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Covid: Bolsonaro violou norma da Anvisa por 18 vezes ao defender cloroquina

Presidente Jair Bolsonaro com caixa de cloroquina do lado de fora do Palácio da Alvorada, em agosto do ano passado - ADRIANO MACHADO
Presidente Jair Bolsonaro com caixa de cloroquina do lado de fora do Palácio da Alvorada, em agosto do ano passado Imagem: ADRIANO MACHADO

Diego Junqueira e Joyce Cardoso

04/08/2021 07h00

As aparições do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) expondo caixas de cloroquina como um medicamento eficaz contra a covid-19 já lhe renderam alguns pedidos de impeachment por crime de responsabilidade contra a saúde pública e até uma notícia-crime por charlatanismo (anunciar cura infalível). Agora, especialistas afirmam que o presidente também violou norma da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que limita a divulgação ou publicidade de medicamentos. E isso aconteceu em pelo menos 18 ocasiões no intervalo de sete meses —sem qualquer tipo de atuação por parte da Anvisa.

Entre 26 de março e 29 de outubro de 2020, o presidente exibiu por 18 vezes caixas com a marca de hidroxicloroquina de duas fabricantes nacionais, a Apsen e a EMS, recomendando-as para tratamento da covid-19, segundo levantamento feito pela Repórter Brasil nas redes sociais e nos eventos que contaram com a presença do presidente. A droga da Apsen apareceu em 14 ocasiões, enquanto a da EMS, em seis —em dois momentos o presidente exibiu ambas as marcas. A medicação, contudo, é comprovadamente ineficaz contra a doença.

O principal canal de divulgação de Bolsonaro foram suas lives às quintas-feiras (dez vezes), em vídeos que tiveram 16,2 milhões de visualizações só no Facebook (boa parte dos vídeos no YouTube foi excluída por infringir regras da plataforma). O presidente também estimulou o consumo dos produtos em publicações no Instagram, levou as caixinhas para coletivas de imprensa, exibiu-as em transmissões ao vivo e eventos políticos.

No entanto, a resolução 96 de 2008 da Anvisa proíbe a divulgação de marcas de remédios de forma "não declaradamente publicitária" e veda a difusão de mensagens enganosas sem respaldo científico. O texto está respaldado na lei 9.294 de 1996, que determina que as comunicações sobre fármacos tarja preta ou vermelha (caso da hidroxicloroquina) devem ser obrigatoriamente direcionadas a profissionais de saúde e publicadas somente em veículos técnico-científicos.

"Divulgar informações falsas e não amparadas cientificamente sobre um medicamento, além de ser charlatanismo, obviamente confronta a legislação sobre propaganda [de medicamentos], porque induz a comportamentos errados, que é o que a norma combate", afirma o farmacêutico Dirceu Raposo de Mello, que foi presidente da Anvisa entre 2005 e 2011, época em que a resolução foi editada.

Ele destaca que a agência poderia ter aberto um processo administrativo para apurar a conduta do presidente e, comprovando-se a propaganda enganosa, Bolsonaro deveria ser multado e obrigado a retratar as mensagens.

Ainda que o presidente possa não ter sido incentivado ou pago pelas fabricantes para virar o seu "garoto-propaganda", Mello é taxativo: "O que ele [Bolsonaro] faz é propaganda. Eu posso propagandear, sem ser remunerado, um serviço de um amigo meu, por exemplo. Aí estou fazendo uma propaganda", afirma.

Segundo o ex-presidente da Anvisa, um dos objetivos da resolução na época em que foi publicada era justamente evitar que pessoas famosas fizessem propagandas de medicamentos tarjados, e por isso se obrigou que apenas profissionais de saúde promovessem esses remédios, e somente para público especializado.

"Pode ser considerado tanto uma infração sanitária como um crime mesmo. Não só por ter infringido a resolução que proíbe propaganda de medicamentos, mas também se encaixa em charlatanismo, que é oferecer cura sem ter a capacitação técnica para isso, nem permissão estatal para indicar medicamentos", concorda o advogado e professor Fernando Aith, diretor do Cepedisa (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário), da Faculdade de Saúde Pública da USP.

"A lei é para todos. A legislação precisa ser respeitada", diz a consultora e advogada Maria José Delgado Fagundes, que trabalhou por 25 anos em vigilância sanitária, sendo 12 deles na Anvisa, onde cuidou das propagandas de medicamentos. Ela chefiou este departamento da agência até sua extinção, em 2012. "A divulgação de medicamentos têm restrições legais e só podem ser divulgadas as utilizações aprovadas, porque elas possuem as evidências científicas que sustentam aquele registro", completa.

Para o advogado sanitarista Silvio Guidi, do escritório Vernalha Pereira, a atitude do presidente não pode ser interpretada como propaganda "do ponto de vista jurídico", mas a Anvisa poderia mover uma ação judicial contra o presidente para que ele não mais estimule o consumo do remédio para tratamento da doença. "A Anvisa tem legitimidade para isso, e um dos seus papéis é zelar pela saúde coletiva. A postura dele [Bolsonaro] é sim um crime de responsabilidade contra a saúde pública."

A Anvisa, entretanto, disse à Repórter Brasil que a norma se aplica "a outras práticas de comunicação", como, por exemplo, "divulgação de informações por meio de redes sociais".

Com o presidente como garoto-propaganda, a Apsen vendeu 58,8 milhões de comprimidos em 2020, ou 30% a mais que no ano anterior, segundo disse a empresa à CPI da Covid. A farmacêutica, assim como a EMS, também teve apoio de Bolsonaro e do Itamaraty para receber da Índia a matéria-prima para fabricação da cloroquina.

'Dez comprimidos dão conta do recado'

A resolução da Anvisa define a publicidade de medicamentos como o "conjunto de técnicas e atividades de informação e persuasão com o objetivo de divulgar conhecimentos, tornar mais conhecido e/ou prestigiado determinado produto ou marca, visando exercer influência sobre o público" para "promover e/ou induzir à prescrição, dispensação, aquisição e utilização de medicamento".

"Este regulamento se aplica à propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos", diz outro trecho da resolução. À Repórter Brasil, a Anvisa afirmou que a "divulgação de informações por meio de redes sociais" também se enquadra na norma. "Cabe esclarecer que as denúncias [de violação da norma] são avaliadas pela Anvisa de forma detalhada observando o contexto da divulgação e seu conteúdo", informou a agência, em nota.

A norma afirma ainda que "não é permitida a propaganda ou publicidade enganosa, abusiva e/ou indireta" e que "fica vedado utilizar técnicas de comunicação que permitam a veiculação de imagem e/ou menção de qualquer substância ativa ou marca de medicamentos, de forma não declaradamente publicitária, de maneira direta ou indireta", em qualquer tipo de mídia eletrônica.

Para configurar publicidade, é "imprescindível" exibir não apenas o princípio ativo, mas a marca do medicamento, declarou a Anvisa este ano, em uma ação judicial. Apesar disso, a agência não investigou a atuação do presidente ao promover a marca de hidroxicloroquina das duas fabricantes. Questionado pela Repórter Brasil, o órgão disse que a ouvidoria interna não recebeu denúncias sobre o caso. "A atuação da agência se limita à prescrição de medicamentos conforme o registrado na bula do produto. O uso fora da bula, o chamado "off label", é uma prerrogativa médica", afirmou, em nota.

O objetivo das normas sanitárias é impedir o consumo irracional de medicamentos, especialmente para uso fora da bula (caso da hidroxicloroquina para covid-19), mas Bolsonaro agiu na direção contrária. "Dez comprimidos dá conta do recado aí (sic)", recomendou o presidente, enquanto exibia os remédios das duas marcas, na live de 26 de março de 2020, o primeiro dia em que promoveu os produtos. Ele também contrariou a bula ao afirmar na ocasião que os remédios "não têm efeito colateral".

Ao se infectar pela covid-19, em julho do ano passado, o presidente alçou o curandeirismo ao nível máximo ao dizer que o medicamento o fez "muito bem" em apenas "12 horas".

A promoção dos dois produtos continuou até a live de 29 de outubro de 2020, quando Bolsonaro exibiu a marca da EMS ao tratar de um estudo sobre suposta redução de internações por covid devido à cloroquina. "Quem toma não vai pro hospital e muito menos vai ficar intubado", disse.

A legislação sanitária, contudo, obriga a divulgação de informações completas ao se promover um medicamento. Porém, Bolsonaro deixou de dizer que se tratava de um estudo observacional, ou seja, com menor relevância e incapaz de atestar a comprovação científica. Os próprios autores alertam que a pesquisa tem "várias limitações". Bolsonaro continua promovendo a medicação até hoje, mas não exibe mais as marcas nacionais.

A Apsen informou, por meio de nota, que segue as resoluções da Anvisa e que recomenda a hidroxicloroquina apenas para tratamentos previstos em bula (malária, lúpus e reumatismo). "[A empresa] em nenhum momento deu aval ou solicitou a qualquer pessoa que seus produtos fossem divulgados fora desse contexto". Já a EMS disse que "sempre comercializou seus medicamentos para os fins previstos em bula" e que sua relação com os governos é "institucional" (veja as respostas na íntegra).

O Palácio do Planalto foi procurado desde a última quarta-feira (28), mas não respondeu.