Bombas não são solução para Cracolândia, mas saúde e proximidade, diz padre
Ordenado em 1985, padre Julio Lancellotti, 71, coordena a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo e atua há mais de 20 anos com os "irmãos da rua". Uma das regiões em que ele atua é a Cracolândia, na Luz, um dos principais pontos do centro de São Paulo onde o crack é usado ao ar livre.
A Cracolândia foi um dos temas abordados no primeiro debate dos candidatos a prefeito de São Paulo, exibido pela Band na quinta-feira (1º). Para o padre, nenhum candidato apresentou novidades. "Se algum deles dissesse: 'eu vou obstruir a chegada da droga lá', isso seria novo. Nunca ninguém disse isso", afirma Lancellotti.
Cinco candidatos foram sorteados para responder quais políticas públicas pensam em adotar na região. Todos disseram que é preciso tratar o dependente, mas divergiram sobre como fazer isso.
Na ordem, Orlando Silva (PCdoB) citou redução de danos, sem dar detalhes de como seria. Jilmar Tatto (PT) quer a volta do programa Braços Abertos, criado na gestão de Fernando Haddad (PT), que previa a ressocialização de usuários de drogas mediante, oferecendo moradia e trabalho, mas sem exigir tratamento da dependência química.
Bruno Covas (PSDB) defendeu um misto de tratamento, ação social e segurança, mas não mencionou o programa de seu governo que paga uma bolsa para usuários que estejam seguindo tratamento.
Joice Hasselmann (PSL) e Andrea Matarazzo (PSD) mencionaram o combate ao tráfico de drogas e a internação compulsória de usuários que vivem na região.
Bombas não surtiram efeito
Para Lancellotti, o que falta para "as cracolândias" da cidade [segundo o padre, são 30 pontos de uso de crack na capital e a Luz tem destaque por causa do interesse imobiliário] é uma ação coordenada de Estado e Município que envolva saúde pública, especialmente saúde mental, acolhimento e proximidade com o usuário de droga, múltiplas abordagens de tratamento e inteligência no enfrentamento ao tráfico de drogas.
"A gente não deve jogar flores, nem bombas, a gente deve ser humano", diz o padre, para quem a violência de operações policiais na região certamente não trouxe solução. "A repressão que há ali é cinematográfica. Quem jogou mais bombas na Cracolândia da Luz? Que efeito isso surtiu?", questiona.
Para Lancellotti, a questão da "cracolândia é mais polemizada do que outra coisa". "É sempre a mesma coisa: saúde, segurança, combate ao crime organizado, voltar o projeto tal, acabar com o projeto y. Não aparece nenhuma novidade", diz.
Cracolândia não é o maior problema de SP
Para o padre, a Cracolândia não é o maior problema da cidade de São Paulo. Segundo ele, a cidade precisa de políticas de saúde mais abrangentes e que estas repercutam também naquela região.
"A gente precisaria de ações para toda a cidade que tenham efeito lá também: mais acesso à saúde mental, mais acesso à saúde como um todo", diz.
Em relação às ações das forças de segurança, para o padre, quem hoje é preso não tem responsabilidade pela fabricação e distribuição do crack (um subproduto da cocaína) em larga escala. "Os que hoje são presos são pequenos comerciantes dali, mas a droga foi feita em outro lugar. E chega lá por onde? Pelo bueiro? Pelo esgoto? Pelo ralo? ", indaga.
Igreja não substitui Estado
O padre lembrou a menção feita por Joice, no debate, que disse que quer as igrejas junto com a Prefeitura, mas ele mesmo vê a ação das igrejas como "supletiva" (complementar). Para o padre, em vez de sustentar ações da igreja ou se apoiar nelas, o Estado deve garantir que as igrejas assistam e estejam próximas do frequentador da Cracolândia.
"As pessoas ali, sim, elas têm dimensão religiosa, mas o Estado é laico. O que não pode ocorrer é que os grupos religiosos sejam reprimidos e impedidos pela GCM de abordar os moradores", diz o padre, que já entrou na linha de tiro para que o projeto Cristolândia, mantido por uma igreja evangélica, não fosse alvo de bombas.
"Ganhei uma camiseta deles depois disso e fui chamado de servo de Deus e olha que é difícil um católico ser chamado assim por evangélicos", brinca.
O padre defende que nenhum tipo de tratamento seja priorizado em detrimento de outro. "Há diferentes tratamentos. Da redução de danos à abstinência completa. Para uns funciona e para outros, não. Não dá para absolutizar nenhum tratamento", afirma.
Candidato não fará internação compulsória
"Não adianta o [candidato a] prefeito dizer que fará internação compulsória, pois ele não fará. Isso depende da Justiça. Depende da família, Ministério Público, Defensoria, declaração médica e decisão judicial. A internação compulsória não depende do prefeito. O prefeito tem que garantir o funcionamento da rede de Saúde Pública."
Para o padre, é fundamental também entender a dimensão humana de quem está na Cracolândia. "Nós temos uma visão de que eles não têm sentimento, que não têm uma vida humana. Eles não são personagens, são pessoas e precisam de proximidade, de cuidados", diz.
Ele cita um episódio que ocorreu com ele há alguns anos para provar o que diz. Durante uma das várias crises na região, ele ficou uns dias sem ir à Cracolândia devido a uma morte em sua família. "Ao voltar, fui reconhecido por um rapaz que estava caído no chão e ele me chamou, me puxou pelo braço, me deu um beijo no rosto e me disse: 'não fica triste'."
Cracolândia é uma ferida na cidade
"A Cracolândia não é uma doença de uma cidade sã. Ela é uma ferida na cidade. O que todos os grupos — católicos e evangélicos — fazem é conviver para estabelecer confiança. Eu convivo com pessoas que estão naquele espaço. Não é apenas entregar comida, mas permitir que as pessoas sejam nutridas como um todo", diz.
Ao final da entrevista, o padre citou o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica: "Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas humano". "A última coisa que nós não podemos tirar de uma pessoa é a condição humana delas", disse o padre.
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