'Mulher da casa abandonada' falou que empregada 'era da família', diz irmã
Uma irmã da "mulher da casa abandonada" disse que a funcionária mantida em condições análogas à escravidão no imóvel onde Margarida Bonetti morava com o marido entre o fim da década de 1970 e o começo dos anos 2000 nos Estados Unidos "era da família".
Responsável pelo sustento da irmã, Rosa Vicente de Azevedo prestou depoimento junto à Polícia Civil de São Paulo nesta segunda-feira (11) em inquérito que apura se Margarida foi vítima de abandono de incapaz e se teria algum distúrbio psiquiátrico.
"Margarida nunca teve nenhum tipo de desavença com sua secretária do lar [como ela se referiu a mulher mantida em condições análogas à escravidão]. Muito pelo contrário, pois sempre se deram muito bem e [Margarida] a tinha como um membro de sua própria família", disse Rosa, em depoimento ao qual o UOL teve acesso.
Há duas décadas, em meio às acusações de envolvimento no crime de condição análoga à escravidão nos Estados Unidos, Margarida retornou ao Brasil para morar em uma mansão em Higienópolis, área nobre da capital paulista. A história foi tema de podcast produzido pelo jornalista Chico Felitti para a Folha de S.Paulo.
O podcast optou por preservar o nome da vítima, uma brasileira analfabeta, que foi "dada" para Margarida e o marido quando eles se mudaram para os Estados Unidos. Com jornadas que passavam de 12 horas diárias, ela trabalhava sem receber remuneração e não tinha acesso à geladeira, que ficava trancada, para que ela não consumisse alimentos dali. A mulher também tinha negado acesso à assistência médica.
Segundo a investigação conduzida nos Estados Unidos, a vítima era constantemente agredida por Margarida, que chegou a jogar sopa quente em seu rosto em uma ocasião, ainda de acordo com a denúncia.
Tiro em janela de mansão em Higienópolis, diz irmã
De acordo com o relato da irmã, houve uma escalada de violência em frente à mansão após o sucesso do podcast. Inicialmente, as pessoas que passam diariamente pelo local xingavam e até atiravam objetos no imóvel. "Em certo dia, ocorreu um disparo de arma de fogo que atingiu uma das janelas", disse a irmã da "mulher da casa abandonada" em depoimento.
Segundo Rosa, a irmã não se feriu no ataque e deixou a casa após o incidente. "Margarida não se encontra mais na residência, pois está temerosa pela sua vida e integridade física", complementou.
Questionada pelos investigadores, ela negou que Margarida possua 'problema de ordem mental" e se apresentou como responsável pelo sustento da irmã, incluindo alimentação, vestuário, calçados, dinheiro para compras e locomoção.
Sem saneamento básico e situação precária
A Polícia Civil de São Paulo informou ter aberto investigação após receber ligações da vizinhança com relatos de que residia no imóvel "uma pessoa com problemas de saúde mental, e que estaria necessitando de ajuda". Margarida mora no imóvel, hoje coberto por "vasta vegetação" e sem saneamento básico, segundo o boletim de ocorrência que deu início ao inquérito.
"Ela [Margarita Bonetti] vive em uma casa sem água, sem esgoto e em situação precária. Se está lá dentro nessas circunstâncias, supostamente houve abandono por parte da família. É importante que se apure se houve abandono de incapaz", relatou o delegado Roberto Monteiro, da Seccional Centro.
O delegado confirmou a história contada pelo podcast "A Mulher da Casa Abandonada", citando o contato restrito com os vizinhos e reclamações relacionadas ao corte de árvores na rua. "Ela tinha pouco contato com a vizinhança. Quando tinha, inventava uma história complexa sobre um suposto complô para cortar as árvores."
Margarida foi acusada nos Estados Unidos de ter mantido uma funcionária em condições análogas à escravidão. Condenado em 2001 a seis anos e meio de prisão, o engenheiro brasileiro Renê Bonetti, marido de Margarida, cumpriu pena pelo crime nos Estados Unidos.
'Indícios de processo delirante'
A reportagem conversou com profissionais da área da saúde que ressaltam que não tiveram contato com Margarida —por isso, fizeram apenas uma análise com base em relatos que ouviram.
O psicanalista Christian Dunker vê sinais de transtornos mentais em ações atribuídas a Margarida Bonetti. "Há indícios de um processo delirante. Isso pode acontecer em vários transtornos mentais", avalia.
No caso de Margarida, Dunker cita o isolamento dela na mansão como uma forma de "proteção" em meio a um delírio, onde ela pensa estar sendo vítima de perseguição.
A casa vira uma espécie de bunker [como são chamadas estruturas no subsolo de imóveis para resistir a projéteis de guerra] para uma pessoa que pensa que tem sempre algo ou alguém querendo prejudicá-la. Quem entra, vai trazer veneno ou vai mexer naquela ordem delirante que está ali."
Chrtistian Dunker, psicanalista
"Ela é uma pessoa inacessível. Qualquer um que se aproximar, seja um médico, um psicólogo ou o próprio familiar, vai assumir o lugar do 'perseguidor'", complementa.
O psicanalista acredita na possibilidade de que Margarida não sabia que estava cometendo um crime nos Estados Unidos, em episódios que envolviam puxões de cabelo e até uma sopa quente jogada contra o rosto da vítima.
A psicóloga Julia Bongiovanni, que atua na área de saúde mental e acompanha o podcast "A Mulher da Casa Abandonada", concorda.
"Não parece ser só a perversão de uma infratora da lei. Parece ser o caso de uma pessoa que não consegue responder pelos próprios atos. Pelo que consta nos episódios, há indícios de que ela [Margarida] estaria em sofrimento psíquico e de que precisa de cuidados de saúde mental, principalmente pela situação de insalubridade onde ela vive."
Dunker entende, ainda, que a narrativa dela de que havia um esquema de corrupção envolvendo o corte de árvores deu continuidade ao "delírio". "Provavelmente, os funcionários da Prefeitura de São Paulo entraram no lugar do 'perseguidor'. Ela vê no outro um potencial perseguidor, e está lutando contra esse inimigo imaginário."
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