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Áudios revelam contradições de PMs no massacre de Paraisópolis

Do UOL, em São Paulo

01/12/2022 10h57

Há diferenças importantes entre o que os policiais conversaram pelo rádio, antes e depois da ação que deixou nove mortos em Paraisópolis, e o que disseram em depoimentos em inquéritos abertos pela Polícia Militar e pela Polícia Civil para apurar o caso. Os depoimentos judiciais dos 12 réus só devem ocorrer a partir de junho do próximo ano. As mortes ocorreram em 1º de dezembro de 2019. Ninguém foi preso até agora.

O UOL teve acesso ao processo e a laudos, que, juntos, têm cerca de 6.000 páginas. Ao longo de três meses, a reportagem ouviu testemunhas do processo, familiares de vítimas, especialistas, além de responsáveis pela acusação e pela defesa. A reportagem teve acesso aos áudios da polícia naquela noite, que integram os autos, não apenas às transcrições que constam no processo, e comparou com os depoimentos dos policiais.

Fato 1: Por que os policiais foram parar no meio do baile

O que foi dito no rádio: Com base na transcrição da comunicação de áudio no Copom (Centro de Operações Policiais Militares), às 3h41, um pelotão da Rocam (Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicleta) fazia patrulhamento na comunidade quando teria sido surpreendido por dois suspeitos em uma moto XT-660.

Um dos PMs pediu apoio na rede do Copom, dizendo que o garupa da moto atirou várias vezes contra as equipes na rua Herbert Spencer. Segundo a informação passada pelo policial, sempre de acordo com os autos do processo, a fuga da dupla foi em sentido oposto ao baile.

mapa - Arte/UOL - Arte/UOL
Pelo rádio, policial diz que houve disparos vindos de uma moto na rua Herbert Spencer; ele pede reforço, mas fala que perdeu os criminosos de vista quando foram para a rua Melchior Giola
Imagem: Arte/UOL

Às 3h43, a tenente Aline Ferreira Inácio perguntou, pelo rádio, se os PMs estavam "sem novidade" [não estavam feridos]. Outro PM da Rocam respondeu que sim. Às 3h44, os primeiros carros que cercaram o baile começaram a chegar pela rua Herbert Spencer. Um policial informou que a multidão estava correndo da viatura. No minuto seguinte, um policial da Rocam informou que perdeu de vista a XT-660 e que a perseguição havia acabado.

Às 3h48, aconteceu a última comunicação entre os policiais e a central, com o Copom perguntando sobre os suspeitos. Depois disso, silêncio nos rádios enquanto acontecia o cerco ao baile funk.

A contradição: Na delegacia, contudo, os policiais apresentaram uma localização diferente para o local onde os supostos tiros teriam acontecido: no cruzamento da avenida Hebe Camargo com a rua Rudolf Lotze. A rota de fuga dos supostos suspeitos também foi oposta ao registrado na conversa pelo rádio: teriam entrado de moto no meio do baile e com o garupa tendo continuado os disparos de pistola.

Nesse local apontado nos depoimentos, foram apreendidas cápsulas de pistola calibre 380. A perícia comprovou, mais tarde, que essas cápsulas não foram disparadas naquela noite.

Por que isso é importante: O local do início da ocorrência é importante porque pode ajudar a montar um quadro para explicar se os policiais agiram ou não deliberadamente para se vingar da comunidade pela morte de um colega, um mês antes. Esta versão é sustentada por moradores de Paraisópolis, que são testemunhas no processo.

Massacre em Paraisópolis - PMs -  -

O que diz a acusação: A pesquisadora Desirée Azevedo, do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que atua como assistente técnica da acusação, afirma que há indícios de os policiais terem mudado o local do início da ocorrência depois que perícia apontou a existência dessas cápsulas de pistola no cruzamento da avenida Hebe Camargo com a rua Rudolf Lotze.

Segundo ela, a ocorrência deveria ter terminado quando a tenente Aline foi informada que não havia feridos e logo depois quando um dos policiais disse, pelo rádio, ter perdido a moto de vista.

O que diz a defesa: Para o advogado Fernando Capano (que atua na defesa de oito PMs, incluindo a tenente Aline), não há divergência e a versão que prevalece é a que consta nos depoimentos. Ele diz que tudo será esclarecido nos interrogatórios judiciais, marcados para o próximo ano.

A defesa dos policiais alega que a interrupção da comunicação via rádio se deveu a áreas de "sombra" na comunidade que prejudicam os sinais.

Massacre em Paraisópolis - Linha do tempo -  -

Fato 2: Por que o socorro às vítimas demorou uma hora

O que foi dito no rádio: Às 4h37, 28 minutos depois dos primeiros pedidos de socorro, ainda não havia qualquer assistência às vítimas. Neste momento, o Copom perguntou se o resgate havia chegado. O tenente Diego Felício Novaes respondeu que não. E informou que iriam socorrer as vítimas porque as equipes estavam "encurraladas" por "cerca de mil indivíduos".

O tenente Novaes não é réu no processo.

Somente às 4h43, o Copom informou que havia sido autorizado o resgate das vítimas nas viaturas dos PMs. Dois minutos depois, o tenente Novaes voltou a dizer que as equipes estavam "encurraladas" e teriam que deixar o local.

A contradição: Imagens feitas por moradores da comunidade e por uma câmera de segurança entre o final da operação e o socorro mostram as viaturas e policiais circulando calmamente pela comunidade, ou seja, sem o tal cerco que o tenente Novaes descreveu pelo rádio. Em depoimento, os PMs contaram que tiveram de jogar bombas para dispersar essas pessoas.

Por que isso é importante: Os feridos só chegaram a dois hospitais da região às 5h02, quase uma hora depois dos primeiros pedidos de socorro. Médicas da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e do Pronto-Socorro do Campo Limpo, os dois locais para onde as vítimas foram levadas, também prestaram depoimento. Segundo as médicas, todas as nove pessoas chegaram com parada cardiorrespiratória e sem sinais vitais, tendo sido submetidas a tentativas de reanimação.

O que diz a acusação: "Nenhum dos PMs disse que eram vítimas em parada cardiorrespiratória", disse Desirée Azevedo, do Caaf, que atua como assistente de acusação.

A pesquisadora enfatizou que os policiais têm treinamento de primeiros socorros durante toda a carreira na PM. "E por que só tinha uma ambulância? Porque não foi estabelecido o grau máximo de prioridade. A informação dada pelos PMs induziu o Copom ao erro."

O que diz a defesa: O advogado Fernando Capano, que defende a maior parte dos policiais, contesta a interpretação da acusação. Segundo ele, a situação ainda não estava controlada no momento do socorro e havia hostilidade dos frequentadores com os PMs.

Massacre em Paraisópolis - Vitimas -  -