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Cotidiano

Guarujá: pintor relatou em áudio ameaça de PMs um dia antes de ser morto

Na tarde de 21 de março de 2024, o pintor Aparecido Felix de Souza, 47 anos, enviou a um familiar um áudio por WhatsApp relatando ter sofrido uma ameaça de policiais militares que estavam na Baixada Santista durante a Operação Verão. Menos de 24 horas depois, ele foi morto dentro de casa, no Guarujá, ao ser atingido por um tiro de fuzil e outros dois de pistola.

Aparecido Felix de Souza, morto por PMs no Guarujá em 22 de março de 2024, durante a Operação Verão
Aparecido Felix de Souza, morto por PMs no Guarujá em 22 de março de 2024, durante a Operação Verão Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

O UOL obteve com exclusividade o áudio gravado por Aparecido. Em pouco mais de seis minutos, ele demonstrava quatro preocupações: a primeira era sobre uma cliente que achou seu serviço caro; a segunda, sobre não ter dinheiro para comprar um botijão de gás; a terceira era uma angústia por seu celular não estar carregando direito. E a última aflição girava em torno do que disseram a ele alguns PMs em uma abordagem policial.

Aparecido era ex-presidiário. Ele foi preso após brigar com um homem, que morreu, e estava em liberdade desde 2020. Neste período, além de trabalhar como pintor, também vendia comidas e bebidas em carrinhos nas praias do Guarujá. Ele foi uma das 56 vítimas da Operação Verão, uma das mais letais da história da PM de São Paulo, atrás apenas do Massacre do Carandiru, em 1992, e dos Crimes de Maio, de 2006.

A SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou em nota que "não compactua com excessos" e que "as denúncias citadas pela reportagem serão anexadas aos respectivos inquéritos sobre o caso, conduzidos pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário". Leia mais no final do texto.

'Se eu te pego de quebrada, já era'

Um dia antes de ser morto, Aparecido passou por uma abordagem policial. Ele conversava com outros colegas próximo à praia, após trabalhar com o carrinho de comidas e bebidas, quando foi abordado por policiais.

Na gravação enviada ao familiar, Aparecido relata: "esses caras que me pegou aí, esses caras é ruim, meu. É da Baep, é que nem a Rota". Segundo o pintor, após os policiais terem verificado seus documentos, a conversa ocorreu assim:

  • PM: Não tá constando nada, não.
  • Aparecido: Graças a Deus. Tá tudo certo.
  • PM: Se eu te pego na madrugada, cê tá ligado, né?
  • Aparecido: Mas você não vai me encontrar na madrugada porque eu tenho horário pra ficar em casa. E outra, senhor, não tô mexendo com nada de errado, não. Tranquilo. Minha vida é trabalhar.
  • PM: Não, mano, não quero saber, não. Já tô te dando o papo: nós vai te matar.
  • Aparecido: É com o senhor mesmo.
  • PM: Deu sorte que eu peguei você aí na Caiçara. Se eu te pego de quebrada, já era.
  • Aparecido: É isso mesmo, só que eu não vou dar o pé pro senhor me pegar, não. Eu tenho certeza disso aí, que o senhor não vai me pegar, me trombar na madrugada, nem na noite, não.
  • PM: É, folgado, ele tem essa cara de mau.
  • Aparecido: É isso aí mesmo.

Aparecido relatou também que, após a abordagem, PMs foram até a casa dele e, lá, reviraram todos os seus itens domésticos.

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  • Aparecido: É com o senhor mesmo. O que o senhor fizer comigo, o senhor vai responder. Eu não devo nada, não.
  • PM: Cadê as motos? Que cê tem no seu nome aí?
  • Aparecido: Não tenho moto, não, senhor. A moto que eu tinha eu vendi.
  • PM: E aí, tem droga, tem arma?
  • Aparecido: Não tem nada, nem gás eu tô tendo aqui.
  • PM: Faz parte da organização?
  • Aparecido: Não tenho envolvimento com ninguém, não. Ando sozinho. O que aconteceu, passou, passou, agora é outra vida, senhor. Agora minha vida é trabalho e cuidar da minha vida.

A morte de Aparecido

Integrantes do Baep. Aparecido foi morto no dia seguinte à abordagem. Os PMs que participaram da ação que terminou na morte do pintor são do 5º Baep (Batalhão de Ações Especiais), que fica em Barueri, na Grande São Paulo.

Câmeras corporais desligadas. Todos eles afirmaram à Polícia Civil que utilizavam câmeras corporais, mas que os equipamentos estavam desligados no momento da ocorrência.

Denúncia anônima. Os PMs afirmaram ter recebido uma denúncia anônima que apontava uma "casa-bomba", com drogas e armas, na rua Manoel Panelas, Vila Santa Rosa, bairro que fica entre a Praia das Astúrias, no Guarujá, e a balsa que liga a cidade até Santos.

Pintor estaria armado, segundo policiais. Na casa, a mesma que policiais revistaram no dia anterior, os PMs do Baep afirmaram que mandaram Aparecido sair de um quarto. Quando o pintor saiu, estava com uma arma na mão direita e fez menção a apontá-la contra os PMs, segundo os próprios policiais.

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Tiros de fuzil e pistola. De acordo com o Boletim de Ocorrência, o tenente Adolfo Caraman Naveira relatou ter feito um disparo com tiro de fuzil, enquanto o cabo Marko Cesar Dias afirmou ter feito dois disparos com uma pistola Glock.

Arma ao lado do corpo. Na sequência, o soldado Luis Fernando Barbosa de Jesus disse ter encontrado e recolhido uma arma que estaria ao lado do corpo de Aparecido.

Dificuldades da investigação

Policiais civis que trabalham no Guarujá afirmaram à reportagem ser difícil investigar a real dinâmica da ocorrência, uma vez que as câmeras corporais dos PMs não funcionavam no momento da ocorrência.

Além disso, por temer represálias, a população local, mesmo que tenha testemunhado a dinâmica, não falaria com a polícia.

O que diz a SSP

A reportagem pediu à assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública entrevistas com os três PMs envolvidos na morte de Aparecido. Os pedidos de entrevistas não foram atendidos.

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Por meio de nota, a SSP afirmou que "a instituição conta com rígidos protocolos operacionais e não compactua com excessos, indisciplina ou desvios de conduta".

A pasta também informou que "o áudio [obtido pela reportagem] citado será encaminhado à perícia para a análise do seu conteúdo e integridade" e que "a Corregedoria da Polícia Militar acompanha o andamento dos inquéritos e está à disposição para formalizar e apurar eventuais denúncias contra seus agentes".

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