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Arma que matou funkeiro ficou quase dez anos sem perícia e a serviço da PM

Do UOL, em São Paulo

30/11/2022 04h00

Por volta de 18h de 19 de abril de 2012, o músico Jadielson da Silva Almeida, de 28 anos, conhecido como MC Primo, foi morto em São Vicente, no litoral paulista, ao ser atingido 11 vezes por disparos feitos por um homem que estava em um Fiat Uno branco. Depois de dez anos, uma investigação feita pela Polícia Civil identificou que a arma utilizada no homicídio era de posse da Polícia Militar. E quem a portava no momento do crime era o cabo Anderson de Oliveira Freitas, hoje com 39 anos.

O MP (Ministério Público) ofereceu, no dia 16 de novembro, denúncia contra o militar, pedindo prisão preventiva e que Freitas seja submetido ao Tribunal do Júri. A Justiça ainda não analisou o mérito e Freitas está em liberdade. Procurado pela reportagem, o PM não se manifestou.

MC Primo estava dirigindo seu carro, um VW Polo, na rua Amadeu de Queiroz, no bairro Jockei Club, quando o Fiat Uno parou ao lado. Os disparos se iniciaram. Após a execução, os assassinos saíram em disparada sem levar nada. Meses depois do crime, uma testemunha reconheceu por fotografias o policial militar Freitas como autor do homicídio. De acordo com essa testemunha, três horas antes do assassinato, o PM cumprimentou pessoalmente o músico. O policial negou a informação à Corregedoria da corporação.

Sob suspeita, no dia 3 de maio de 2012, Freitas, que estava lotado no 6º BPM/I (Batalhão da PM no Interior), em Santos, foi detido. O PM refutou as informações da testemunha, dizendo à Corregedoria que, no momento do crime, estava em casa, jogando videogame. Sem mais elementos probatórios à época, o policial foi solto em 29 de junho daquele mesmo ano. Por anos, o MP insistiu na Justiça que deveria ser feito um trabalho pericial de confronto balístico entre a pistola da PM, calibre .40, que estava com Freitas na data do homicídio, e os projéteis que foram localizados pela perícia na região onde aconteceu o homicídio.

Em um primeiro momento, Freitas apresentou para o confronto balístico sua arma pessoal, uma pistola Glock calibre 380, sendo descartada de início, já que a investigação sabia que a arma usada no crime era uma pistola Taurus calibre .40. Então, a investigação queria analisar a arma da PM que Freitas usava — a .40. No decorrer dos anos de 2014 e de 2015, o delegado Ruy de Matos Pereira Filho solicitou à 1ª Vara Criminal de São Vicente o encaminhamento ao DP (Distrito Policial) de um envelope com uma peça periciada, da Seção de Armas e Objetos da Justiça, para o desenvolvimento das investigações.

Não se sabe ao certo o que havia dentro do envelope, mas se sabe que a juíza que estava à frente era Débora Faitarone. A magistrada fez carreira, nos anos subsequentes, na capital, com fama de não condenar PMs por acusações de homicídio e por posar fazendo "arma com a mão" dentro da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). A juíza não respondeu aos ofícios do delegado, o que atrasou o andamento processual. Faitarone foi punida, em março deste ano, com aposentadoria compulsória, por ter sido acusada de ter cometido irregularidades administrativas durante seu trabalho.

Entre 2017 e 2019, todo o trabalho pericial foi feito sobre a pistola 380, de uso pessoal de Freitas. Até que, em 10 de outubro de 2019, o delegado Renato Porto Pires enviou um ofício ao comando da PM paulista questionando o paradeiro da pistola .40 que estava sob posse de Freitas na data do crime. Em 1º de novembro de 2019, a PM respondeu ao delegado que a arma permanecia no 6º BPM/I, onde Freitas era lotado à época do assassinato. Ela foi enviada à Polícia Civil apenas em 20 de fevereiro de 2020, sendo entregue para perícia em 14 de dezembro de 2021.

Arma esteve a serviço da PM durante dez anos após homicídio de MC Primo - Mortos em Abril - Reprodução/Polícia Civil - Reprodução/Polícia Civil
Arma esteve a serviço da PM durante dez anos após homicídio de MC Primo
Imagem: Reprodução/Polícia Civil

Apenas em 1º de julho de 2022, ou seja, mais de dez anos depois do assassinato, ficou pronto o laudo do confronto balístico da pistola .40. Nele, há um resultado que, oculto, mantém um suspeito de homicídio armado e representando o estado paulista, assalariado como cabo da Polícia Militar, nas ruas da Baixada Santista. O laudo pericial teve como resultado a "concordância entre o projétil incriminado com os padrões da arma de fogo do indiciado". Isto é, a perícia identificou que os projéteis encontrados no local do crime foram disparados pela arma da PM que estava com Freitas naquele dia.

"Verdadeira execução", dizem promotores

Com o laudo probatório em mãos, o delegado Armando Prado Lyra Neto, do 2º DP de São Vicente, pediu à Justiça a prisão preventiva de Freitas. Na sequência, os promotores Fabio Perez Fernandez e Manoel Torralbo Gimenez Júnior afirmaram, na acusação oferecida no início deste mês contra o PM, que "o crime é gravíssimo. Verdadeira execução realizada por grupo criminoso armado. Até o momento, apenas um dos criminosos foi identificado, tratando-se de um policial militar, o que já revela personalidade perigosa e risco à ordem pública, caso permaneça em liberdade".

MC Primo foi atingido por 11 disparos - Mortos em Abril - Reprodução/Polícia Civil - Reprodução/Polícia Civil
MC Primo foi atingido por 11 disparos
Imagem: Reprodução/Polícia Civil

Ainda de acordo com os promotores, "Anderson praticou o crime com arma da própria corporação. Justamente por ser policial e por já ter demonstrado ser pessoa perigosa e violenta, sua permanência em liberdade levará temor às principais testemunhas que, desde o início, já demonstraram justificado receio de terem suas identidades reveladas". O MP defendeu que Freitas seja julgado pelo Tribunal do Júri.

O caso, agora, está nas mãos do juiz Alexandre Torres de Aguiar, da 1ª Vara Criminal de São Vicente. A reportagem procurou o magistrado por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça, que respondeu que o TJ não adianta nenhuma questão processual e que os juízes são vedados por lei de se manifestar fora dos autos.

Por meio de nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que "a Polícia Militar reforça que não compactua com desvios de conduta de seus agentes e apura com rigor todas as denúncias desta natureza. Demais questionamentos devem ser encaminhados à Justiça". Já a PM, também em nota, disse que "não se manifesta sobre ações do Ministério Público. Tampouco, sobre decisões judiciais".

A reportagem não localizou os advogados de Anderson de Oliveira Freitas. No entanto, o procurou diretamente, por aplicativo de mensagens. Apesar do contato feito em 16 de novembro, logo após a acusação do MP, o policial não se manifestou.

Quatro funkeiros mortos na Baixada

MC Primo foi o terceiro de quatro funkeiros assassinados entre 2010 e 2012 na Baixada Santista. Além dele, foram mortos a tiros Felipe Wellington da Silva Cruz (Felipe Boladão), Eduardo Antônio Lara (Duda do Marapé) e Cristiano Carlos Martins (Careca) — as famílias dos três não têm respostas sobre motivação, autoria e dinâmica dos crimes até hoje. As histórias dos quatro músicos estão no documentário "Mortos em Abril: Quatro Assassinatos que Abalaram o Funk em SP", disponível no YouTube de MOV.doc. Os dois episódios foram produzidos por MOV, a produtora de vídeos do UOL.

Depois do assassinato de MC Primo, o coronel aposentado Levi Anastacio Felix, à época major e integrante da Corregedoria da PM, aventou uma possível participação de policiais nos crimes durante uma entrevista cedida a jornalistas: "Eles fazem muito protesto, falam de grupos de poderes constituídos, falam da polícia também. Então, vamos dizer que alguns policiais podem não ter muita simpatia pelo MC Primo".

Em 2012, ano do assassinato de MC Primo, houve no estado de São Paulo o ápice no número de chacinas registradas: foram 38 casos, com 132 mortos, de acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz. Bairros periféricos da capital, região metropolitana e litoral de São Paulo ficaram marcados por uma época violenta, chamada de "Era das chacinas". Naquele período, grupos de extermínio, que incluíam policiais da ativa ou da reserva, agiam em bairros periféricos matando inocentes e suspeitos de ligação com o crime. Não há investigações que apontam ligação dos quatro funkeiros assassinados com o crime organizado.