Piauiense fez certidão de nascimento aos 50 anos: 'Filhos tinham vergonha'

Paulo Antônio Pereira da Silva viveu sem certidão de nascimento por 50 anos. Não frequentou escola, nunca votou nem teve carteira de trabalho. A situação vivida pelo piauiense se repete com cerca 2,7 milhões de brasileiros, segundo dados do Censo 2022.

O que aconteceu

No Piauí, terra de Paulo, quase metade dos municípios não tem cartório. Dos 224 municípios do estado, apenas 118 têm pelo menos um cartório — os outros 106 estão desassistidos, de acordo com levantamento do UOL junto ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A população dessas cidades precisa se locomover para cidades vizinhas para conseguir serviços básicos de cartório.

Há carência desses serviços públicos em todo o estado, mas em especial no interior e nos povoados.
Patrícia Monte, da Defensoria Pública do Piauí

Não há estimativa oficial de quantas pessoas estão indocumentadas no estado. A imprensa local aponta que há cerca de 45 mil pessoas sem documentos, atribuindo a informação ao Sinasc (Sistema Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos). O UOL procurou o órgão, ligado ao Ministério da Saúde, mas não houve resposta.

Nasci na zona rural do município de José de Freitas, onde não tinha estrutura para tirar a certidão. Passei 50 anos sem documento nenhum, porque naquela época era muito complicado. Meu pai faleceu, minha mãe não sabia o que fazer e foi levando. Meus irmãos mais velhos nunca se interessaram em me levar para registrar.
Paulo Pereira da Silva, jardineiro

Paulo, agora com 51, só conseguiu se registrar há um ano, morando em Teresina.

Vivi tanto tempo sem registro, já nem fazia tanta questão. Só fui fazer por causa dos meus filhos e da minha esposa. Ela ficou me cobrando, por causa deles.
Paulo Pereira da Silva

Meus filhos ficavam com vergonha, ressentidos: 'você não tem pai, cadê seu pai?'. Os três já tinham registro, mesmo que sem meu nome. Precisei fazer o documento para o mais velho conseguir casar. Mas hoje tenho a honra de ter meu nome nos dos meus filhos. Tenho orgulho.
Paulo Pereira da Silva

Falta de estrutura cartorial

Um só cartório para tudo. De acordo com Valéria Almeida, presidente da Arpen-PI (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), falta estrutura básica em grande parte dos cartórios do estado.

Continua após a publicidade

Na grande maioria dos cartórios do interior do estado, o registro civil é agregado às demais especialidades, ou seja, há um cartório único para tudo. E eles têm grandes problemas no que se refere a informática, internet e insumos, e o acervo é muito antigo. Não existe acervo digital, para que o serviço possa ser prestado com maior agilidade.
Valéria Almeida, presidente da Arpen-PI

Carência de serviços públicos. Patrícia Monte, diretora de primeiro atendimento da Defensoria Pública do Estado do Piauí, diz que, ao analisar os casos de pessoas que buscam ajuda no órgão, notam-se fatores ligados à ineficiência do poder público.

Tem casos interessantes em que a Justiça Eleitoral ia para o interior, pressionada por partidos e políticos, para registrar os habitantes e então fazer o registro eleitoral. Eles tiravam várias certidões de nascimento e davam para o povo, mas não registravam as pessoas no livro de registro. As pessoas tinham um papel na mão, mas não estavam completamente oficializadas. A intenção ali era só ter a possibilidade eleitoral.
Patrícia Monte, da Defensoria Pública do Piauí

Valéria também destaca a dificuldade de cartórios em cidades do interior do Brasil conseguirem se sustentar financeiramente.

Não tem rentabilidade suficiente para manter um cartório de registro civil em cada município. Ele não se sustentaria.
Valéria Castro, presidente da Arpen

Mães esperam pais voltarem para registrar as crianças. Patrícia afirma que há casos em que os pais migraram para outras regiões, e as mães preferiram esperar sua volta.

Continua após a publicidade

As companheiras de homens que migravam para trabalhar, para São Paulo etc, preferiam esperar o marido voltar para colocar o nome no filho. Acontece que muitos demoravam, ou nem voltavam. Acontecia muito, e às vezes ainda acontece.
Patrícia Monte, da Defensoria Pública do Piauí

Sem documento, sem cidadania

A falta de certidão de nascimento inviabiliza a cidadania. Para ter direito a programas sociais, aposentadoria, estudar e votar é necessário, no mínimo, uma certidão de nascimento.

Muitas vezes, a empresa me botava para fora porque eu não tinha documento. Eu perdia muito serviço, nunca trabalhei registrado e nunca consegui receber benefício. Ficava triste, porque eu sempre trabalhei como diarista, então eu precisava do auxílio [emergencial, pago durante a pandemia]. Eu via todo mundo pegando, ficava olhando, mas tinha que me conformar. As pessoas jogavam na minha cara, falavam que eu ia morrer como indigente. Foi uma vida muito sofrida, de humilhação, às vezes.
Paulo Pereira da Silva, jardineiro

"Como eu fazia para ir ao médico? Vou ser sincero: mentia". Além de nunca ter trabalhado com carteira assinada e ter enfrentado preconceito por não ser oficialmente um cidadão, Paulo também enfrentava dificuldades quando tinha que cuidar da saúde.

Minha esposa ia comigo, chegava ao balcão do posto e falava que eu tinha perdido tudo e que estava tentando tirar de novo. Uma vez, a agente de saúde quis me ajudar e fez uma carteirinha falsa, se baseando no meu endereço e na minha palavra. Tudo isso para eu poder ir ao médico. Mas, para falar bem a verdade, a sorte é que eu sempre fui bem de saúde, então eu não ia tanto ao médico.
Paulo Pereira da Silva, jardineiro

Continua após a publicidade

Combate à subnotificação de nascimentos

Em 2010, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou a emissão de certidões de nascimento em maternidades por meio de interligação com cartórios, de forma eletrônica. O objetivo era facilitar os registros e erradicar a subnotificação de nascimentos.

São 28 maternidades conveniadas no Piauí, sendo sete em Teresina. A maioria das cidades beneficiadas com a medida já tinham cartório de registro, segundo dados do CNJ.

Falta estrutura. De acordo com Patrícia Monte, a solução foi eficiente em reduzir o número de bebês sem registro no estado. Porém, com o passar dos anos, houve um "abandono" dos órgãos envolvidos, e muitas maternidades ficaram sem estrutura básica e pessoal para atuar, segundo a defensora pública. Foram identificados problemas com internet e computadores e falta de capacitação.

No Piauí, chegaram a fazer 200 pontos de cartório em maternidades, mas o número caiu para menos de 80, porque eles dependiam das políticas públicas de estado e município, de pagar e oferecer os termos de cooperação, que tem que ser entre os órgãos, estadual ou municipal, cartórios e maternidades.
Patrícia Monte, da Defensoria Pública do Piauí

Subnotificação de nascidos no Brasil. Mais de 33 mil crianças nasceram e não foram registradas dentro do período legal estipulado no país — até 60 dias depois do nascimento, de acordo com a Pesquisa Registro Civil de 2022. Houve queda em relação ao ano anterior, de pandemia, quando 55 mil bebês não foram registrados.

Continua após a publicidade

O que está sendo feito

Mutirões para registro. O juiz Carlos Arantes Júnior, da CGJ (Corregedoria Geral de Justiça) do Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI), disse que o órgão realiza mutirões, por meio da Justiça Itinerante, para acessar populações remotas.

São realizados atendimentos gratuitos diversos, como a emissão das primeiras e segundas vias de Registro Civil, Registro Geral, reconhecimento de paternidade, casamentos comunitários, dentre outros.
Carlos Arantes Júnior, juiz auxiliar da CGJ Piauí

O UOL questionou a CGJ sobre a estrutura dos cartórios do Piauí, mas não houve resposta. O órgão também não soube dizer quantos piauienses precisam de documento. A Sasc (Secretaria Estadual de Assistência Social do Piauí) também afirmou não ter essas informações.

Casamento marcado

Antes eu não podia ter crédito, comprar fiado. Hoje dou conta de tudo, tenho nome, me sinto muito mais respeitado. Eu achava que só eu não tinha documento, mas, depois que tirei, apareceram pessoas falando que também tinham esse sonho, perguntando como eu fiz para conseguir.
Paulo Pereira da Silva, jardineiro

Continua após a publicidade

Documentado, Paulo vai realizar sonhos. O primeiro deles já foi concretizado —registrar seus filhos com seu nome. Agora, o jardineiro faz planos de se casar, uma cobrança antiga da esposa. O casamento já tem até data para acontecer.

Era um incômodo dela, durante todo esse tempo em que nós estamos juntos. Ela é uma mulher certinha, queria isso. Vamos nos casar em outubro.
Paulo Pereira da Silva, jardineiro

Piauiense poderá finalmente exercer o direito de votar. Agora, com a certidão em mãos, Paulo vai tirar título de eleitor e planeja votar nas eleições municipais deste ano.

Vou até pedir uma folga para tirar o título. Eu via todo mundo podendo votar e ficava com vontade. Mas, sem documento, como é que eu ia fazer? Olha só, aos cinquenta e poucos anos de idade, vou conseguir.
Paulo Pereira da Silva, jardineiro

Deixe seu comentário

Só para assinantes