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Juízes de SP negam aborto legal a três mulheres mesmo com respaldo técnico

Foto meramente ilustrativa - Andrey Zhuravlev/IStock
Foto meramente ilustrativa Imagem: Andrey Zhuravlev/IStock

Do UOL, em São Paulo

28/04/2023 04h00

Ao menos três mulheres tiveram pedidos de aborto legal negados por juízes do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Os casos foram revertidos por desembargadores, que permitiram a interrupção da gravidez.

O que aconteceu

Joana, 26, Beth, 40, e Maria, 26, procuraram a Defensoria Pública para interromper suas gestações. Os nomes são fictícios para preservar as três mulheres.

Elas tinham autorização médica para a realização do procedimento, pois os fetos apresentavam problemas de formação que impediriam a continuidade da gestação e causariam riscos às vidas das mães.

Os três pedidos foram negados pelos juízes da primeira instância do TJ-SP.

Os abortos acabaram permitidos na segunda instância. As mulheres conseguiram a autorização para o procedimento quando desembargadores analisaram os casos.

A primeira negativa

Joana, grávida de 26 semanas, procurou a Justiça em março de 2022. Ela teve o auxílio da defensora pública Amanda Pilon Barsoumian. O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) concordou com a Defensoria Pública.

Para os médicos de Joana, a única solução era a interrupção da gravidez. Segundo o laudo, o feto apresentava graves más-formações nos dois rins e não sobreviveria.

Contudo, a juíza Paula Marie Konno, da 2ª Vara do TJ, negou o pedido.

A magistrada reconheceu que o abalo psicológico em Joana e em seu marido eram "inegáveis". Porém, alegou que as justificativas da Defensoria e do parecer técnico não faziam parte do que se entende no Brasil por aborto legal: casos de estupros e de fetos anencéfalos (sem cérebro).

Os documentos médicos juntados não permitem a conclusão de que não se trata de vida [do feto]."
Paula Marie Konno, juíza do TJ-SP

Os desembargadores do TJ-SP decidiram a favor de Joana em 20 abril de 2022. Relatora do caso, a desembargadora Fátima Gomes foi acompanhada por dois colegas.

Embora não se trate de feto anencéfalo, as consequências são as mesmas (...). Resta evidente, portanto, que o único direito fundamental em jogo é a saúde e a dignidade da gestante, o qual, sob nenhuma hipótese, pode ser negligenciado pelo Estado."
Fátima Gomes, desembargadora relatora do caso

Joana esperou um mês para ter direito ao aborto legal, entre a negativa da juíza Konno e a aprovação do pedido pelos desembargadores.

O segundo caso, com outro juiz

Beth entrou com processo judicial para autorização da interrupção terapêutica da gravidez. Trata-se de um procedimento para salvar a vida da gestante ou impedir riscos iminentes à sua saúde. Isso ocorreu na 17ª semana de gestação, em janeiro de 2023.

Para aprovação do aborto terapêutico, segundo a lei, é necessário um laudo com a opinião de dois médicos ou médicas, incluindo profissionais especialistas na doença que coloca em risco a vida da pessoa gestante. Esse laudo deve conter uma descrição detalhada do quadro clínico.

Laudos médicos afirmaram que o feto recebeu o diagnóstico de Síndrome de Edwards. A doença genética causa más-formações múltiplas, deficiência mental grave e redução acentuada da expectativa de vida.

Eles foram anexados no processo pelo defensor público Lucio Mota do Nascimento. O MP-SP também foi favorável à interrupção.

O juiz Jair Antonio Pena Junior, da 1ª Vara do TJ-SP, negou o pedido. Afirmou que o caso não estava em "nenhuma das hipóteses legais".

Quatro dias depois, o desembargador André Carvalho e Silva de Almeida, relator do caso, autorizou o aborto. Ele também foi acompanhado por mais dois votos.

Evidencia hipótese de aborto terapêutico, (...) dado o grave e concreto risco à vida da paciente, além do terrível dano psicológico existente em se obrigar a gestante a levar a termo a gravidez de um feto inviável, situação, por certo, análoga a uma tortura física, emocional e psicológica."
André Carvalho e Silva de Almeida, relator do caso

Negativa ao aborto legal no Dia da Mulher

O feto de Maria apresentava "displasia esquelética do tipo letal". É uma alteração no tamanho dos ossos que pode causar grave encurtamento dos membros, levando o feto ao óbito por insuficiência respiratória.

Os médicos alegaram no laudo que a doença rara tem elevada mortalidade. O defensor público Rafael Gomes Bedin fez o pedido de interrupção terapêutica de gravidez na 28ª semana de gestação. O MP-SP mais uma vez concordou com a solicitação.

Não faz sentido algum, sob a ótica jurídica ou mesmo médica, prolongar uma gestação onde inexistirá possibilidade de sobrevida do feto. O prolongamento da situação claramente gera danos severos à saúde psíquica da mulher gestante."
Rafael Gomes Bedin, defensor público

O caso também foi negado pelo juiz Jair Antonio Pena Junior. A decisão do magistrado ocorreu no último 8 de março, Dia Internacional da Mulher.

Evidentemente, sofrimentos psíquicos, embora devam ter devotados o mais profundo respeito e consideração, jamais poderiam justificar o abortamento fora das hipóteses legais."
Jair Antonio Pena Junior, juiz do TJ-SP

Dois dias depois, o desembargador Freire Teotônio, relator do caso, aprovou a interrupção. Ele também foi acompanhado por dois colegas.

Restou suficientemente demonstrada a completa inviabilidade de continuação de vida do feto fora do útero materno, bem como o risco à saúde da gestante, especialmente no que diz respeito ao aspecto psicológico."
Freire Teotônio, relator do caso

O que diz a defensora pública

Para a defensora pública Nálida Coelho, que atua no Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres), juridicamente não há justificativas para que esses pedidos sejam negados.

A hipótese da incompatibilidade com a vida fora do útero não está prevista de forma expressa no Código Penal, assim como a anencefalia também não está. Mas a Justiça vem reconhecendo essas possibilidades, justamente em razão dos fundamentos da interrupção serem semelhantes ao da anencefalia."
Nálida Coelho, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres

A defensora explica que levar uma gestação adiante, sem que ela tenha a possibilidade de futuro, é algo que atenta à dignidade da vida das mulheres.

É impor um sofrimento físico e psicológico. Podemos assemelhar isso a uma forma de tortura, já que as mulheres são obrigadas a levar uma gestação adiante de forma compulsória sem que haja a viabilidade da vida do feto."
Nálida Coelho

O que diz a lei

O aborto é permitido por lei no Brasil, sem a necessidade de ação judicial, em três situações:

  • se não há outro meio de salvar a vida da gestante -- artigo 128 da Legislação;
  • se a gravidez resulta de estupro -- artigo 128 da Legislação;
  • interrupção de gestação de fetos anencéfalos (sem cérebro) -- após decisão do STF em 2012.

No caso de outras más formações do feto, embora a justificativa jurídica seja semelhante, tem sido comum a realização de pedidos de autorização para a interrupção. Não precisaria, o hospital poderia fazer."
Nálida Coelho

O que diz a Justiça

Procurado, o Tribunal de Justiça disse que "não emite nota sobre questões jurisdicionais" e que os magistrados têm "independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento."