Tensão no ar: 'caubóis elétricos' montam em postes em 'rodeio' premiado
Troque o touro por um poste. Coloque o capacete no lugar do chapelão. Tire a sela da montaria e substitua por um cinturão antiqueda.
Algo parecido com um coice só acontece se tiver uma descarga elétrica, mas esse risco não existe durante a prova: a estrutura fica desenergizada. Tensão mesmo só dentro da cabeça dos competidores.
"Foi a ansiedade de manter o título. Tranquei a respiração para ser mais preciso e acabei ficando sem ar." Cleberson Rodrigo teve de ser socorrido. Seus companheiros abriram seu uniforme, o abanaram e deram água para ele. Depois, foi para a ambulância disponível no local para medir pressão e se hidratar mais.
Sob a temperatura de 35 graus e todo encapotado, ele estava no alto de uma escada de cinco metros. Precisava desenganchar um fusível usando uma haste de quase três metros de extensão. Na hora de dar o bote, prendeu a respiração para não errar. Conseguiu terminar a prova, mas depois o fôlego falhou.
A recompensa veio na cerimônia de premiação: o quinteto de Cleberson se classificou para o campeonato nacional e irá defender o título conquistado em 2023. "Vamos atrás do bi, mas sem prender a respiração. Ficou a lição", desabafou Cleberson, líder dos Marrentinhos de Guarulhos.
Desde 2006, os melhores eletricistas do Brasil são escolhidos em um rodeio bem diferente, que acontece de dois em dois anos e pagou, na última edição, R$ 15 mil distribuídos entre o 1º, o 2º e o 3º colocado. Em maio de 2025, a competição terá sua nona edição e será em Belo Horizonte —e a previsão é de que dobre o valor da premiação.
A reportagem do UOL acompanhou em Mogi das Cruzes (SP) a disputa interna da EDP, concessionária que conta com os atuais campeões brasileiros.
Choque de realidade
O rodeio de eletricistas não poderia ter outra origem: foi criado em 1984 nos Estados Unidos, mais exatamente no estado do Kansas. Começou com seis equipes do meio-oeste norte-americano e hoje conta todos os anos com mais de 300 times concorrendo por medalhas e prêmios.
Dez anos depois de sua criação, essa competição virou internacional, com participações de trabalhadores do Canadá, Inglaterra, Alemanha, França, Irlanda, Rússia, África do Sul, Filipinas e Jamaica. Na edição de 2023, foi a vez de o Brasil enviar uma equipe, formada por funcionários da distribuidora mineira Cemig.
A ideia inicial era mostrar as habilidades que os eletricistas devem ter nas alturas, junto com a velocidade e as noções de segurança para desempenhar o ofício de manter e consertar linhas de transmissão.
Como tantas modalidades criadas pelos norte-americanos, logo outros países adotaram o "esporte eletrizante". No Brasil, algumas empresas fizeram disputas internas ainda no século passado, mas só em 2006 foi organizado o primeiro rodeio nacional.
Recentemente surgiu um torneio latino-americano. Fundada em 1964, a Cier (Comissão de Integração Energética Regional) já realizou dois rodeios elétricos em Assunção, capital paraguaia.
Newsletter
PRA COMEÇAR O DIA
Comece o dia bem informado sobre os fatos mais importantes do momento. Edição diária de segunda a sexta.
Quero receberParticiparam times da Argentina, Bolívia, Costa Rica, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Brasil —que foi representado em 2022 e 2024 pela Copel, a concessionária do Paraná.
Um título nacional não garante participação nesses torneios internacionais, porque os trabalhadores dependem dos executivos das empresas para dar licença e liberar orçamento para suas viagens e estadias fora do país. Afinal, com seus salários, esses atletas não conseguem bancar uma carreira internacional.
Luz divina
"Sobe o som, DJ", ordena o narrador Jerry Ribeiro, portando um chapéu de caubói. Das caixas, soam alto canções do country dos EUA.
Minutos depois, ele faz a contagem regressiva para o início de uma prova no estacionamento da EDP em Mogi das Cruzes. "Animo, dou os comandos, mas sei a hora de ficar quieto, porque sou eletricista e já competi. Já veio narrador de fora, falou na hora errada e atrapalhou as equipes", conta Jerry, mineiro de Itajubá.
Até a torcida tem que fazer silêncio enquanto rola a disputa, porque a equipe pode ser penalizada se o juiz entender que foi passada alguma instrução aos competidores.
Já os vaqueiros elétricos não param de falar. "Confere o cinto", "não esquece a empunhadura", "posição de trabalho: positivo", "subindo aqui: cuidado", "travou, estabilizou, boa" são algumas das orientações entre os companheiros de time.
A equipe que atende a cidade de Aparecida até levou uma imagem de Nossa Senhora, colocada acima de uma bobina de cabos. "A santa está olhando por todos, mas torcendo mesmo é pela nossa equipe", brinca Jerry, que é empregado dessa subdivisão da distribuidora de energia.
Coberto com material isolante dos pés até a cabeça (incluindo balaclava e óculos escuros), o eletricista Hipólito Pires, vindo de Caraguatatuba, se ajoelha entre dois cones e ergue as mãos para o céu.
"Sou evangélico e rezo todos os dias antes de trabalhar para não ter nenhum acidente. Hoje orei ainda mais porque o ambiente é muito competitivo", explica Hipólito. "Fico mais nervoso aqui do que trabalhar em uma pirambeira no meio da mata com chuva", confessa.
Elas são elétricas
A placa pendurada diz "homens trabalhando", mas o grupo em ação é composto por Alline, Luana, Daniele, Evelyn e Karen.
"E olha que nenhuma aqui tem parentes eletricistas. A gente escolheu quando foi escolher algum curso profissionalizante e ficou atraída", conta Alline Nardini.
As cinco foram bem nas cinco provas do rodeio: substituição de medidor, da chave fusível, desenergização e energização da rede e escalada com degrau de fibra.
Elas ficaram na segunda colocação e, por decisão da empresa, também viajarão para o campeonato brasileiro da categoria.
É a primeira vez que um time totalmente feminino disputa o nacional. Outras empresas querem apresentar equipe só de mulheres no rodeio de 2025, e estão treinando suas funcionárias.
A organização da competição ainda estuda se vai haver uma disputa só para mulheres ou se elas vão competir diretamente com os times masculinos.
Anteriormente, só na edição de 2012, que aconteceu no Sambódromo do Rio de Janeiro, houve presença de garotas em duas equipes mistas.
Atletas corporativos
O rodeio elétrico guarda várias analogias com sua versão animal. Tem, por exemplo, a obrigatoriedade de luvas e botas (no caso, feitas com material antichoque).
Outra coincidência: os dois tipos de competidores colocam pós em suas luvas, com funções bem diferentes. Enquanto o eletricista usa talco para que a mão deslize mais fácil ao entrar e sair das luvas, o peão precisa do breu para se prender melhor à rédea em cima do touro.
As duas disputas também são modalidades ligadas a atividades econômicas. Os grandes fomentadores do rodeio elétrico são as empresas distribuidoras de energia, que, dessa forma, incentivam as normas de segurança e o aperfeiçoamento técnico a seus empregados, além de mostrar para os clientes sua atenção a esses quesitos.
O rodeio elétrico é mais um exemplo de competição surgida de um emprego, que inclui desde torneios de lenhadores até hackathons (maratonas de programadores).
Talvez dê para entrar nessa lista até as equipes corporativas de corrida e as duplas de beach tennis, esportes tão populares no mercado financeiro. Essas atividades físicas não estão ligadas diretamente às habilidades profissionais necessárias, mas nelas se pode, pelo menos, exercitar o "networking", atingir um "target", evitar o "burn out" e praticar alguns dos jargões em inglês de que tanto gostam.
Deixe seu comentário