'Sobrevivi a incêndio florestal que me deixou mumificado e criei brigada'
Paulo Lima de Souza, 40, foi engolido pelo fogo quando resolveu ajudar um casal de idosos em um incêndio, há 5 anos, em Brasília. Ainda no hospital, teve a ideia, junto com a esposa, de voltar aos incêndios —dessa vez, com especialização.
Foi então que surgiu a brigada voluntária Guardiões da Cafuringa —hoje, o grupo se transformou em um instituto que ajuda a desenvolver mais brigadas florestais, além de fazer ações de educação ambiental. Ao UOL ele contou sua história.
'Fui cercado pelo fogo'
"Moro no lado oeste de Brasília e tenho contato com o fogo no Cerrado desde a adolescência. Eventualmente, também apagava quando havia incêndios.
No dia 6 de setembro de 2019, o tempo estava muito seco e havia um fogo que persistia por duas semanas. Fui até o local para oferecer ajuda aos moradores, um casal de senhores.
Falei para eles que, se o fogo chegasse lá, era para me telefonarem porque tinha equipamento para apagar. Voltei para casa e, no dia seguinte, eles me telefonaram pedindo ajuda porque o fogo já estava muito perto da casa deles.
Ali, tinha uma encosta de montanha, para onde o incêndio se aproximava. Eu e dois amigos descemos a ladeira para apagar o fogo que vinha subindo, na intenção de preservar a casa do casal. Conseguimos e, quando estava retornando, subindo a montanha, o vento mudou e eu fiquei cercado pelo fogo.
Foi muito rápido. Fiquei pensando no que eu poderia fazer, mas, quando vi, minha roupa já estava queimando, se derretendo. Resolvi pular desse declive para a área que já estava queimada e atravessei o fogo, mas meu corpo já estava sem pele.
Comecei a escalar a montanha tentando pedir socorro, mas a pedra estava muito quente e acabei perdendo as pontas dos meus dedos. Quando cheguei lá em cima, havia muito sangue e muita queimadura.
Dali os bombeiros me resgataram e fui direto para o hospital.
'Fiquei mumificado'
A internação foi a parte mais difícil. Cheguei ao hospital e meu caso não tinha esperança. Falaram que eu deveria ir direto para a sala de cirurgia e ouvi que seria muito difícil sair com vida.
Iam amputar os meus braços, mas conseguiram fazer a cirurgia apenas para amputar meus dedos.
Tive de tirar pele das costas e da cabeça para colocar no rosto. Saí me refazendo todo.
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Quero receberAcreditava que, quando chegasse ao hospital, ia colocar apenas umas ataduras e voltar para casa, mas fiquei mumificado. Tive o corpo inteiro enfaixado e só enxergava escuro, porque meus olhos estavam costurados.
O trabalho mental nessas horas tem de ser muito forte. Tinha minha família, mulher, filha, meus amigos ao meu lado. Naturalmente sou uma pessoa alegre e descontraída e isso fez diferença no meu tratamento porque a gente tem de se motivar. Meus amigos se reuniam para fazer uma corrente de força.
Eu sempre falava: para mim, é muito simples. Gosto muito de festa e diversão e só por isso estou com pressa de sair daqui. É isso que me dá vontade de viver.
Sentia saudade do banho de chuva, de fazer café da manhã para minha filha, das coisas prazerosas do dia a dia. Acho que não existe uma fórmula. Cada um tem de se apegar a algo para ser sua força motriz e continuar a caminhada.
'Tive de aprender até a beber água'
Fiquei até outubro de 2019 no hospital e, quando finalmente recebi alta, tive de aprender tudo do zero: desde tomar banho até beber água.
Saí do hospital totalmente dependente de outras pessoas e com a pele ainda muito retraída. Fiz fisioterapia e que queria desistir, porque doía muito. Mas tinha de colocar a cabeça no lugar porque sabia que lá na frente isso me daria liberdade.
Chegou um momento que comecei a parar de tentar adaptar e comecei a tentar conseguir. Gosto muito de música e tocava muito violão. Hoje, tento recriar e redescobrir o instrumento, já que não tenho mais meus dedos.
Foram dois anos de readaptação, até ter uma autonomia básica. E, nesse processo, ainda teve a pandemia. O dia mais difícil era a visita ao hospital, porque existia aquele receio da contaminação. Mas nunca tive covid e a vacina, ainda bem, nos ajudou.
'Tivemos ideia de montar brigada'
Foi então que eu e a Carol [esposa de Paulo] decidimos colocar em prática uma ideia que surgiu quando ainda estava no hospital. Ela ficou comigo todos os dias e dizia que não queria que ninguém tivesse de passar mais por isso. Aí ela disse: 'é melhor a gente se especializar'.
Conseguimos participar de um curso de brigadistas do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] e tivemos a ideia de montar a brigada.
Fomos atrás de arrecadar fundos para conseguir os EPIs e todo o material. E a brigada nasceu, em 2020, de forma voluntária. Com o passar do tempo, o projeto foi crescendo e, em 2023, nasceu o Instituto Cafuringa, que apoia e desenvolve cinco brigadas.
A ideia é dar cursos e especializar mais pessoas no combate ao fogo.
'Voltei a combater o fogo'
E, com isso, voltei a combater o fogo. A primeira vez foi chocante. Houve um incêndio no mesmo lugar do meu acidente e o fogo virou, da mesma maneira. Dessa vez, não estava no paredão e já tínhamos a experiência para combatê-lo.
Onde antes era medo e despreparo, agora foi resistência. E conseguimos fazer um contra-fogo. Foi um dia impactante.
O que me motiva a continuar é o medo. Toda vez que nos deparamos com ele, sentimos a liberdade cair e viramos reféns de qualquer situação que nos coloca para baixo. Gosto da natureza e não posso deixar que algo que me dá medo me impeça de desfrutar, de estar em contato com algo que faz bem para a gente.
Além disso, precisamos cuidar das árvores. Sem elas, ninguém vai ter alimento, água e ar para respirar. Vivemos um reflexo das mudanças que negligenciamos.
O tipo do fogo mudou. Ele anda muito mais rápido porque o clima está mais seco e, assim, o combate é muito mais difícil do que era há uns cinco ou dez anos.
Os níveis de temperatura global estão subindo e isso mexe com a pressão atmosférica, com a hidratação das plantas, a umidade do ar. Temos de estar alertas para nos transformarmos com a natureza. Não precisamos destruir para construir e isso pode frear essa mudança para o combate ao fogo ser cada vez menos necessário."
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