'Paga 69 mil ou é despejado': contrato muda e imóveis da Cohab vão a leilão

No extremo leste de São Paulo, em Cidade Tiradentes, a analista de vendas Geys de Almeida, 30, e o marido Johnny de Sousa, 39, autônomo, vivem em um apartamento da Cohab (Companhia de Habitação Popular) desde 2007. Em janeiro deste ano, receberam a notificação de que o imóvel, que tinha cerca de R$ 13 mil em débitos restantes do financiamento, estava sendo leiloado.

"Em 2020, as prestações pararam de vir, e nós não encontramos mais pelo número do contrato direto no site da Cohab. Sem aviso prévio, as prestações deixaram de vir", conta Sousa.

Antes, o casal, que tem um filho autista e renda familiar de R$ 4.500, pagava uma mensalidade de R$ 200 por mês, quantia que não comprometia tanto o orçamento da casa.

Agora, a opção que chegou para a gente foi de pagar o segundo arremate do leilão, que seria de R$ 69 mil. Quem de periferia tem esse valor para pagar assim, paga ou é despejado? Não sabemos se vamos acordar amanhã com ordem de despejo. Geys de Almeida

A família não é a única a enfrentar o problema. Dos 31.492 contratos da Cohab cedidos pela Prefeitura de São Paulo em 2016, época da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, para o SPDA (Companhia São Paulo de Desenvolvimento e Mobilização de Ativos), 10.555 estão inadimplentes. Desses, 9.600 têm cláusula de alienação fiduciária, que permite que as famílias possam ser surpreendidas com a notícia de que suas moradias populares estão disponíveis para compra em um leilão.

O levantamento dos dados foi feito pelo LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), que cedeu os números ao UOL.

A Prefeitura de São Paulo afirmou em nota que oferece "inúmeras tratativas e negociações para a regularização dos contratos inadimplentes" e que as unidades que vão a leilão são "casos excepcionais" (veja nota na íntegra abaixo).

Mudança no contrato pode fazer imóvel ser leiloado extrajudicialmente

"SPDA é uma sociedade de economia mista controlada pelo município que tem o propósito de gerir seus ativos financeiros, podendo adquirir, alienar e dar em garantia. No caso, contratos de financiamento habitacional da Cohab são tratados como ativo que serve de garantia aos contratos das parcerias público-privadas municipais", explica Vitor Inglez de Souza, advogado e pesquisador do LabCidade.

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Souza aponta que esses contratos de financiamento, que deveriam ter como objetivo central facilitar o direito à moradia, passaram a ser ativos de uma carteira imobiliária e visando exclusivamente a uma lógica de valorização.

"No jargão das finanças adotado pela SPDA, foi integralizado em um FIDC (Fundo de Investimento em Direitos Creditórios), do qual a SPDA é quotista exclusiva, e contratou como agente de cobrança uma empresa do mercado financeiro especializada na gestão de carteiras de crédito", diz o advogado.

O UOL entrou em contato com a Defensoria Pública de São Paulo, que informou atender pelo menos uma centena de famílias que passam pelo mesmo problema. Há pedidos como revisão do contrato com a compatibilização do valor da parcela à renda do devedor, nulidade dos leilões realizados e suspensão de novos leilões enquanto perdurar a repactuação.

"A política de cobrança adotada pelo FIDC é que toda renegociação com dívida superior a R$ 15 mil deverá ser feita com cláusula de alienação fiduciária, ou seja, caso haja novo inadimplemento após a renegociação, o leilão do imóvel será inevitável", explica André Silva, defensor público coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Famílias assinaram contrato sem saber que poderiam perder moradia

Segundo Silva, em atendimentos realizados pela defensoria, algumas pessoas fazem a repactuação do contrato sem o devido entendimento da existência da cláusula de alienação fiduciária e quais são suas consequências.

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Em alguns casos, há um contrato de financiamento original em que não há alienação fiduciária. Porém, no momento de repactuação por conta do inadimplemento, a única possibilidade é fazer um novo contrato com alienação fiduciária. A pessoa não tem outra opção. André Silva, defensor público coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Esse é o caso do motorista de aplicativo Gabriel Gonçalves, 31, que mora em Cidade Tiradentes desde que nasceu. Ele tinha um contrato com a Cohab, período em que manteve os débitos em dia. Entretanto, após ter seu financiamento do imóvel transferido para o SPDA em 2022, sua esposa teve problemas de saúde e ficou desempregada, o que prejudicou a vida financeira do casal.

"Devido à primeira inadimplência de 120 dias, fizeram um acordo exorbitante de cinco parcelas. Atrasei uma parcela do acordo, tentei negociar novamente, e então descobri que meu imóvel estava em retomada. Não recebi nenhuma notificação ou cartas de cobrança", diz Gonçalves. A Prefeitura diz que fez "centenas de tentativas de contato".

O mesmo aconteceu com Marcelo dos Santos, 48, aposentado por invalidez, que vive com os dois filhos na região, que devia cerca de R$ 6.780 e também teve seu imóvel colocado à leilão. Segundo a Prefeitura, o contrato de Santos acumulou 21 parcelas em atraso e as tentativas de contato ocorrem ao longo de dois anos de inadimplência.

O aposentado Marcelo Dos Santos, 48, à esq. e seus filhos
O aposentado Marcelo Dos Santos, 48, à esq. e seus filhos Imagem: Arquivo pessoal

Despejo e resistência

Já Nickson Rodrigues, 40, técnico de enfermagem, que mora com o irmão e sua cunhada, teve o imóvel, que era herança de sua avó falecida em fevereiro deste ano, arrematado em leilão e recebeu ordem de despejo.

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"Pagávamos R$ 400 por mês, aumentou para R$ 600 e não conseguimos pagar, na época estávamos arcando com remédios da minha avó. A última proposta foi R$ 62 mil para quitação à vista. O oficial de justiça veio conversar expedindo a ordem de despejo", conta Rodrigues.

Nickson Rodrigues, 40, técnico de enfermagem, e seu irmão Eduardo Gomes, 33, cabeleireiro, seguram a foto da avó Maria Abel, que era proprietária do imóvel
Nickson Rodrigues, 40, técnico de enfermagem, e seu irmão Eduardo Gomes, 33, cabeleireiro, seguram a foto da avó Maria Abel, que era proprietária do imóvel Imagem: arquivo pessoal

Ainda não conseguimos ir para outro lugar. O contrato fiduciário, que inicialmente parecia uma solução financeira viável, revelou-se um caminho cheio de armadilhas e cláusulas injustas que acabaram por comprometer a segurança do nosso lar. Nickson Rodrigues, 40, técnico de enfermagem

Vendo a moradia por um fio, ele, que teve o despejo marcado para o dia 29 de julho, conseguiu na Justiça uma liminar de extrema urgência para o não despejo, que garante a estadia da família por mais cinco meses.

Ouvindo centenas de casos como esse, a cozinheira Rose Mitone, 57, que vive em um apartamento da Cohab desde 2015 com seu filho deficiente intelectual, criou o grupo Movimento Reaja Cohab, que reúne mais de cem pessoas passando pelo problema e tem auxiliado com reuniões e encaminhamentos à defensoria.

Mitone alugou o imóvel após sua antiga residência, em outro bairro da zona leste, ter sido destruída em um alagamento. No entanto, seu caso é ainda mais complexo. O contrato com a imobiliária continha fraudes e o apartamento estava no nome de um terceiro, já falecido e com débitos desde 1993. Agora, ela também encara o risco de ser despejada.

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Rose Mitone, 57, e seu filho Michael da Silva, 39
Rose Mitone, 57, e seu filho Michael da Silva, 39 Imagem: Arquivo pessoal

Trabalho em casa vendendo yakisoba, porque depois da covid-19 fiquei com sequelas e desempregada. Não quero resolver só meu problema, quero que todos possam ter um teto. Já morei na rua e sei que é doloroso não ter um lar. Rose Mitone, 57, uma das fundadoras do Movimento Reaja Cohab

O que diz a Prefeitura

Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que oferece "inúmeras tratativas e negociações para a regularização dos contratos inadimplentes envolvendo imóveis da Cohab. As unidades que vão a leilão são, portanto, casos excepcionais. Ainda assim, o Município oferta nessas situações programas de acesso a casas populares e unidades de habitação de interesse social."

Atualmente, a SPDA Habitação gere 22.840 contratos. Desde 2016, 307 imóveis foram leiloados, o que representa 1% do total. Os recursos recebidos pelo Município retornam para políticas municipais, inclusive habitacionais. Ressaltamos ainda que, sob gestão da SPDA, foram regularizados 9.851 contratos (31% da base cedida) e quitados 8.652 contratos (27% da base cedida).
Prefeitura de São Paulo, em nota

A Prefeitura diz ainda que "todo o trâmite adotado pelo Município segue o rito previsto na legislação do sistema financeiro da habitação."

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O processo até o leilão do imóvel envolve uma série de tentativas de negociação em um período de até oito meses. O contato com os clientes envolve ligações telefônicas, SMS, aplicativo de mensagens instantâneas, contatos feitos pelos órgãos de proteção ao crédito e publicações em jornais e Diário Oficial. No período de negociação, o cliente tem diversas condições de facilitação para pagamento da dívida como descontos, redução de juros e parcelamento dos valores.
Prefeitura de São Paulo, em nota

Segundo a Prefeitura, o SPDA Habitação diz que os dados atualizados em junho deste ano apontam para 10.147 contratos inadimplentes, isto é, com parcelas em atraso há mais de 90 dias. "O número de casos que aguardam consolidação na matrícula para irem a leilão é de 113", afirma. Os contratos inadimplentes com cláusula de alienação fiduciária são 698 atualmente, segundo a Prefeitura. Outros 8.963 contratos, que também possuem a cláusula, estão com os pagamentos em dia.

O que diz Prefeitura em relação aos processos citados na matéria:

Johnny de Sousa
"O imóvel foi financiado em nome de outra pessoa em 219 parcelas, em outubro de 2011. Foram pagas 92. Em outubro de 2018, o financiamento completou 63 parcelas em atraso. Após centenas tentativas de contato ao longo de seis anos de inadimplência, o processo de leilão do imóvel foi iniciado em março de 2023."

Marcelo dos Santos
"O contrato do imóvel é oriundo de uma adesão irregular, com ocupante sem documento da unidade e já com parcelas vencidas desde 05/2018. O financiamento com o Fundo SPDA foi regularizado em abril/2022, em contrato com alienação fiduciária e parcelado em 205 vezes. Deste novo acordo foram pagas 7 parcelas. O contrato acumulou 21 parcelas em atraso, desde 15/11/2022. Após centenas de tentativas de contatos ao longo de dois anos de inadimplência, o leilão do imóvel aconteceu em 21/06/2024."

Gabriel Gonçalves
"O contrato do imóvel é oriundo de uma adesão irregular, por se tratar de um morador sem vínculo com o mutuário original e já com parcelas vencidas desde 03/2017. O financiamento com o Fundo SPDA foi regularizado em janeiro/2022, em contrato com alienação fiduciária e parcelado em 300 vezes. Deste novo acordo foram pagas 7 parcelas. O contrato acumulou 22 parcelas em atraso, desde 25/04/2022. Após centenas de tentativas de contatos ao longo de dois anos de inadimplência, atualmente a unidade aguarda o início do processo de leilão."

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