'Tudo é dinheiro, né?': efeito de chuvas no RS depende da renda de famílias
Pouco mais de um mês após o início das chuvas que devastaram municípios no Rio Grande do Sul, a água recua na maior parte do estado e famílias gaúchas tentam se restabelecer em diferentes condições, que variam conforme o nível de renda de cada uma.
Diferentes mapas produzidos em maio pelo Observatório das Metrópoles e pelo Instituto de Referência Negra Peregum mostram que as áreas mais afetadas pelas enchentes na região metropolitana de Porto Alegre foram as mais pobres e com maior concentração de pessoas negras.
Sobre esse contexto, Gisele Brito, que é coordenadora da área de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum e mestre em Planejamento Urbano, avalia que "parte da população com mais renda que foi atingida, obviamente, passou por perdas impensáveis, com danos à vida, inclusive". Mas ressalta que a capacidade de resposta e adaptação individual da população branca e com mais recursos é maior. "Os dramas talvez sejam iguais, mas a capacidade de tratar e responder a esses traumas é diferente."
A pesquisadora entende que ambos os mapas, apesar de cruzarem dados distintos da capital gaúcha, revelam um "padrão" presente nas cidades brasileiras: as regiões mais pobres e atingidas pelas enchentes são também os locais com maior concentração de pessoas negras.
O que acontece é que existe um padrão que foi, historicamente, segregando os negros e protegendo a população mais branca no Brasil. Em Porto Alegre, dá para ver isso bem agora, que as áreas que não foram atingidas e que concentram mais infraestrutura são as que têm uma proporção muito alta de população branca, acima da média da própria cidade. Gisele Brito, mestre em planejamento urbano e coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum
Brito explica que o lugar onde a população negra se concentra recebeu e recebe menos infraestrutura. "Isso se perpetua historicamente e, quando essa região começa a receber infraestrutura, a tendência é a gentrificação e o embranquecimento dela."
Sobre o impacto das chuvas em diferentes regiões do estado, o pesquisador André Augustin, do Observatório das Metrópoles em Porto Alegre, afirmou em entrevista recente ao UOL que todos os gaúchos foram afetados pelas enchentes, mas algumas pessoas foram mais afetadas do que outras. "Áreas mais ricas de Porto Alegre ficaram debaixo d'água por problemas de manutenção, não por falta de estrutura", disse.
A partir dos mapas produzidos pelo Observatório das Metrópoles e pelo Instituto Peregum, a reportagem localizou cinco moradores de diferentes bairros da região metropolitana de Porto Alegre para entender como cada um foi afetado pelas chuvas e de que forma buscam se restabelecer.
Vizinhos, mas distantes
De acordo com André Augustin, um dos bairros mais atingidos pelas enchentes em Porto Alegre foi o Humaitá, onde fica a comunidade Vila Farrapos, uma das regiões mais pobres e com maior concentração de pessoas negras na capital.
Dois moradores que tiveram as casas invadidas pelas inundações no bairro relataram à reportagem que o local onde vivem se assemelha a um "cenário de guerra". Apesar da mesma descrição e proximidade territorial, os planos de cada um deles para reparar os prejuízos são bem distintos.
Natural de Porto Alegre, Rodrigo Noal, 34, vive com a esposa e duas cachorras em um dos poucos condomínios de casas localizados no Humaitá. Ele ocupa um cargo de chefia em uma empresa de tecnologia e se autodeclara branco.
No início de maio, ele teve a casa inundada pelas chuvas até uma altura de 1,4 metro. "A gente perdeu os móveis todos do primeiro andar. O sofá, o painel da sala, fogão, geladeira, armário de cozinha, máquina de lavar, portas, piso (...) isso tudo acabou indo", conta.
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Quero receberEle e a esposa, que é gerente bancária, deixaram o local às pressas com os animais de estimação e foram resgatados por caminhões de uma companhia de luz no mesmo dia em que as enchentes começaram a invadir seu bairro. Em seguida, conseguiram abrigo na casa de parentes que vivem em regiões mais elevadas e com menos risco de alagamento na capital.
Agora, o casal planeja limpar a casa em que viviam, onde a água já baixou, e começar a fazer orçamentos para a compra de novos móveis. "Fazer isso para que, se Deus quiser, em um mês, talvez, a gente possa retornar para casa", diz.
Apesar de lamentar as próprias perdas, Rodrigo participa de campanhas de arrecadação de recursos para famílias de baixa renda atingidas pelas enchentes e reconhece que moradores do bairro vizinho foram ainda mais prejudicados do que ele.
"A região como um todo foi afetada e hoje parece um cenário de guerra. Porém, na Vila Farrapos, que fica do outro lado, conheço pessoas que tiveram a água invadindo acima dos dois metros", conta.
Ele explica que o bairro onde vive, "revitalizado" e ocupado majoritariamente por prédios e três condomínios de casas residenciais, é mais elevado do que a região vizinha, que concentra residências "mais simples e humildes".
É próximo à Vila Farrapos que vive Paulo Elieser Sassi, 35. Trabalhador autônomo e autodeclarado pardo, ele vivia e trabalhava com os pais na mesma rua onde ficavam a sua casa e a loja de utensílios domésticos e eletrônicos que tocava com a família até o início das enchentes. Ambos os imóveis ficaram alagados "até o telhado", segundo ele.
Aqui na nossa região, a maioria perdeu tudo, como nós. São poucos os lugares onde conseguiram salvar alguma coisa, porque tem muitas pessoas que vivem em situações mais precárias, em casinhas e barracos, sabe?! Então aqui destruiu muito mais. Parece uma zona de guerra. Paulo Elieser Sassi, morador de uma das regiões mais pobres de Porto Alegre, no bairro Humaitá
Segundo Paulo, ele e os pais sobrevivem hoje de doações e ajuda de parentes que oferecem abrigo à família, enquanto tentam conseguir o Auxílio Reconstrução, do governo federal.
A gente queria tentar voltar a morar e trabalhar ali, mas, pelo que a gente viu até então, não tem condições. A estrutura da casa foi totalmente danificada, tem rachadura nas paredes, tudo virou lodo, lixo. É bem desanimador. E sobre a loja, a gente não tem nem dimensão ainda porque há muito entulho na frente e não conseguimos entrar. Então não temos plano de nada. Isso que é o mais desesperador, a gente não sabe o próximo passo ainda. Paulo Elieser Sassi
Cerca de um mês depois das enchentes que invadiram a sua rua, Paulo pôde entrar novamente em casa e, ao se deparar com a destruição quase completa do local, desejou se mudar dali. "Vem sendo bem difícil, a cada chuva já era uma preocupação enorme e, agora, piorou mais ainda."
"Essa região foi sempre muito afetada pelas chuvas e, já que nunca nada foi feito por nós e dizem que é difícil fazer um planejamento para conter as enchentes, queria que ao menos deslocassem as pessoas daqui", diz.
Questionado sobre onde acredita que poderia viver com mais segurança, ele cita regiões mais altas e centrais de Porto Alegre, onde, no entanto, faltaria recursos próprios para se mudar com a família.
'O dia que inundar aqui, a cidade fica toda debaixo d'água'
Um dos bairros de padrão mais alto e menos impactados pelas chuvas na capital gaúcha é o Moinhos de Vento, onde vive a comunicadora digital Miréia Borges, 67.
Quando as chuvas começaram a inundar pontos centrais da capital, no início de maio, Miréia se manteve com o marido no apartamento onde vivem, que não chegou a ser invadido pelas chuvas. "Nós ficamos 17 dias sem água aqui no bairro. Restaurantes, bares, consultórios, tudo fechou, e nosso bairro ficou deserto", recorda.
Ela conta que se manteve em casa e participou de campanhas de doações a famílias atingidas pelas chuvas, enquanto via vizinhos e moradores do bairro viajarem para regiões litorâneas do estado.
As pessoas daqui começaram a sair da cidade e ir para a praia. Para a serra não podia ir, então elas iam para o litoral. Teve muita gente que saiu e muita gente que foi correndo para o supermercado para abastecer suas casas. Essas coisas de pessoas que ficam meio desesperadas, né? Miréia Borges, moradora do bairro Moinhos de Vento
Com a casa já abastecida de alimentos, Miréia e o marido não participaram da corrida aos mercados do bairro, mas precisaram "correr pela água", que, no início de maio, faltava na maior parte da capital.
"A única coisa pela qual a gente correu muito foi a água. Meu marido fez muito esforço porque, bem no início, não tinha onde pegar água. Mas eu tenho um genro que tem um poço artesiano de 240 metros no bairro dele, lá no Três Figueiras, e meu marido ia até lá, pegava bombonas daquelas de 20 litros, enchia duas e trazia para nós aqui", conta.
Questionada pela reportagem se nem as ruas do bairro foram atingidas pelas inundações, Miréia afirmou: "É um bairro muito alto e, no dia que inundar o Moinhos de Vento, a cidade fica toda debaixo d'água".
Infraestrutura e autonomia
Entre os bairros considerados de classe média atingidos pelas enchentes no início de maio, está o Cidade Baixa, uma região "boêmia", com prédios mais baixos e pequenos comércios, segundo a moradora local Luiza Moron, 36.
À reportagem, Luiza, que é urbanista e funcionária pública da prefeitura de Porto Alegre, conta que também teve o apartamento que aluga inundado no início de maio. "A água aqui veio pelos esgotos. Foi o sistema de esgoto que não estava drenando e começou a extravasar. E vinha por aquelas bocas de lobo que tem no meio do asfalto e até pelos bueiros das casas."
Antes de a água invadir seu prédio, ela buscou abrigo no apartamento de uma amiga em uma região próxima ao bairro Três Figueiras, um dos mais elevados e ricos da capital. Ali, junto a outras pessoas desalojadas, Luiza teve de fazer uso racional da água, que vinha apenas da caixa d'água do prédio.
Sobre a situação do desabastecimento de água na capital, a pesquisadora Gisele Brito comenta: "Isso também envolve uma questão econômica porque pode ser que a cidade inteira tenha sido afetada, mas prédios de maior renda com caixa d'água, por exemplo, deram uma autonomia imensa aos moradores. Acho que esse é um bom indicativo de como se dá a adaptação e a capacidade de resposta de uma população com mais renda em um território com mais infraestrutura".
Quando a água recuou no bairro Cidade Baixa, Luiza voltou para limpar seu apartamento e entender a dimensão dos prejuízos que teve. Entre as perdas, estão boa parte dos móveis que ficaram na casa e de seu material de artesanato, que produz e comercializa como segunda ocupação.
Ela afirma que irá dividir o valor dos danos no imóvel alugado com a proprietária do local e que se mudará para outro apartamento. "Não vou voltar a morar lá porque, além de ter o cheiro forte, mesmo já estando limpo, eu precisaria refazer um monte de coisas e não dou conta de ficar com os meus bichos lá dentro. Já que estava pagando aluguel, vou pagar em outro lugar."
A minha sorte é que eu tenho um emprego formal, no qual eu tive dias para poder me ausentar. Sei que tem muita gente que teve o seu negócio afetado e que o seu emprego não existe mais. Então, nesse comparativo, eu ainda acho que estou no lucro, porque chega dia 30 e eu recebo o meu salário direitinho. Luiza Moron, moradora do bairro Cidade Baixa
Em relação a como pretende reparar as perdas que teve, Luiza afirma: "Eu vou alugar um lugar que é semi-mobiliado para eu não ter que comprar tudo agora e conseguir juntar dinheiro para ter minhas coisas até o final do ano". Ela afirma ainda que tinha uma pequena reserva financeira e pôde contar com a ajuda de amigos e familiares.
"Teve gente que me mandou dinheiro porque, para ficar fora da tua casa, bem ou mal, tu precisa de dinheiro para te locomover, para comer (...). E eu vou precisar de dinheiro para entregar o apartamento e fazer a minha mudança. Então, tudo é dinheiro, né?", conclui.
Para limpar o apartamento, Luiza precisou de mais de uma semana de faxina com a ajuda de amigos e de Gema Rosa Garrido, 54, que presta serviços de diarista e é moradora de Canoas, um dos municípios mais atingidos pelas chuvas na região metropolitana de Porto Alegre.
Imigrante chilena que vive há 13 anos no Rio Grande do Sul, Gema teve a casa onde vivia com a filha Rócio, 19, e dois animais de estimação, completamente invadida pelas enchentes.
'Quem manda é o dinheiro'
Hoje, minha casa não parece mais casa. (...) Está horrível, horrível, horrível. Estou falando com você dentro dela e vendo tudo revirado, sujo, com lama, com fungo. Tenho muito trabalho a fazer. Gema Rosa Garrido, moradora do bairro Rio Branco, em Canoas
Abrigada na casa de uma amiga na capital, Gema voltou a Canoas para começar a limpeza do seu imóvel, que é alugado. Lá, ela também tenta se inscrever no Cadastro Único e ser beneficiada pelo Auxílio Reconstrução, pois sobrevive apenas do seguro-desemprego que recebe do governo e das poucas diárias de faxina que conseguiu fazer desde as inundações.
Ela conta que aguardava a liberação de duas parcelas adicionais do seguro-desemprego, prometidas pelo governo federal aos beneficiários do programa atingidos pelas chuvas no Rio Grande do Sul. Mas, no último dia 4, foi informada em um centro do SINE (Sistema Nacional de Emprego) que, por ser trabalhadora informal, não se enquadra no perfil de pessoas atendidas pela medida. "Fiquei muito triste por isso", lamentou.
Na avaliação de Gisele Brito, do Instituto Peregum, o Estado brasileiro, a nível municipal, estadual e federal, precisa dar prioridade a políticas públicas que atendam as populações mais vulneráveis, uma vez que "a tendência é que essa tragédia aprofunde ainda mais as desigualdades" no estado.
"Se você faz políticas de indenização e reparação só voltadas para quem tem propriedade ou emprego formal, por exemplo, obviamente a população mais pobre, negra e informalizada, vai ficar desamparada", defende Gisele.
Sobre o futuro, Gema afirma que gostaria de se mudar para um lugar mais seguro e cita como exemplo a região central de Porto Alegre, onde não teria "condições" de morar. "Por exemplo, lá onde morava a Luiza, é um caso de padrão socioeconômico mais alto. Então, para eles, é mais fácil de se mudar. Se não gostaram do que viram e de como a água entrou em suas casas, eles podem. Têm trabalhos, ganham um bom salário, mas a minha realidade é totalmente diferente", afirma.
E conclui: "Nós sabemos que, a nível mundial, o que manda é o dinheiro. Então, se você me pergunta se eu gostaria de me mudar daqui, claro que gostaria, mas não tenho condições econômicas, entende? Quem tem menos condições é mais prejudicado. E, lamentavelmente, sempre será assim, sempre".
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