Após estimular carnaval de rua, SP cria regras que freiam a festa

O carnaval de rua de São Paulo viveu um boom nos últimos dez anos, desde a gestão Fernando Haddad (PT), graças à ação da Prefeitura, que flexibilizou normas e estimulou a festa. Hoje, porém, organizadores de blocos e especialistas acreditam que regras criadas por gestões mais recentes podem atrapalhar a folia na cidade.

O que aconteceu

Pesquisador relaciona crescimento a mudança a um decreto de 2014. O decreto 54.815 disparou transformações no carnaval da cidade, segundo Guilherme Varella, assessor (entre 2013 e 2014) e chefe de gabinete (entre 2014 e 2015) da Secretaria Municipal de Cultura (gestão Haddad) e autor do livro "Direito à Folia".

A regra proibiu cordas, grades e abadás nos blocos. Mas não estabeleceu sanções a quem desrespeitá-lo. Além disso, a prefeitura criou um cadastro para listar os grupos e oferecer banheiros químicos, organizar o trânsito e fornecer outros recursos para realização dos cortejos. Antes, a cidade não ofertava estrutura, só exigia documentação.

Número de blocos cresceu 15 vezes na última década. Os cortejos saltaram de 40, em 2013, para mais de 600, em 2024.

Novas regras nos últimos anos

Em 2018, o cadastro dos blocos, que era voluntário, passou a ser obrigatório. O decreto 57.916, da administração João Doria (então do PSDB), também estabeleceu sanções para os grupos que descumprissem as regras, como a sua exclusão da festa.

Doria também levou blocos para a avenida 23 de maio em 2018. À época, ele disse que o carnaval de rua na Vila Madalena "já deu o que tinha que dar". Houve críticas, como ao impacto em hospitais na região da avenida, e a mudança não foi mantida.

Procurado, o ex-prefeito João Doria não se manifestou.

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Em 2024, a Prefeitura de São Paulo estabeleceu horário-limite para cortejos. Os blocos devem ter duração de, no máximo, cinco horas, sendo uma hora de concentração, três de cortejo e uma de dispersão. Os grupos não poderão ir à rua antes das 9h e devem encerrar até as 19h.

Também neste ano, megablocos terão de submeter trios elétricos a vistoria obrigatória. Inédita na cidade, a avaliação dos veículos determinada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) será feita pela Polícia Militar na madrugada anterior aos cortejos. A regra vale para grupos que reúnem mais de 100 mil pessoas e é atribuída a motivos de segurança.

Mudanças, restrições e demora preocupam organizadores

"A cada ano, o cadastro fica mais restritivo", afirma fundadora de bloco. Criadora do Ritaleena, Alessa Camarinha diz que há pouco diálogo com a prefeitura e que limitações de horário e local dificultam a realização dos cortejos.

Demora na organização incomoda realizadores. De acordo com fundadores de blocos, a prefeitura fez uma primeira reunião sobre a festa em outubro, e a segunda, só em meados de janeiro. Informações sobre localização de banheiros químicos, esquema de trânsito e outros detalhes sobre os desfiles também têm demorado a chegar.

Pressão é maior sobre blocos menores, diz criador da Charanga do França. Thiago França afirma que a oferta limitada de recursos combinada à ação de atores como associações de moradores, que reclamam do barulho e da sujeira, dificultam cada vez mais a vida dos grupos menores.

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Manifesto pede regras mais flexíveis em caso de onda de calor ou chuva intensa. Em carta à prefeitura, um conjunto de agremiações solicita que os cortejos possam mudar de dia ou horário em função das condições climáticas. Também pede a distribuição gratuita de água, entre outras medidas.

Prefeitura afirma que mobilizará mais de 30 mil agentes para apoio a blocos. Em nota, o órgão informou que trabalha na organização do carnaval de rua desde 24 de outubro e que "duplas de bombeiros civis acompanharão o trajeto dos blocos a cada 100 ou 200 metros para prestarem o atendimento necessário aos foliões" — entre outras medidas de suporte previstas.

Direito à folia

Cortejo do bloco Ritaleena, em 2023
Cortejo do bloco Ritaleena, em 2023 Imagem: Reprodução/Instagram

Brincar carnaval envolve exercício de diferentes direitos. Para Varella, garantir a expressão de música, dança e artes plásticas e a reunião de pessoas para se divertir e fazer crítica política é garantir o direito à cultura, à livre associação e à manifestação, previstos por lei.

Festa tem histórico de tensão com o Poder Público em São Paulo. Segundo Varella, o carnaval de rua alternou momentos de festa marginal — como na década de 1910, quando surgem os primeiros blocos — com períodos em que foi sufocado por regras — como os anos 1950, com a criação das escolas de samba.

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Especialista critica 'agressividade' das propagandas

Apesar dos avanços recentes, que ampliaram o número de blocos, especialista ainda vê falhas a serem resolvidas. Uma delas é a concentração de cortejos em áreas como a Vila Madalena e outras regiões do Centro Expandido. Outra é a "agressividade dos anúncios publicitários", que hoje financiam a festa, e terminam por descaracterizá-la, de acordo com ele.

Desde 2017, o carnaval de rua na cidade é bancado pela iniciativa privada. No formato criado pela gestão Doria, empresas pagam para ter direito de exclusividade na venda de seus produtos durante a festa. Em 2024, a Ambev pagou R$ 26,6 milhões pelo patrocínio. A empresa também ganhou em 2020 e 2019. A empresa de eventos Dream Factory também já apoiou a festa (2017 e 2018).

O que dizem os envolvidos

Houve uma burocratização excessiva. Dez anos atrás, a política pública promovia um diálogo com os blocos. Hoje, isso não existe mais. A prefeitura organiza o carnaval de rua como uma Virada Cultural, mas são coisas diferentes
Alessa Camarinha, fundadora do bloco Ritaleena

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O carnaval conversa com o direito à cultura, por envolver linguagens artísticas, como música e dança. Viabilizá-lo é garantir a liberdade cultural, que é obrigação do Poder Público. A festa também se relaciona com o direito de associação, já que une pessoas que projetam uma mensagem política
Guilherme Varella, ex-chefe de gabinete da Secretaria de Cultura e autor do livro "Direito à Folia"

Vão se passar muitos carnavais até que o carnaval de rua de São Paulo se torne mais harmonioso, com cada um entendendo seu papel. Saber ir para a rua é uma cultura em reconstrução na cidade hoje, já que não envolve uma relação cliente-vendedor, mas sim de ir para fazer parte da festa
Thiago França, fundador do bloco Charanga do França

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