles não pode ser impedido.
Apesar de as ameaças de pescadores não serem uma novidade, a intimidação com uso de armas de fogo foi um ato inédito desde que os indígenas iniciaram um patrulhamento permanente naquele ponto do Xingu, em 2019, a fim de acabar com a pesca predatória.
Para outro integrante da fiscalização, ligado ao Instituto Raoni, que dá apoio aos guardiões indígenas, a intimidação foi estimulada por declarações do presidente Jair Bolsonaro (PL) e pelos assassinatos de Dom e Bruno. Após as ameaças, os Kayapó se mobilizaram e reforçaram as equipes de patrulha. Os grupos, que antes contavam com seis vigilantes, agora têm nove indígenas e dois não indígenas.
Os homens que intimidaram a equipe não foram identificados. O Instituto Raoni afirmou que vai enviar nos próximos dias uma denúncia sobre a ameaça para o MPF (Ministério Público Federal).
Nossa equipe está lá para fiscalizar a pesca ilegal, mas os invasores ficam com raiva quando não deixamos eles pescarem."
Megaron Txucarramãe, cacique e liderança Kayapó
Sobrinho do cacique Raoni Metuktire —histórica liderança Kayapó que há mais de 60 anos luta pela demarcação de terras indígenas na Amazônia—, Megaron relata que é comum a entrada de invasores armados nas águas protegidas em épocas de seca, como agora.
"Não temos nenhum apoio da Funai [Fundação Nacional do Índio] no monitoramento, nenhuma ajuda para fiscalizar pescadores, caçadores, garimpeiros, madeireiros. A Funai não está fazendo nada, e nós estamos preocupados com o nosso pessoal lá", diz. Procurada pela Repórter Brasil, a fundação não comentou o relato nem informou quais ações estão sendo feitas para levar segurança à região.
Esse tipo de vigilância organizada pelos indígenas vem se tornando cada vez mais comum em razão do enfraquecimento da Funai durante o governo Bolsonaro e a gestão do delegado Marcelo Xavier à frente do órgão indigenista.
Sem garantia de segurança pelo Estado, os indígenas buscam coibir —por conta própria ou com apoio de servidores comprometidos do Ibama e da Funai— a ação de todo tipo de invasor, como caçadores, pescadores, garimpeiros, grileiros e madeireiros.
A Repórter Brasil enviou questionamentos à Polícia Federal e ao MPF a respeito de quais medidas estão sendo tomadas para garantir a segurança dos indígenas e evitar conflitos com os pescadores, mas não houve resposta.
Operações dos Kayapó contra pesca ilegal
A pesca ilegal, atividade pela qual Bolsonaro já foi multado, era um dos focos de combate de Bruno Pereira no Vale do Javari, onde, com seu apoio, indígenas também organizaram um esquema de proteção territorial. Operações contra atividades ilícitas lideradas por Bruno, que era servidor licenciado da Funai, são apontadas entre as motivações de seu assassinato. Três pescadores foram presos após um deles confessar participação no crime, que vitimou também o jornalista Dom Phillips.
A ameaça do pescador armado mostra que a repercussão do caso Javari teve impacto imediato no Xingu, a 2.000 km de distância.
Ali, os Kayapó realizaram duas grandes operações contra a pesca ilegal em 2018 e 2019. Em uma delas, foram apreendidas seis armas de fogo, sete embarcações e 370 kg de peixe.
Em outra, um pescador foi flagrado com 11 caixas térmicas com cerca de 230 kg de peixe, além de 11 redes de pesca montadas, segundo outro membro da equipe de fiscalização. No Brasil, é proibida a pesca esportiva com o uso de armadilhas, como redes.
Na terra natal de Raoni
A ameaça de duas semanas atrás no Xingu ocorreu num ponto entre as TIs Menkragnoti e Badjonkore, que fica próximo também de uma terceira terra indígena, a Kapôt Nhinore —área cuja demarcação foi iniciada em 2004 e ainda não está concluída.
Um dos membros da equipe de monitoramento relata que se trata de uma área de muitas ameaças pessoais e conflitos desde a década de 1990 por causa da pesca predatória. Ele diz ainda que, como nunca houve fiscalização do poder público, os indígenas sempre fizeram a própria vigilância.
A TI Kapôt Nhinore está numa área simbólica, já que foi ali onde nasceu o cacique Raoni. "Tem uma terra chamada Kapôt Nhinore que daqui a uns anos eu mesmo estarei lá para demarcar, que eu vou focar para demarcar, pois foi onde meus pais nasceram", disse Raoni em entrevista à Repórter Brasil no ano passado.
"Tenho que demarcar essa área para ampliar nossa terra indígena, porque a população está aumentando", afirmou o líder, hoje com 92 anos.
A área está, contudo, ocupada por pousadas onde se alojam pescadores e caçadores atraídos pela fauna do Xingu, que inclui espécies como o tucunaré, pintado, pacu, jacaré, porco do mato e paca.
A principal preocupação dos indígenas é com uma estrada clandestina que sai da Vila Mandi, um distrito de Santana do Araguaia (PA), e chega até muito próximo das terras indígenas no Xingu. Esse é o principal canal usado pelos pescadores que praticam a pesca ilegal na região. Os animais e peixes capturados irregularmente são posteriormente escoados pela mesma estrada para o sudeste do Pará, região de garimpo ilegal.
A TI Capoto-Jarina, também no Xingu, vizinha à Menkragnoti e onde vive hoje Raoni, chegou a sofrer ataques a tiros em agosto de 2020, quando uma barreira sanitária montada pelos indígenas em uma estrada local para evitar a propagação do coronavírus foi alvo de ao menos 29 disparos.
As suspeitas apontavam para o envolvimento de ruralistas da região, já que a barreira estava impedindo o acesso de sojeiros a uma balsa que passa sobre o Xingu e por dentro da terra indígena até chegar à BR-163.
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