Para cuidar das filhas, juíza proíbe mãe em prisão domiciliar de trabalhar
Em prisão domiciliar, a vendedora Zaira Freitas dos Santos, 44, luta na Justiça para poder trabalhar e sustentar as duas filhas mais novas, de 8 e 10 anos. Em 2020, ela foi condenada a 18 anos de prisão por tráfico, associação e organização criminosa, mas alega ser inocente.
Atualmente, Zaira mora com as duas filhas crianças, a filha mais velha e o namorado em São Miguel Paulista, periferia do extremo leste da cidade de São Paulo. Apesar da ajuda dos familiares, ela afirma que, sem ter uma renda fixa, a situação financeira da família está prejudicada. "Não tenho como sustentar minhas filhas. Está sendo muito complicado viver nessa situação."
Em maio deste ano, ela passou 34 dias presa até ter o direito à prisão domiciliar, concedida pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em junho deste ano.
A defesa de Zaira alega, desde que foi para prisão domiciliar, ela só sai de casa para ir ao posto de saúde com as filhas e para levá-las à escola. Mas agora precisa de um trabalho fixo para pagar seu aluguel e crias suas filhas —uma tem problemas respiratórios e precisa de medicação de alto custo que não é fornecida pelo Estado.
Prisão domiciliar somente para cuidar das filhas. Para a promotora Raquel Tiemi Hashimoto, do Ministério Público de São Paulo, Zaira deve permanecer em prisão domiciliar para cuidar das filhas menores, mas não deve ter o direito de sair para trabalhar, já que ela deve ser "segregada" do "convívio social pelo risco que traz".
A juíza Tatiana Saes Valverde Ormeleze, da comarca de Mogi das Cruzes, do TJ-SP (Tribunal Justiça de São Paulo), concorda. Ela alega que o regime domiciliar foi concedido, excepcionalmente, "presumindo-se a indispensabilidade dos cuidados maternos para o filho menor de 12 anos". A magistrada ainda afirmou que "o descumprimento das condições impostas" podem resultar em "nova prisão processual".
A defesa não desistiu e, em agosto, foi até o STJ (Superior Tribunal de Justiça) para recorrer da decisão. A ministra Laurita Vaz, relatora do caso, afirmou que a decisão sobre o caso de Zaira cabe à juíza do TJ-SP.
'Só quero cuidar das minhas filhas'. Mãe de cinco pessoas, Zaira mora com três filhas: a mais velha, de 26 anos, e as caçulas, das quais tem medo de ficar longe. Ela também tem dois filhos, de 19 e 28, que não moram mais com ela.
Minha vida virou do avesso. Eu só quero recomeçar a minha vida
Zaira Freitas dos Santos
Direito ao trabalho. Débora Nachmanowicz de Lima, advogada de Zaira, solicitou ao TJ-SP que a mulher possa trabalhar presencial em uma empresa de elevadores em Guarulhos, na Grande São Paulo. Também foi solicitado mudança de residência para ela exercer as atividades do trabalho. Os pedidos foram negados em julho de 2022 pela Justiça paulista.
Ao UOL Notícias, a advogada afirma que "a condenação e a prisão preventiva de Zaira são completamente descabidas". "Um dos elementos principais diz respeito ao próprio cometimento do crime, dado que os supostos indícios de participação de Zaira nos crimes de tráfico de drogas, associação para tráfico e organização criminosa são absolutamente frágeis", apontou a defensora.
"Seu envolvimento foi motivado por conta da localização de drogas e anotações em um dos quartos da residência que ela morava com o seu ex-companheiro. Eles estavam separados desde 2016, mas ainda residiam juntos, em quartos separados", completou.
À reportagem, Zaira afirmou que as drogas encontradas em sua casa eram do ex-marido. Em 2012, ela abriu dois boletins de ocorrência contra ele: por ameaça, lesão corporal e violência doméstica —que nunca foram investigados pela polícia.
A defensora aponta que a condenação de Zaira se deu "por 'conivência' com a prática de crimes por seu ex-companheiro, sobre o qual ela não detinha qualquer poder de controle". "Pelo contrário, Zaira foi vítima de relacionamento abusivo e já chegou a lavrar boletins de ocorrência para noticiar delitos cometidos por ele."
Histórico de violência e ameaças. Era agosto de 2012 quando Zaira abriu o primeiro boletim de ocorrências contra o pai de suas filhas caçulas. Na ocasião, ela compareceu ao 6º Distrito Policial de Santo André, na Grande São Paulo, e narrou que foi agredida pelo ex-marido.
A agressão aconteceu depois que ela descobriu o envolvimento do então companheiro com o tráfico. Zaira o questionou sobre uma quantia de droga e dinheiro que ela encontrou no guarda-roupa quando foi procurar um inalador. O caso foi registrado como ameaça, lesão corporal e violência doméstica.
No dia seguinte, ela voltou à delegacia e informou que foi ameaçada de morte pelo ex-marido, e fez novo boletim. Mas Zaira afirma que nunca recebeu proteção do Estado e precisou continuar ao lado do pai de suas filhas. Já não era mais por amor, como antes, mas por medo. "Eu vivi um relacionamento muito abusivo", reconheceu a mulher, em entrevista ao UOL Notícias.
Procurada, a Polícia Civil de Santo André reconheceu que as ocorrências foram registradas. "A vítima foi orientada quanto ao prazo para oferecer representação criminal contra o autor, por se tratar de crimes de ação penal condicionada, o que não foi feito na época".
A vendedora afirma que, até aquele momento, o ex nunca tinha trazido "nada para casa".
Ele nunca me colocou no meio disso, mas eu sempre vivi com medo. Com medo porque ele era muito agressivo. Ele não me deixava em paz. Tentei mudar, não ter contato, mas ele sempre me achava e as ameaças voltavam. Eu não tinha escolha e, hoje, eu sofro as consequências
Zaira Freitas dos Santos
Quando a polícia invadiu sua casa para prendê-la, em fevereiro de 2018, Zaira e o pai de suas caçulas não estavam mais juntos. Na casa, foram encontradas drogas e um caderno de anotações. Com medo de perder a guarda das filhas, ela fugiu.
Em maio de 2022, ela decidiu se entregar, quando os policiais voltaram a procurá-la. "Nunca imaginei passar por uma situação assim. Eu sabia que tinha algo com a Justiça, mas eu sou mãe, entrei em pânico de ficar sem minhas filhas".
'Sempre tive meu sustento honestamente', afirma Zaira, com firmeza na voz. "Eu trabalho como vendedora, de brinquedos, roupas, pela internet. Mas nada ilegal". Hoje, com a prisão domiciliar, é o atual namorado que realiza as entregas para os clientes.
Quero sair pra trabalhar, pra trazer o sustento pra dentro da minha casa, continuar com as minhas vendas, que caíram muito
Zaira Freitas dos Santos
Atualmente, ela não tem contato com o ex-marido, que está preso pelo mesmo crime que ela foi condenada. "Eu não sei nada dele, não tenho contato nem com os familiares".
Durante os anos que se relacionaram, Zaira afirma que se afastou da família. "Como eu vivi dez anos assim? Eu não tive contato com a minha mãe, que só conheceu as meninas quando estavam grandes", contou.
"Meu medo é constante de sendo ameaçada, de sendo mulher, com medo que acontecesse alguma coisa com a minha família, até mesmo com os meus outros filhos".
Precedentes. A advogada Juliana de Almeida Valente, especialista em direitos humanos, analisou o caso a pedido do UOL Notícias. A jurista citou a Lei de Execução Penal, que, em seu 28º artigo, regulamenta o trabalho remunerado da pessoa condenada "como dever social e condição de dignidade humana".
O STF (Supremo Tribunal Federal) já teve decisão em oposição ao decidido no caso de Zaira, autorizando o trabalho de outra presa domiciliar em razão da maternidade.
Ela diz entender a contradição de "concessão da prisão domiciliar para cuidado das crianças e ser solicitado o direito ao trabalho". Mas que "não tem como falar em cuidado ao infante sem renda para tanto".
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