RS: Racismo religioso explica falas que ligam crenças africanas a enchentes

Em menos de um mês, os adeptos de religiões de matriz africana ouviram de um prefeito, de uma influenciadora e até de um padre que eles eram responsáveis pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Para estudiosos ouvidos pelo UOL, as declarações são reflexo do racismo religioso.

O que aconteceu

O advogado Hédio Silva Jr., coordenador do Idafro (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras), diz que as declarações tentam difundir o ódio contra essas crenças. "A fórmula básica do racismo religioso atribui à religiosidade afro-brasileira a responsabilidade por todos os males do planeta. Ela difunde o medo, incita agressões moral e física de adeptos e templos religiosos", avalia.

As falas têm um contexto em comum: o RS é o estado brasileiro com o maior número de adeptos de religiões de matriz africana, segundo o Censo 2010. São 140.315 que seguem a umbanda (34% do total do país), 8.438 o candomblé, enquanto outras 8.846 pessoas seguem outras religiosidades afro-brasileiras. O IBGE informou que o Censo 2022 também fez esse levantamento, mas os números ainda serão divulgados.

Pessoas que se identificam como brancas são a maioria dos adeptos, com 91.965 (58%). "Um branco gaúcho macumbeiro sintetiza a derrota ideológica da falácia de que a macumba seria uma religião de preto analfabeto, desocupado e fetichista. A diferença é que o branco, por ser branco, arca com metade do ônus de assumir publicamente sua pertença religiosa e a fazer
o enfrentamento público da intolerância religiosa", acrescenta o coordenador do Idafro.

O professor de antropologia Emerson Giumbelli, da UFRGS (Universidade Federal do RS), ressalta que a umbanda e o batuque - outra crença de matriz africana, que não foi detalhada pelo Censo 2010 - são religiões com forte presença no estado. "A umbanda é contemporânea de suas expressões no Sudeste - ou seja, há registros desde a década de 1930. Já o batuque está presente desde o século 19, lutando contra muitas adversidades. No início do século 20, passa a se afirmar abertamente", explica.

A Bahia é a 'Roma Negra', mas, sem dúvida, o Rio Grande do Sul é o 'Vaticano da Macumba'. Sempre foi.
Advogado Hédio Silva Jr.

Advogado Hédio Silva Jr., coordenador do Idafro
Advogado Hédio Silva Jr., coordenador do Idafro Imagem: Arquivo pessoal

'Refúgio dos negros'

O produtor cultural Luiz Augusto Lacerda, 42, conhece na prática os impactos desse discurso racista contra as religiões de matriz africana. Ele é um dos diretores da Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, em Porto Alegre, clube para pessoas negras fundado em 1872, ainda durante a escravidão no Brasil.

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Ele conta que o espaço segue acolhendo negros, como fazia com escravizados há mais de um século. "Continua sendo um refúgio para o negro em Porto Alegre. Promovemos eventos, almoços, campanhas beneficentes, além de ações culturais, como o letramento racial".

Atualmente, o clube está localizado na Estrada Afonso Loureiro Mariante, no bairro Belém Velho. A nova sede foi escolhida depois de a organização ser forçada a passar por vários endereços. "A sociedade era vista pelos vizinhos de forma desrespeitosa. Organizavam desde abaixo-assinados até intervenções, pedindo que as manifestações culturais acabassem. Agora, estamos num lugar mais afastado", explica Luiz Augusto.

O produtor cultural ressalta que o racismo religioso não deu trégua nem durante as enchentes. Ele reclama da falta de mobilização, inclusive do poder público, para atender terreiros no estado. "Várias casas foram atingidas pelas águas. Foram os clubes negros e outras instituições que militam pelo povo negro que acolheram babalorixás e ialorixás [responsáveis pelos templos]".

Racismo religioso é crime e está previsto em vários níveis da legislação brasileira. Em janeiro do ano passado, o presidente Lula (PT) sancionou a lei que equiparou a injúria racial ao racismo, citando o racismo religioso. A pena varia de dois a cinco anos e multa, mas pode ser ampliada dependendo das circunstâncias do caso.

Produtor cultural Luiz Augusto Lacerda
Produtor cultural Luiz Augusto Lacerda Imagem: Arquivo pessoal

Denúncias no MP

No mês passado, o Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul abriu apuração sobre a declaração do padre Paulo Santos. Ele relacionou as enchentes no RS à falta de fé, afirmando que o estado "abraçou a bruxaria e o satanismo". A paróquia São Vicente de Paulo informou que ela e o padre não têm nada a declarar sobre o caso e qualquer posicionamento será dado pelos "órgãos responsáveis".

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Já o Ministério Público de Minas Gerais denunciou a influenciadora Michele Dias Abreu por intolerância religiosa. Ela também associou a tragédia no RS a religiões de matriz africana.

A declaração foi publicada em um vídeo no dia 5 de maio. "O estado do Rio Grande do Sul é um dos estados com maior número de terreiros de macumba. Alguns profetas já estavam anunciando sobre algo que ia acontecer no Rio Grande do Sul, devido à ira de Deus". Após a repercussão, ela disse que se "expressou mal".

O prefeito de Balneário Barra do Sul (SC), Valdemar Barauna (PP), disse que o RS é atingido por enchentes porque o estado supostamente tem poucas igrejas. Barauna afirmou que o RS é um lugar de "centro". O UOL não conseguiu contato com o prefeito.

A reportagem entrou em contato com o Ministério Público de Santa Catarina sobre a fala de Barauna. Se houver resposta, o texto será atualizado.

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