Viúva aos 16, ela se tornou 'patroa do tráfico' em SP: 'Herança maldita'
Ela conheceu o marido aos 15, "uma paixão avassaladora". Aos 16, deu à luz um menino. Descobriu que o amor de sua vida comandava uma quadrilha especializada em tráfico de drogas e, um ano depois, viu ele ser assassinado na porta de casa. Foi assim que ela então assumiu os negócios do companheiro e se tornou patroa do tráfico, expandindo sua área de atuação e se tornando conhecida e também respeitada pelos rivais.
Essa é a história de Flávia Maria da Silva, 44, que, no depoimento abaixo, conta como herdou, ainda adolescente, o comando da quadrilha antes chefiada pelo marido as consequências que essa escolha tomada tão cedo trouxe para sua vida:
Eu nasci e fui criada numa pequena comunidade de Guarulhos [SP], chamada Jardim das Oliveiras. Minha família era muito humilde: meu pai trabalhava como servente e minha mãe era dona de casa. Apesar do esforço do meu pai em manter os cinco filhos, as dificuldades eram inevitáveis. Mas, mesmo assim, minha infância foi feliz.
Quando fiz 15 anos, conheci um rapaz que morava perto de casa. Eu passava por ele no caminho da escola, quase todo dia, e a paquera começou. Um dia, ele me parou para conversarmos. Era lindo, gentil, amável. Mas era dez anos mais velho que eu, então eu tinha medo da reação dos meus pais e começamos a namorar escondido.
Eu me apaixonei perdidamente. Ele me proporcionava coisas que minha família seria incapaz de oferecer. Coisas simples, como jantar num restaurante, pegar um cinema, uma caixa de bombons. Eu sempre fui uma menina romântica, ingênua mesmo. Ele tinha vindo do Ceará para São Paulo tentar a vida, também muito jovem, e dizia trabalhar muito para conseguir uma vida melhor, sempre de forma honesta — e eu acreditei.
Dois meses depois, acabei engravidando e ele me convidou para ser sua esposa e morar com ele, pois queria assumir a paternidade. Eu fui, mas mantive uma relação próxima com a minha família, que depois de um tempo também começou a enxergar nele muitas qualidades. Ele era o meu príncipe encantado e me tratava como uma princesa.
O parto foi aos 16 anos. Aprendi o que era ser mãe na prática, sem ter aprendido nada na escola ou em casa, porque, naquela época, não se discutiam esses assuntos. Nossa vida era boa, a gente não passava aperto. E logo depois que dei à luz, ele disse que queria me contar umas coisas.
Foi quando eu soube pela primeira vez que ele vendia drogas ilícitas. Eu nem entendia bem o que era isso, a diferença entre uma droga e outra. Também nunca vi ele levar nada para casa, então acabei aceitando. Ele me contou que as únicas pessoas que o ajudaram quando chegou a São Paulo eram de uma família ligada ao tráfico. Quando não conseguiu mais trabalho, se envolveu para sobreviver. Ele era analfabeto, e as oportunidades eram raras.
Tragédia no aniversário
Quando meu filho fez um ano, começamos a preparar uma festa. Minha mãe e minha irmã me ajudavam em casa a fazer os doces e eu saí para buscar os salgados. Quando voltei, tinham vários carros de polícia parados na porta. E meu marido estava caído no chão, assassinado.
Eu entrei em desespero, não sabia o que fazer. Com um dinheiro que ele tinha guardado, consegui pagar o funeral e me mudei com meu filho para outra casa. Tinha medo de acontecer alguma coisa com a gente, porque eu soube que ele tinha sido morto por um rival, um desconhecido que queria assumir o tráfico na região do meu marido.
Passei meses digerindo o que tinha acontecido, entrei em depressão. Eu tinha recebido uma herança maldita. Os amigos e parceiros do meu marido começaram a me disputar. Queriam ficar comigo para assumir os negócios dele. Foi difícil para mim, tive que me impor. Quando percebi que a situação estava arriscada demais, decidi assumir os negócios. Me tornei patroa do tráfico aos 17 anos.
Naquela época, era difícil encontrar uma mulher comandando o tráfico. Mas eu, nem sei como, passei a organizar os negócios de uma forma tão eficiente que os nossos parceiros passaram a me respeitar.
Eu nunca peguei numa droga, eu só cuidava da logística, pelo celular. Com o tempo, fui expandindo os negócios para outras regiões do país e comecei a fazer transações internacionais.
Com o dinheiro, eu ajudava minha família e proporcionava uma vida boa para o meu filho. Morávamos num bairro bom, ele estudava em escola particular.
Aos 33 anos, eu já estava estabelecida. As negociações envolviam toneladas de drogas, e a minha rede de parceiros tinha crescido muito. Eu só não sabia que estava sendo monitorada pela polícia, que havia colocado um grampo no meu celular.
Como usávamos códigos para fazer as transações, não era possível me incriminar. Ninguém além da minha família sabia meu endereço e eu sempre trocava de celular, mas dessa vez estava usando um número por mais de seis meses.
A polícia interceptou uma carga que eu estava negociando e capturou um dos meus parceiros. Ele não aguentou a pressão e me entregou. Eu fui traída.
Fui condenada a 20 anos por tráfico e associação ao tráfico. Cumpri os primeiros cinco anos na penitenciária feminina de Santana, em São Paulo. De lá, ainda consegui manter por um tempo os negócios à distância. Mas acabaram descobrindo e me mandaram para a Penitenciária Feminina Tremembé 2. Ali começou o meu inferno.
Chance de recomeço
Nós, internas, ficávamos isoladas e o tratamento com as detentas era desumano. Esse é o presídio onde ficam as lideranças do crime, que eles chamam de "liderança negativa".
Para suportar a forma com que nos tratavam, passei a mergulhar nos livros. Li muita literatura espírita, mas acabei me encontrando nas obras de autoajuda. Era o que precisava naquele momento, porque eu queria mudar minha vida, mas não sabia como.
Ironicamente, foi nesse presídio que tive a oportunidade de me engajar em uma cooperativa. Com os voluntários, aprendi diversos trabalhos manuais, como corte e costura, tricô e crochê. Eu estava cética no começo, mas, com ajuda do Instituto Humanitas360, um projeto-piloto que capacita e gera renda dentro e fora de penitenciárias, criamos uma marca, a Tereza, uma referência à corda de panos amarrados que detentos criam para fugir da cadeia.
O projeto foi um sucesso e, logo nas primeiras vendas, conseguimos arrecadar mais de R$ 100 mil para as 26 detentas que participavam, as mais humildes e carentes da cadeia, que toparam a empreitada. Consegui terminar o ensino médio.
Graças à experiência, decidi que iria abandonar o crime para sempre. Me reuni com lideranças e expliquei que estava saindo de vez, que deixaria o caminho livre e também queria ter o meu caminho livre. Em 2020, recebi o regime semiaberto e comecei a cursar a faculdade de direito na Universidade Zumbi dos Palmares.
No começo foi difícil, porque eu tinha que frequentar as aulas com tornozeleira eletrônica. Mas, à medida que as pessoas conheciam minha história, fui sendo aceita com mais naturalidade.
Lá conheci juízes, carcereiros, policiais, advogados, pessoas muito especiais que estão me ajudando nesse processo de reintegração à sociedade. Passei a contar minha história em palestras e estou pensando em reunir tudo em um livro. Sei que o que aconteceu comigo pode ajudar outras mulheres que enfrentaram ou enfrentam situações parecidas.
Em fevereiro, passei para o regime aberto e estou morando com minha família e meu filho, que nunca deixou de me visitar nesses 11 anos em que estive presa.
Eu trabalho como auxiliar para o instituto, porque quero deixar um legado, mostrar que é possível, sim, para um ex-detento se reintegrar à sociedade.
Quero ser aquela que mostra que é possível se transformar em algo melhor. Estou cursando direito para isso: para fazer o bem e ser o apoio na transformação de mulheres dispostas a receber uma nova vida ao saírem do sistema prisional.
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