Abandonado nas ruas de SP aos 3 anos, ele adotou sozinho seis meninos
O jornalista Francisco Borges foi abandonado aos 3 anos no bairro do Pacaembu, zona oeste de São Paulo. Sozinho, aguardou três anos na Febem (atual Fundação Casa) para encontrar uma família.
Nessa nova composição, Francisco experimentou o acolhimento e o amor de uma família grande. Anos mais tarde, decidiu que era a vez de ele acolher crianças que também estavam à espera de uma nova história.
Hoje, Francisco é pai de seis meninos. A família vive em São Francisco Xavier, no interior de São Paulo. Juntos, eles se reconstroem diariamente. Ao UOL, o jornalista relembrou o processo de adoção das crianças e refletiu sobre a paternidade solo.
'Disse que ia comprar balas e não voltou'
"Minha história com a adoção começou ainda na infância. Minha mãe me deixou no bairro do Pacaembu falando que ia comprar balas e já retornaria, mas não voltou. Fui levado para a antiga Febem (atual Fundação Casa), onde fiquei três anos aguardando a adoção acontecer.
Naquele momento, ainda não tinha ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Pouco se sabia das necessidades da adoção. A Febem reunia todas as crianças e adolescentes do Estado de São Paulo que estavam para adoção ou porque as famílias naquele instante não podiam ficar com eles. Então, era um grande repositório de crianças.
Na época, eram permitidas visitas, mas eu não recebia nenhuma. E eu ficava triste quando isso acontecia. Mas, com a chegada dos meus pais adotivos, tive a oportunidade de chamar alguém de mãe ou de pai, de forma consciente. E de amá-los.
Aprendi o que era um pai, o que era uma mãe, e aprendi a receber carinho e afeto. Fui muito acolhido. Éramos uma família grande, que tinha bastante festa, encontros, muita alegria. E, por ser filho único, sempre tive vontade de continuar com uma família grande. Quando completei 12 anos, minha mãe faleceu. Depois, aos 15, foi meu pai. Foi uma dor muito grande.
A primeira adoção
Sempre soube que queria ser pai. Quando eu fosse construir a minha família, queria que fosse grande, repleta de pessoas, de subjetividade, de experiências pessoais. Fui construindo uma consciência do que era adoção e do que isso proporcionava a quem era adotado — porque tinha mudado a minha vida.
Meu primeiro filho veio aos 30 anos, o meu primeiro processo de adoção. Ele era um recém-nascido, o Victor, que hoje tem 15 anos. Com ele aprendi a ser pai, e vi todos os medos que os pais e as mães têm, e todas as experiências de paternidade, de trocar fralda, de alimentar. Escutei ele falar 'pai' pela primeira vez, vi seus primeiros passos, mas meu sonho de continuar a minha 'paternagem' era grande.
Quando ele completou 10 anos, conversamos sobre a possibilidade de aumentar nossa família — e deixei para que ele pensasse sobre isso, porque eu não queria que fosse uma coisa imposta, queria que ele estivesse contente sobre isso também.
Um tempo mais tarde, dei uma entrada no meu processo para adotar crianças maiores. Já estava consciente de quem eram essas pessoas que estão na fila de adoção, da quantidade de crianças negras, de meninos e meninas que precisam ser retirados desse lugar e ter possibilidade de ter uma família.
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Então, chegou o Gabriel, que na época tinha 12 anos, e o Maycon, que tinha 9. Ambos são irmãos biológicos. Logo depois que passamos pelo processo, foi decretado o isolamento social da pandemia da covid-19. Então, vivemos tudo de uma forma muito intensa.
A chegada deles, a pandemia, os medos, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. Mas foi uma experiência de entrega de ambas as partes, e de parceria. Eles viram que estavam num ambiente seguro, num ambiente acolhedor, e começamos a construir os nossos laços.
Não foi fácil no começo, porque eram duas outras vidas, que tinham outras rotinas, que já tinham sido precarizadas, seja pelo Estado, que foi negligente com a vida deles, seja pela família biológica. Eles chegaram cheio de marcas, dores, "calos".
A gente não sente muito quando tem um filho biológico, porque tem ele paulatinamente em todas as fases, mas quando você adota, aí vem tudo de uma vez.
De certa forma, foi um momento especial para mim. Foi como revisitar minha própria história por meio da deles. Não fomos unidos pela dor, somos unidos pela construção de fazer diferente, redescobrir as coisas, olhar para uma situação e perceber se dá para mudar, ressignificar e ampliar os horizontes.
Depois de um tempo, a escola voltou ao presencial — e abraçou nossa causa também. Redefinimos muita coisa. Na época, nos mudamos para São Francisco Xavier, onde passávamos as férias. Saímos de São Paulo para um povoado. E ter feito essa mudança foi muito importante para essa reorganização da família.
Eles também já tinham vivido exposições na cidade e sair desse lugar, de onde as dores aconteceram, e ir para um lugar mais calmo, com escola integral, onde as pessoas são mais calmas, foi uma boa mudança.
Acho que adoção é isso. É importante ter consciência que realmente deseja isso, saber que as crianças não são mercadorias que vão ser entregues, ou que a cor não ficou bem com você, ou que você se cansou.
É uma vida ali e é muito bom questionar se isso cabe na sua vida. Nesse processo, algumas mudanças vão ter de ocorrer em detrimento disso e você tem de estar aberto. Tive de mudar a minha vida depois de virar pai.
A terceira adoção
Em agosto de 2021 tive contato com um vídeo, que contava a história de três meninos. Eles moravam em uma pequena cidade do Espírito Santo e achei que poderia me tornar pai deles. Eram três irmãos biológicos, que estavam em um processo de aproximação com uma família. Uns dois meses depois, me falaram que aquela aproximação não tinha dado certo, que o casal tinha desistido e que eu poderia conhecê-los.
Comecei com esse processo de aproximação, falava com eles diariamente. E, depois de 40 dias, fui para o Espírito Santo com os meus outros três filhos e uma funcionária que me ajudava com as tarefas de casa. Passamos o mês de julho, das férias, lá. E então o juiz autorizou e me entregou a guarda provisória com finalidade de adoção. Aí pude levar o João, 5, Davi, 7, e Miguel, 12, lá para São Francisco de Xavier.
Agora éramos uma nova composição, não mais três, mas seis filhos. Eles começaram a estudar, criar laços e estamos juntos ali até hoje. Foi um processo também difícil porque eles ficaram muitos anos da vida abrigados, não tiveram uma estrutura familiar. Ainda é um processo até hoje.
Dois anos parece muito tempo, mas é pouco na história de vida deles. Houve uma mudança de cidade, estado, escola, rotina. Foram várias coisas. Então ainda estamos nos adaptando. Mas eles já me reconhecem como pai e se adaptaram às rotinas da casa. Aos poucos, esses laços são construídos. Cada processo é um único.
Eu já tinha vivido outros dois processos e achei que daria conta de tudo, que seria muito simples e fácil. Mas pelo fato de ser de idades menores e distintas, há necessidades diferentes.
Hoje tenho dois filhos com 15 anos, dois com 12, um com 7 e outro com 5. Eu, como pai, tenho de olhar para essas necessidades, saber o que posso fazer para cooperar, para que o desenvolvimento aconteça.
Não quer dizer que darei conta de tudo, ou que saberei resolver tudo. Mas é importante que eu olhe isso, como pai, e entenda o que preciso fazer. Poderia romantizar e dizer o quanto sou feliz e satisfeito, mas me sinto responsável por fazer dessas vidas, vidas conscientes.
É apoiar na formação de valores morais, éticos e sociais, dando a eles condições de refletirem sobre questões que, para a nossa família, é muito importante, como raça, classe e gênero. Me sinto responsável e desafiado a poder gerir, apoiar e somar como pai.
Não quero dizer que acerto sempre, mas me permito recomeçar e sempre olhar com aquele olhar de acesso e de atenção, para ver como a gente pode organizar tudo isso.
Olho para minha família, vejo a construção acontecendo, e me sinto desafiado. Hoje, com a diminuição da pandemia, consigo ter uma rede de apoio maior do que no início. Além de ter a escola, tenho psicólogos, amigos, alguns parentes que me acompanham nessa jornada.
Quando preciso desabafar, tenho aonde ir. Eles também têm contato com os padrinhos, as madrinhas que se apoiam, orientam, ajudam com diálogos, conversas. E tudo isso vai somando de uma forma positiva. Eu me sinto feliz."
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